Nas eras antigas, quando o mundo ainda era jovem e o céu dançava com luzes de fogo e magia, os dragões eram os governantes supremos. Eles não apenas dominavam os céus, mas eram os guardiões do equilíbrio entre os reinos, seres de poder inimaginável e sabedoria inigualável. Suas escamas, reluzentes como joias forjadas pelos deuses, refletiam sua força e sua glória.
O Clã Jade, do qual Darien descende, era o mais venerado entre os dragões. Nascidos de ovos esculpidos pelo próprio núcleo do mundo, suas crias carregavam não apenas poder bruto, mas também uma conexão espiritual com a energia primordial. Eram os defensores da harmonia e os conselheiros dos antigos reis mortais e imortais.
Por eras incontáveis, o clã prosperou, habitando montanhas que tocavam as nuvens e vales ocultos banhados por rios dourados. Mas o poder traz atenção, e a atenção, inevitavelmente, traz cobiça.
Os dragões, outrora honrados como guardiões, começaram a ser temidos por seu poder. O medo gerou conspirações. Algumas vieram dos mortais, que ansiavam pelo segredo da imortalidade que os dragões carregavam. Outras surgiram dos deuses, que viam nos dragões competidores de seu domínio celestial.
Foi assim que as guerras começaram.
Uma aliança traiçoeira entre mortais e divindades selou o destino do Clã Jade. Os dragões, que sempre haviam escolhido proteger em vez de destruir, foram pegos desprevenidos. Guerreiros mortais empunhando armas abençoadas por deuses desceram sobre seus refúgios secretos, enquanto forças divinas devastavam os céus com tempestades e raios. Mesmo com todo o seu poder, o Clã Jade foi sendo dizimado.
Darien nasceu durante os últimos anos dessas guerras. Seu ovo, protegido por um pequeno grupo de dragões sobreviventes, foi escondido nas profundezas do mundo, em um santuário de jade puro, um último esforço para preservar a linhagem. Quando finalmente eclodiu, ele encontrou-se cercado apenas por memórias de sua espécie. Os dragões restantes, feridos e exaustos, haviam se dispersado, e muitos caíram antes que ele pudesse sequer conhecê-los.
Darien foi criado por uma família de deuses, recebendo todo o carinho e atenção quanto possível. Quando jovem, resolveu seguir o seu caminho sozinho e ao longo de mil anos, viveu apenas com os ecos das histórias de seu clã. Ele cultivou sua essência em silêncio, guiado pelos fragmentos de sabedoria deixados pelos ancestrais, alcançando níveis de poder quase divinos. Determinado a honrar o legado de seu povo, buscou refúgio entre os reinos dos imortais, ascendendo ao Reino Celestial como o último descendente do Clã Jade. Mas mesmo lá, ele encontrou desilusão.
Os deuses que outrora haviam massacrado sua espécie agora o aceitavam como um igual – mas nunca como um aliado. O Reino Celestial era um lugar de intrigas e disputas de poder, e Darien logo percebeu que a harmonia que buscava não existia nem mesmo entre os imortais.
A perda de seu clã e a futilidade das batalhas alheias corroeram sua alma e o levaram a questionar seu papel. Ele deixou os céus, retornando ao mundo mortal em busca de um novo propósito.
Mas o mundo que ele encontrou também havia mudado. Os dragões eram agora lendas, criaturas que as crianças ouviam em histórias e que os guerreiros mortais caçavam em busca de glória e fortuna. Darien, o último de sua espécie, era um fantasma, uma sombra que vagava entre as ruínas de um mundo que não mais o reconhecia.
Foi em sua jornada de exílio que conheceu Kalista, uma mulher mortal cujo espírito ousado e determinação o impressionaram. Ela se tornou sua maior amiga e uma companhia constante em suas viagens pelo mundo. A amizade deles floresceu, marcada por aventuras e desafios que fortaleceram seus laços. Além disso, ela o ajudou a redescobrir um lado humano que ele mal sabia que existia, dando-lhe pequenos momentos de paz e amizade. Mas até mesmo esses laços preciosos foram desfeitos pela tragédia e o orgulho.
Uma intensa discussão surgiu entre Darien e Kalista, fazendo com que se separassem.
Consagrado pelo orgulho e consumido pelo arrependimento, Darien decidiu se isolar completamente. Encontrou uma montanha distante, onde decidiu se instalar, longe dos conflitos e das decepções que o perseguiam.
Com o tempo, ele descobriu que a montanha era um local sagrado, um ponto de equilíbrio entre os reinos. Criaturas místicas e viajantes espirituais se aproximavam do local, em busca de orientação ou simplesmente atraídos por sua energia. Ao perceber o valor da montanha, Darien decidiu protegê-la em segredo. Ele usou seu poder para estabelecer barreiras e ilusões para que apenas os dignos encontrassem o caminho até o topo. Ele tornou-se um guardião silencioso, zelando pela paz e pela harmonia da montanha.
Agora, nas profundezas de uma montanha sagrada, Darien vive em isolamento, protegendo o equilíbrio de um lugar que reflete sua alma: belo e repleto de poder, mas cercado de névoas e sombras. O último dragão do Clã Jade guarda não apenas um santuário, mas também as últimas cinzas de uma era que há muito foi esquecida.
E enquanto o mundo o esquece, ele lembra de um tempo em que os céus eram preenchidos por asas imponentes e rugidos que faziam o mundo tremer. De um clã que ele jurou nunca deixar morrer, mesmo que só existisse em suas memórias.
Darien é o último de sua espécie, mas ele também é a promessa de que os dragões, um dia, talvez retornem.
O silêncio era absoluto. Sentado no chão da casa que construí com minhas próprias mãos, mantinha-me imóvel, em minha forma humana, concentrado, deixando-me alinhar ao fluxo natural da montanha. A estrutura ao meu redor era simples – feita de bambu e barro, cuidadosamente moldada ao longo dos anos para resistir às intempéries e proporcionar abrigo. Nada extravagante, apenas o necessário para uma existência tranquila e reclusa.
Essa montanha era meu lar, e eu, seu guardião. Aqui, no topo do mundo, encontrei uma paz que milênios de cultivo de poder jamais puderam me oferecer.
Minha respiração desacelerou enquanto mergulhava mais fundo na meditação. Cada fibra do meu ser estava conectada à energia ao meu redor - o vento que sussurrava entre as árvores, o calor do sol nas primeiras horas do dia, o murmúrio distante de uma cachoeira ao pé da montanha. Este era o meu refúgio e nada ousava perturbá-lo.
Até que algo ousou.
De repente, senti uma presença interromper o fluxo harmônico que eu mantinha há anos. Meus olhos se abriram de imediato, brilhando intensamente. Levantei-me em um único movimento, permitindo que minha energia se expandisse pela montanha como uma rede invisível.
"Alguém atravessou as barreiras", pensei, enquanto sondava o ambiente com atenção. Era uma presença fraca, mas o suficiente para despertar minha curiosidade e meu alerta.
Saí de casa, descendo a trilha que levava ao coração da floresta densa, mais abaixo. O vento carregava o aroma fresco de terra e folhas, mas havia algo mais, algo estranho. A névoa se agitava como se tentasse revelar o caminho.
A cada passo, eu me preparava para um confronto. Por anos, histórias sobre mim circularam nas vilas próximas. Alguns diziam que eu era um espírito protetor, uma entidade que abençoava aqueles que faziam oferendas. Outras me chamavam de demônio vingativo, um guardião implacável. Não me importava o que pensavam. Meu único objetivo era preservar o equilíbrio desse lugar.
Finalmente, alcancei o limite da floresta, onde a presença se tornou clara.
Entre as árvores antigas, junto às raízes de um grande carvalho, algo pequeno chamou minha atenção: um cesto. Um som suave de choro flutuava no ar, interrompendo a quietude do ambiente.
Um cesto? Um bebê?
Aproximei-me com cuidado, os sentidos em alerta. Era improvável que alguém deixasse uma criança ali sem um propósito específico. Seria uma tentativa de invocar minha compaixão? Ou talvez algum tipo de maldição velada?
Parei, confuso, e observei a cena por um momento. Olhei ao redor, esperando por qualquer sinal de uma emboscada ou armadilha, mas não havia ninguém ali. Apenas o som do choro e o cesto, repousando serenamente sob a sombra do carvalho.
"Quem ousaria deixar uma criança aqui?"
O cesto era simples, mas bem-feito. Inclinei-me para olhar mais de perto. No interior, envolta em um pano gasto, estava uma menina pequena, com o rosto avermelhado pelo choro.
Algo em meu peito apertou.
“Cabelos platinados e olhos...
Verdes.”
Ela me olhou diretamente, o choro cessou. Por um instante, senti como se estivesse olhando para algo que conhecia, algo que fazia parte de mim. Era impossível, mas a conexão estava lá, palpável e inegável.
– Quem é você? – perguntei, minha voz quase um sussurro.
A menina não respondeu, obviamente, mas seus olhos me mantiveram preso. Era como se ela soubesse quem eu era.
"Seria possível que fosse... minha?"
Afastei o pensamento imediatamente, mas ele persistiu, inquietante. Peguei o cesto com cuidado, segurando com firmeza enquanto olhava ao redor mais uma vez. Nenhuma outra presença, nenhuma explicação para aquilo. Apenas o barulho do vento balançando as folhas.
– Muito bem, pequena. Vamos sair daqui.
Enquanto eu andava pela trilha sinuosa, meus passos ficaram mais lentos. Cada vez que olhava para o bebê, algo dentro de mim sussurrava que ela era, de fato, minha responsabilidade.
Suspirei profundamente.
- Poderia… talvez… deixá-la na porta de um dos aldeões na base da montanha. - Era a opção mais lógica, afinal, que conhecimento eu tinha sobre cuidar de bebês?
Ela fez um barulhinho suave, como se desaprovasse a ideia. Suspirei outra vez, balançando a cabeça. Mas algo em mim hesitava, por mais confuso que eu estivesse, não poderia simplesmente deixá-la.
— Certo, pequena, parece que... ficaremos juntos — declarei, resignado.
Com o cesto nos braços, voltei para o topo da montanha. A subida não me cansava – nada podia depois de tantos anos de cultivo –, mas minha mente estava cheia. Quem deixaria uma criança aqui? E por quê?
Ao chegar em casa, coloquei o cesto sobre a mesa improvisada no canto da sala.
Era uma cabana rústica e isolada, com vista para as montanhas. O interior era simples e funcional, feito apenas para mim. Não havia espaço para algo tão frágil e pequeno quanto uma criança. Livros antigos ocupavam as prateleiras, e minhas armas repousavam em suportes nas paredes. O fogo na lareira central estava apagado, e o ambiente era frio.
Olhei ao redor, pensando em como transformá-la num espaço adequado para um bebê. Tudo ali havia sido projetado para minha vida solitária: livros, armas, prateleiras altas, um local para minhas meditações... absolutamente nada era seguro ou apropriado para uma criança.
Enquanto tentava pensar em algo, ela começou a tremer e chorar levemente. Ao tocá-la, percebi que sua pele estava fria.
— Está com frio, não é? — perguntei, franzindo o cenho.
Concentrando-me, conjurei pequenas chamas azuis que flutuaram pelo ambiente, criando uma temperatura agradável. A pequena pareceu se aquecer, e por um breve momento, ela parou de chorar, e seu rostinho suavizou. Sorri, satisfeito.
— Viu? Problema resolvido...
No instante seguinte, ela começou a chorar novamente, mais alto desta vez, com um tom de urgência. Olhei, confuso.
— Mas... está calor? Está confortável... O que mais você quer criatura humana?
Comecei a listar mentalmente minhas opções. Com um leve estalar de dedos, conjurei uma bandeja com alguns petiscos. Peguei um peixe fresco e aproximei dela.
— Que tal um peixe bem fresquinho? Aposto que isso vai resolver tudo. — sugeri, oferecendo o peixe diretamente no rostinho dela.
Ela fez uma careta e recusou, o choro aumentou mais.
— Não gostou do peixe, hein? Que tal... — pausei, olhando ao redor até encontrar um pequeno rato que eu havia capturado dias antes. Peguei-o e o estendi para ela. — Este é um rato suculento. Vai te deixar forte.
O choro ficou ainda mais alto, e ela rejeitou completamente meu "banquete". Balancei a cabeça, perplexo.
"Peixes, ratos... tudo que eu comeria está aqui!" pensei, sem saber o que faltava.
Tentei outras opções: alguns pedaços de fruta, carne seca, até mesmo uma raiz que mastigava em viagens longas. Nada a satisfazia. Foi só então que algo me veio à mente — lembranças das vilas que visitei, onde vi mães cuidando de seus filhos. Recordei que bebês costumavam beber... leite! Suspirei, resignado. Era óbvio.
— Certo, você venceu, pequena. Vou achar algo mais apropriado.
Desci a montanha outra vez, vasculhando as redondezas até encontrar uma cabra selvagem pastando. Com paciência, consegui extrair o leite e o trouxe para a bebê. Ao olhar para a tigela cheia, percebi o óbvio: tigelas não eram práticas para bebês.
— Preciso de alguma coisa para... — murmurei, revirando os olhos ao encontrar uma garrafa. Improvisando, criei uma mamadeira.
Segurei a pequena nos braços e ofereci o leite. Ela parou de chorar e começou a mamar com uma expressão satisfeita, finalmente relaxando. Sorri, aliviado.
— Ah, então era isso! Muito exigente para alguém tão pequena, não acha?
Ela me olhou com olhos curiosos, como se estivesse me entendendo.
Após a árdua batalha de descobrir como alimentar a criança, eu suspirei, convencido de que os problemas tinham terminado. Talvez, afinal, eu fosse capaz de cuidar desse pequeno ser. Mas então, ela soltou um arroto suave.
— Espera... agora precisa arrotar também?
Segurei-a com cuidado, dando leves batidinhas nas costas até que um arroto ecoasse. Senti um orgulho estranho daquilo, mas o momento de satisfação durou pouco. Um cheiro peculiar encheu o ar, me fazendo franzir o rosto.
— Deuses... o que foi isso? — murmurei, pensando que algum animal selvagem tivesse invadido meu território. Mas então percebi que o cheiro vinha da minha nova protegida.
Eu hesitei e, aos poucos, a realidade do que precisava fazer começou a se formar em minha mente.
— Você precisa... de uma troca de fralda.
Me levantei e a afastei um pouco de mim. Em todos os meus milênios de existência, jamais havia imaginado que enfrentaria um desafio como esse.
Com um suspiro resignado, puxei a fralda improvisada e dei uma olhadinha dentro. O cheiro me atingiu como uma pancada.
- Pelas escamas ancestrais! Isso é indescritível! - resmunguei segurando o nariz.
Logo percebi meu erro quando um pouco de conteúdo da fralda suja acabou na minha mão. Olhei para aquilo como se acabasse de ser traído pelo próprio destino.
Após alguns segundos de puro horror, improvisei uma troca usando alguns panos e a lavei com água fresca. O processo foi tudo menos gracioso, e quando finalmente terminei, ela fez um som de satisfação, fechando os olhos como se estivesse prestes a dormir. Admirei o pequeno caos que havia se tornado meu dia.
Olhei para aquele… quase muquifo, percebendo que não havia nem um lugar para ela descansar. Tudo era frio, improvisado e, acima de tudo, perigoso. Ainda assim, não tinha alternativa.
— Bom... acho que vai ter que dormir comigo — murmurei, carregando-a para minha cama.
Deitei-me ao lado dela, observando enquanto a pequena se aconchegava em mim, tranquila, como se aquele fosse o único lugar no mundo onde ela queria estar. Exausto, suspirei, mas em paz, pelo menos por um instante.
— Bebês são extremamente trabalhosos — pensei, olhando para o teto da cabana. — Isso não faz sentido... Por que alguém me deixaria isso? — Fiz uma pausa, considerando minhas opções mais uma vez. — Talvez eu devesse... me livrar de você enquanto ainda posso. Não é tarde demais.
Ela fez um barulhinho suave, como se protestasse mesmo dormindo. Mas a dúvida continuava crescendo em minha mente. Peguei a pequena com cuidado e me concentrei, permitindo que meu poder investigasse profundamente o núcleo dela. Se ela fosse apenas uma criança comum, então minha decisão seria fácil.
O que encontrei, porém, me deixou sem palavras.
— Isso... não pode ser verdade — murmurei, sentindo uma onda de choque percorrer meu corpo. O núcleo dela não apenas carregava energia semelhante à minha, mas era inconfundivelmente meu. Ela compartilhava a mesma essência, como se fosse parte de mim. Uma onda de confusão e incredulidade tomou conta de mim enquanto eu olhava para o pequeno rosto tranquilo.
— Você é realmente minha... — sussurrei, um misto de fascinação e dúvida tomando conta de mim. — Mas... como isso é possível? Com quem? Quando?
De repente, uma memória nebulosa emergiu em minha mente: uma noite há muito tempo, uma das muitas noites que passei em vilas humanas, bebendo até perder a noção das coisas. Meu coração acelerou com a possibilidade.
— Foi naquela noite…? — as peças começaram a se encaixar. — Eu bebi demais... e... — fiz uma pausa, olhando para a pequena nos meus braços. — Alguém engravidou e então achou que a melhor solução seria me deixar com a criança? O demônio da montanha... claro. Era mais fácil se livrar de você assim, não é? — Sorri com ironia, balançando a cabeça. — Mas por destino, você acabou em minhas mãos.
Olhei novamente para ela, que agora parecia tão tranquila, tão inocente. Uma parte de mim ainda queria duvidar, mas a conexão era inegável. Ela era minha. Minha filha.
— Parece que não tenho escolha agora, não é? — murmurei, um sorriso exausto, mas genuíno, se formando em meus lábios. — Se o destino decidiu assim, pequena, então eu aceitarei.
A partir daquele momento, percebi que minha vida não seria mais a mesma. A rotina tranquila e meditativa que eu mantinha há séculos seria substituída por algo completamente diferente. Dias imprevisíveis, noites interrompidas... e, de alguma forma, um propósito que eu nunca soube que precisava.
Enquanto cuidava dela, descobri algo que jamais imaginei: a alegria de não estar mais sozinho.
O sol ainda estava se escondendo por trás das montanhas quando acordei. A casa estava silenciosa, exceto pelo som suave da respiração da pequena, ainda adormecida. Olhei para ela por um momento, aquele rostinho tranquilo, completamente alheio ao caos que já havia trazido à minha vida. Levantei com cuidado, tentando não acordá-la.
— Certo, Darien, você já enfrentou exércitos e dragões celestiais. Arrumar a casa? Isso deve ser moleza. — murmurei para mim mesmo.
Minha casa era... minha casa. Para mim, sempre foi perfeita: organizada de um jeito prático, cheia de pergaminhos, armas e artefatos espalhados em lugares estratégicos. Mas agora? Cada canto parecia um convite para acidentes. Espadas afiadas na parede, poções explosivas no armário e pergaminhos que, com a combinação errada, poderiam abrir um portal para outro plano. Definitivamente, não era segura para um bebê.
Primeiro, comecei pelo meu quarto. Não era bagunçado. Porém, "não bagunçado" não significava "adequado para crianças". As armas penduradas na parede foram cuidadosamente retiradas e guardadas em um baú pesado, que lacrei com uma escama de dragão. Em seguida, dei uma boa varrida, removendo qualquer vestígio de poeira (ou as cascas de frutas que eu costumava jogar em um canto, por pura preguiça). Quando terminei, olhei ao redor, satisfeito. Já era um lugar onde ela podia ficar sem que eu precisasse vigiar cada movimento.
— Um quarto seguro, um a menos na lista — murmurei, indo em direção ao próximo.
O segundo quarto era onde eu guardava... bem, quase tudo que não usava. Armas antigas, artefatos mágicos e itens que, em mãos erradas (ou pequenas), poderiam causar estragos monumentais. Olhei para a bagunça e soltei outro suspiro.
— Vai ser um longo dia.
Peguei um baú antigo e resistente, e comecei a encher com tudo o que parecia perigoso. Uma lança encantada que poderia invocar tempestades? Baú. Um colar amaldiçoado? Baú. Uma pequena esfera que eu havia esquecido para que servia, mas brilhava de forma suspeita? Também para o baú. Fechei tudo com um encantamento e o empurrei para um canto, selando com outro feitiço. Olhei para o quarto vazio, agora seguro.
— Agora, falta o mais importante — murmurei, indo em direção ao terceiro quarto.
Decidi que aquele seria o quarto dela. Olhei e percebi que, apesar de vazio, não tinha absolutamente nada que pudesse ser chamado de "acolhedor". Precisava de móveis, roupas de cama e algo que ela pudesse usar como berço. Sorri enquanto pensava em uma solução.
— Bambus e lã… isso eu posso resolver.
Saí pela manhã, bem cedo, e caminhei até a floresta próxima. Com uma pequena lâmina, comecei a cortar bambus, escolhendo os mais firmes e flexíveis para o que tinha em mente. Carreguei-os de volta para casa, mas ainda faltava o toque final: a lã. Para isso, a vila mais próxima seria... providencial.
Quando cheguei às redondezas da vila, avistei um pequeno grupo de ovelhas pastando perto de uma cerca baixa. Olhei para certificar-me que não havia ninguém por perto e avancei sorrateiramente.
— Ninguém vai notar, é só um pouquinho de lã... — sussurrei para mim mesmo, já visualizando como seria o colchão dela.
Com um movimento rápido, conjurei um pequeno feitiço que tosquiou apenas o necessário de lã, deixando as ovelhas com o suficiente para se protegerem do frio, e saí tão rápido quanto cheguei. Enquanto voltava para casa, ouvi ao longe a voz de um pastor:
— Quem diabos andou tosquiando minhas ovelhas?
Um sorriso travesso surgiu, apertei o passo.
De volta à casa, comecei a trabalhar no quarto dela. Usando os bambus, construí um berço sólido e seguro, entrelaçando cada haste com precisão. Em seguida, usei a lã para criar um colchão macio, que cobri com um tecido que eu tinha guardado. Quando finalmente terminei, dei um passo para trás e observei minha obra.
— Nada mal, Darien. Nada mal mesmo.
Arrumei o restante do quarto e pendurei um pequeno sino que peguei quando fui ver as ovelhas, criei um encanto que fazia o som dele acalmar qualquer pessoa que o ouvisse. Quando terminei, olhei para o ambiente agora acolhedor e seguro. Pela primeira vez, aquele lugar parecia... lar.
Ouvi um som vindo do quarto principal. A pequena estava acordando. Corri até lá, tentando tirar os fiapos de lã das mãos, e a encontrei sentada, balbuciando para si mesma.
— Bom dia, pequena — disse, pegando-a no colo. — Preparei algo especial para você. Venha ver.
Levei-a até o novo quarto. Seus olhinhos se abriram ainda mais enquanto olhava ao redor, como se estivesse absorvendo cada detalhe. Ela riu e balbuciou algo que só podia ser um sinal de aprovação.
— Espero que você goste, porque deu muito trabalho... e espero que o pastor da vila não venha até aqui com um forcado. — Dei uma risada nervosa. — Tomara que ele não note nada... ou, pelo menos, não descubra que foi o "demônio da montanha".
Enquanto ela explorava o novo berço, senti uma onda de felicidade. Pela primeira vez, aquele quarto parecia ter um propósito, e eu, um motivo para estar ali.
— Agora sim, pequena — murmurei, sorrindo para ela. — Temos um lugar só seu. E talvez... só talvez... eu esteja começando a me acostumar com isso.
Desde aquele primeiro dia, minha vida mudou completamente.
A rotina tranquila e meditativa que mantive por séculos foi substituída por dias imprevisíveis e noites interrompidas. Antes, ser o guardião da montanha já parecia um desafio suficiente, mas agora? Agora eu era também o guardião de uma pequena criatura que dependia completamente de mim. Às vezes, eu parava para refletir e acabava rindo de mim mesmo. Quem poderia imaginar que o grande Darien estaria lidando com fraldas?
Com o tempo, fui me adaptando. Já sabia de cor os horários em que ela acordava para mamar, quando começava a resmungar porque a fralda estava suja ou o momento em que ela se animava com o banho – algo que parecia ser o ponto alto do dia para ela. Descobri que, usando minhas habilidades, poderia criar pequenas chamas que flutuavam pelo quarto como estrelas, o que a fazia rir de uma forma contagiante. Confesso, era algo que me enchia de orgulho.
Também criei novos hábitos. Todas as manhãs, assim que ela acordava, eu a levava para fora para mostrar o nascer do sol. Seus olhinhos brilhavam ao ver as cores do céu, encantados com a luz e o calor. Era um momento que me fazia esquecer qualquer exaustão. Depois, eu a colocava no berço improvisado que fiz com bambus e pedras, onde ela passava horas balbuciando e tentando agarrar qualquer coisa ao seu alcance.
Os meses foram passando, e a rapidez com que ela crescia era surpreendente. Aos poucos, começou a sustentar a cabeça sozinha. Suas mãos, antes frágeis, agora exploravam o mundo com determinação, e as pernas estavam sempre em movimento, como se ela quisesse sair correndo sem nem saber andar. Cada pedaço do mundo ao seu redor era uma descoberta fascinante.
Certa manhã, enquanto ela ainda estava no berço, eu me sentei no chão com uma pequena madeira nas mãos. Decidi esculpir algo para ela – um pequeno dragão. Parecia apropriado, considerando nossas origens. Era um trabalho bem simples, mas fiz com muito cuidado, concentrando-me nos detalhes. Enquanto esculpia, não pude evitar um sorriso ao perceber as mudanças em minha vida. Um grande e antigo guerreiro que agora passava horas criando brinquedos.
Um som suave interrompeu meus pensamentos. Levantei os olhos e a vi no berço, apoiada nas mãos e nos joelhos, balançando-se levemente para frente e para trás. Franzi o cenho, curioso.
— Ei, o que você está tentando fazer aí? — perguntei, com uma sobrancelha erguida.
Ela me olhou com determinação. Então, com um pequeno impulso, moveu um joelho para frente e arrastou uma das mãos. Depois o outro joelho. Fiquei estático antes de um sorriso largo se formar no meu rosto.
— Está... engatinhando? — murmurei, surpreso e divertido.
Inclinei-me mais perto, observando-a com atenção. Cada movimento era hesitante, mas ela não parava, vinha em minha direção, balbuciando algo que parecia encorajá-la a continuar. Era impossível não rir.
— Ora, você está decidida a chegar até mim, não é? — falei, estendendo as mãos para incentivá-la. — Venha, pequena. Estou aqui.
Passo a passo, ela avançava, com as mãos e joelhos se movendo com mais firmeza a cada tentativa. Quando finalmente chegou perto o suficiente, segurou meu dedo com uma das mãos e tentou levantar. Rindo, senti uma onda de orgulho que não conseguia explicar.
— Parece que você está ficando mais forte a cada dia, não é? — disse, pegando-a no colo e girando-a no ar.
Ela riu, e o som encheu o quarto como uma melodia. Segurei-a perto, sentindo uma estranha plenitude que eu nunca havia experimentado antes. Estava claro para mim que não apenas ela estava mudando e aprendendo; eu também estava.
Três dias depois, decidi que era hora de levá-la para se conectar com a natureza ao nosso redor. Fomos até o rio, onde preparei uma vara de pesca enquanto a pequena ficava sob os cuidados de três pequenos demônios que invoquei para ajudar. Para manter tudo sob controle, escolhi formas que não a assustasse: um panda vermelho, um tanuki e uma coruja de olhos grandes. Cada um tinha sua tarefa. O panda e o tanuki brincavam com ela, distraindo-a, enquanto a coruja observava do alto de uma árvore.
Tudo parecia tranquilo, até que senti uma mudança no ar. Uma energia obscura se aproximava. Minhas costas se arrepiaram antes mesmo de ver as sombras deslizando pela floresta. Virei imediatamente, observando as formas emergindo das árvores, vindo em nossa direção. Olhei para os pequenos demônios, que imediatamente se posicionaram ao redor dela, emitindo sons de alerta, mas as criaturas das sombras continuaram.
Foi o suficiente para fazer meu sangue ferver.
Levantei-me rapidamente, e uma aura feroz emanou de mim. O solo ao meu redor tremeu, e as criaturas hesitaram. Meus olhos brilharam como jade, e em um único movimento, liberei uma explosão de energia que atingiu todas as criaturas, reduzindo-as a cinzas. Quando a poeira baixou, corri até a pequena, para verificar se ela estava bem. Esperava vê-la assustada, mas, para minha surpresa, ela estava...
— Você está… batendo palmas? — perguntei, atônito.
Ela sorriu e, com um brilho travesso nos olhos, tentou imitar o rugido que eu havia dado. O som saiu como um pequeno rosnado desafinado, mas o esforço dela me fez rir como eu não ria há séculos.
— Certo, pequena dragãozinha, você está aprendendo rápido. — Peguei-a nos braços e balancei suavemente. — Mas da próxima vez, vamos evitar criaturas das sombras, combinado?
Ela sorriu, como se tivesse entendido, e se aconchegou no meu peito. Olhei para os demônios, que ainda estavam em alerta, e acenei em agradecimento. Eles voltaram às suas formas calmas, mas não sem lançar olhares confusos para mim. Eu sabia o que estavam pensando.
E eu mesmo ainda me perguntava: como foi que minha vida virou isso?
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