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Relógio do Fim

O Mundo Não É Mais o Mesmo

O cheiro era o primeiro a te dizer que o mundo havia morrido. Um fedor denso e metálico de ferrugem e fumaça, misturado ao dulçor nauseabundo da decomposição e a um travo constante de poeira que impregnava tudo. As ruas, antes avenidas vibrantes de carros e vozes, agora eram artérias congeladas de metal retorcido, carcaças carbonizadas de veículos e silhuetas imóveis que um dia foram pessoas. Prédios, antes arranha-céus altivos, inclinavam-se como titãs feridos, suas janelas quebradas transformadas em orbes vazias que refletiam um céu eternamente cinzento e doente. Gritos, ecos distantes de desespero e conflito, eram a trilha sonora de um planeta transformado em um cenário de guerra constante — não entre exércitos, mas entre sobreviventes desesperados, rosnando por migalhas. O medo, afiado e omnipresente, era o novo idioma da humanidade. A esperança... essa parecia extinta.

Mas em meio à desolação asfixiante, havia alguém que ainda sonhava com algo diferente. Lucas era apenas um jovem, mal na casa dos vinte, um garoto comum que passava os dias imerso em mundos fantásticos. Novels, mangás e animes eram seu refúgio, alimentando a imaginação com reinos mágicos, heróis improváveis e finais felizes onde o bem sempre vencia. Agora, aprisionado neste pesadelo real, ele se perguntava se aqueles sonhos serviam para alguma coisa além de zombar de sua nova realidade.

Sentado no canto mais escuro e empoeirado de sua sala, as costas apoiadas contra uma parede úmida e fria, Lucas observava a tela rachada de seu celular. O aparelho, uma relíquia inútil, não tinha sinal; era apenas um espelho para a sua própria inação. Seus olhos estavam secos, a capacidade de chorar esgotada, mas o coração doía como nunca. Uma dor oca, perfurante, que vibrava em cada batimento.

"E agora? O que eu faço...?" ele sussurrou, a voz rouca, quase inaudível no silêncio pesado da casa. "Meus pais... meus amigos... meus animes... tudo acabou. Só restou... eu."

Uma onda de raiva súbita e avassaladora o atingiu. Num impulso desesperado, ele se levantou, cambaleando, e começou a quebrar tudo ao seu redor. Livros foram jogados contra a parede, suas páginas outrora coloridas e cheias de histórias agora rasgadas e sem sentido. Cadeiras viraram, madeiras estalaram. Ele gritou, praguejando contra o destino cruel, enquanto as lágrimas, finalmente, irrompiam, quentes e amargas, escorrendo por um rosto sujo de pó e desespero. Chorou por horas, por tudo que perdera, por não saber como seguir, por ter sido abandonado em um mundo que não fazia sentido.

Com o estômago roncando dolorosamente, arrastou-se até o que um dia fora sua cozinha. Encontrou uma última fatia de pão mofado, ressecado e quase sem sabor. Engoliu-o como se fosse um banquete, cada migalha um lembrete da fome que o consumia. Sentado à mesa quebrada, encarou o vazio. O silêncio da casa, pela primeira vez, parecia mais alto que os gritos sufocados de fora. Um silêncio que o esmagava.

Horas se arrastaram, marcadas apenas pela sombra que se movia lentamente na parede. A confusão e os ruídos lá fora, que antes urravam em um inferno constante de sirenes, tiros e gritos, diminuíram para um murmúrio distante, quase um lamento. Era uma trégua, uma brecha na insanidade, e Lucas sabia que precisava aproveitá-la. Precisava de água, de comida de verdade. Precisava procurar... qualquer coisa.

Ao abrir a porta da frente, a realidade o golpeou com a força de um soco. Um grupo de figuras famintas brigava na esquina por um pacote de arroz dilacerado. Um corpo estendido na calçada sangrava em silêncio, uma mancha escura e crescente no concreto. Um homem com um olhar vazio atravessava a rua, segurando uma faca suja, a lâmina ainda úmida. Lucas recuou, trêmulo, a porta batendo com um baque surdo, o coração acelerado em seu peito. Que merda de lugar era aquele? Ele se perguntava, encostando-se na madeira, tentando respirar, o gosto amargo do medo na boca.

Mas a necessidade era mais forte que o terror. Esperou, observando pela fresta da janela, até que a rua se esvaziasse novamente. E foi então que viu algo... diferente.

A poucas quadras dali, destacando-se na paisagem de ruínas, havia uma casa. Uma casa que desafiava a lógica daquele mundo. Estava intacta. Limpa. Não havia sujeira em suas janelas, nenhum sinal de pilhagem ou destruição em sua fachada de tijolos vermelhos e telhado bem cuidado. Fechada, sim, mas irradiava uma estranha aura de intocabilidade sob a luz opaca do entardecer. Era como se algo o chamasse até ali, um instinto inexplicável, uma promessa de ordem em meio ao caos.

Lucas se aproximou com cautela, cada passo ecoando em um silêncio que parecia absorver o som. Os portões de ferro forjado estavam trancados, mas ele não hesitou. Pulou o muro, arranhando o braço com a pressa, a adrenalina pulsando em suas veias. Foi até a janela lateral, testando a tranca com um puxão. Firme. Sem pensar duas vezes, pegou uma pedra pesada do chão e arremessou-a contra o vidro. O som do estilhaço cortando o ar foi seguido por uma dor aguda: ele cortou a mão ao se espremer pela abertura, o sangue quente escorrendo.

Lá dentro, ficou paralisado. A casa estava... perfeita. Limpa. Sem poeira, sem teias de aranha, sem qualquer sinal do apocalipse que assolava o mundo exterior. Os móveis estavam cobertos por lençóis brancos, as cortinas imaculadas. Um leve aroma de lavanda pairava no ar, uma memória distante de tempos de normalidade.

"Isso... não faz sentido..." Lucas murmurou, a voz em choque. Sua mente, já frágil, lutava para conciliar a visão com a realidade.

De repente, sua cabeça começou a latejar com uma dor lancinante, como se um prego estivesse sendo martelado em suas têmporas. A visão escureceu por um instante, o mundo se contorcendo em borrões cinzentos e vermelhos. Vozes, múltiplas e indistintas, sussurraram dentro de sua mente, um coro caótico de pensamentos que não eram seus:

"Nada é real. Tudo que você procura... é imperfeito. O ciclo se repete. Escolha. Você não está sozinho."

Ele caiu de joelhos, ofegante, as mãos na cabeça, tentando abater o turbilhão. O terror o envolveu. Mas logo tudo passou, tão rápido quanto veio. Como se nada tivesse acontecido, exceto por uma leve tontura e um zumbido persistente em seus ouvidos.

Levantando-se com dificuldade, Lucas explorou o lugar, a cautela misturada com um senso de irrealidade. Encontrou comida: pães e bolachas ainda embalados, intocados pela sujeira do mundo exterior. Roupas dobradas, limpas, intactas, cheirando a amaciante. Pegou uma sacola de lona que achou no chão e começou a enchê-la. Algo naquela casa não estava certo, era óbvio, mas ele precisava daquilo. Precisava sobreviver.

No porão, uma escadaria de madeira que rangia a cada passo levava a um espaço escuro e úmido. Ali, escondida sob alguns panos velhos, encontrou uma caixa misteriosa, feita de uma madeira escura e polida. Dentro, apenas um relógio. Um modelo antigo, de ponteiros, com uma moldura de metal oxidado, mas que funcionava perfeitamente. Um brilho sutil emanava do mostrador, quase imperceptível.

"O que é isso...?" perguntou em voz alta, a curiosidade sobrepondo-se ao medo. "Como ainda pode estar funcionando?"

Não teve tempo para pensar mais. Gritos agudos e tiros secos começaram a surgir do lado de fora. A confusão voltava, mais próxima e mais violenta desta vez. O tempo estava se esgotando. Lucas correu de volta até a janela por onde entrou, ignorando os cacos de vidro no chão. Cortou mais a mão, machucou o pé ao pular novamente o muro, mas conseguiu sair. Mancando, com a sacola pesada pendurada no ombro, ele correu de volta para sua própria casa, desesperado para se trancar.

Tremendo, largou tudo no chão, as bolachas e as roupas espalhadas. Deitou-se na cama suja, encarando o teto. A dor na mão ardia, latejava em um ritmo constante. O estômago ainda roncava, mas o que mais doía era a ausência. A ausência de tudo.

A chuva começou a cair lá fora, pesada, batendo no telhado. Trovões cortaram o céu, iluminando o quarto escuro por instantes fugazes. E, no silêncio pesado daquela noite, Lucas chorou novamente, desta vez sem raiva, apenas uma profunda e exaustiva tristeza.

Não sabia por quanto tempo aguentaria. Nem o que significava aquele relógio. Mas, no fundo de seu ser, uma estranha sensação se formava. Uma certeza silenciosa de que... o mundo ainda não tinha acabado. Pelo menos, não para ele. Algo havia mudado. E ele estava no centro disso.

Esperança

O despertar foi um sobressalto, mas não para a realidade gélida do colchão sujo. Em vez disso, Lucas abriu os olhos para um quarto banhado em luz dourada. As paredes, antes úmidas e rachadas, estavam impecavelmente limpas, adornadas com pôsteres de seus animes favoritos. O som distante de risadas infantis e o cheiro inconfundível de bolo fresco preenchiam o ar, uma fragrância tão poderosa que parecia um portal para um passado que ele jurava ter perdido. Ele piscou, confuso, o corpo leve, livre da dor e da fome. Estava de volta em casa... mas não na mesma casa. Era como se o apocalipse fosse apenas uma lembrança distante, um pesadelo da qual ele finalmente havia escapado.

Sua mãe surgiu na porta do quarto, um sorriso doce e acolhedor iluminando seu rosto, os olhos brilhando com o mesmo amor que ele tanto lamentava. "Filho, já passou da hora", ela disse, a voz melodiosa, ressoando nos corredores como uma melodia há muito esquecida. "Larga um pouco esse celular e vem comer um pedaço de bolo. Fiz agora, está fresquinho."

Lucas congelou. A imagem dela, viva, ali, diante dele, era demais para suportar. Seus olhos se encheram de lágrimas que queimavam, um rio que ele pensou ter secado. Correu e a abraçou com uma força desesperada, como se temesse que ela se dissolvesse a qualquer segundo, voltasse para o limbo de onde viera. Enterrou o rosto em seu ombro, o cheiro de lavanda preenchendo seus pulmões. "Me perdoa, mãe... por não ter escutado, por não ter estado presente... me perdoa..." As palavras saíram abafadas, uma confissão de todas as falhas e arrependimentos de uma vida inteira.

Mas então, uma voz cortou o momento, não da sua mãe, mas sussurrando diretamente em sua mente, um eco seco e inabalável que perfurava a ilusão:

"Não acredite em tudo que vê. Este mundo é imperfeito. E você... você pode mudá-lo."

A voz não era cruel, mas era fria, uma agulha de consciência perfurando o véu de uma felicidade forjada. Lucas sentiu o calor do abraço materno diminuir, o cheiro de bolo se dissipar. A luz dourada do quarto tremulou, as cores se desbotando para tons de cinza e marrom.

Lucas acordou de novo, dessa vez para a frieza do colchão sujo, no quarto escuro e abafado. O cheiro de mofo e sangue seco retornou como um soco no estômago, um lembrete brutal e inegável da realidade. Estava de volta ao seu inferno particular – se é que aquilo podia ser chamado de real.

Sua mão ainda sangrava, a dor fantasma em sua perna persistia, e o relógio misterioso, que antes pulsava suavemente, agora piscava em um padrão frenético e errático. Na tela, uma data brilhava com uma intensidade alarmante: 2050. A cada piscar, a luz se tornava mais forte, quase dolorosa, e a data mudava, saltando entre anos e números incompreensíveis antes de voltar para o 2050.

"Esse troço tá quebrado..." Lucas murmurou, tentando ignorar o incômodo que se transformava rapidamente em um medo gélido.

Preparou uma refeição improvisada com o que restava em sua sacola: uma bolacha ressecada e um gole de água morna. Era um banquete, considerando os padrões daquele mundo em ruínas, mas a dor em seu peito era maior que a fome. Ao olhar pela janela, percebeu que o caos lá fora havia diminuído mais uma vez. Os gritos eram esporádicos, os tiros mais raros. Era sua chance de buscar mais suprimentos, principalmente água potável.

Antes de sair, o relógio brilhou novamente, dessa vez com uma violência que o fez cambalear. Sua visão escureceu por instantes, e em sua mente surgiram imagens fragmentadas e um número repetido em cada canto da consciência, como um mantra infernal: 2030. 2030. 2030. Ele se segurou na parede, a respiração presa na garganta.

"Eu tô... ficando louco?" Ele sacudiu a cabeça, os cabelos sujos grudando na testa. Não havia tempo para delírios. Precisava de água.

Caminhou até o posto de gasolina abandonado mais próximo, o corpo tenso, os sentidos em alerta máximo. Ao se aproximar, viu uma figura adolescente agachada, enchendo duas garrafas com água pura que escorria lentamente de uma torneira enferrujada. Água pura. Ouro líquido naquele inferno.

O primeiro instinto de Lucas foi atacar, roubar. O segundo, implorar. Mas algo, talvez a exaustão ou a lembrança de seu próprio desespero, o fez optar por negociar. "Ei... você quer trocar uma dessas por comida? Tenho algumas bolachas em casa."

O garoto se encolheu, tenso, as garrafas apertadas contra o peito. Ele parecia uma versão mais jovem de Lucas: assustado, desconfiado, com roupas em farrapos e um olhar de quem já tinha visto demais. "Água é mais valiosa que comida", ele respondeu, a voz embargada pelo medo e pela fome. "Você sabe disso. Sem ela, o mundo ficou assim."

Lucas engoliu seco. A inocência no rosto do garoto, misturada à sua sabedoria cruel sobre o mundo, atingiu-o. "Pode me seguir", Lucas disse, estendendo a mão para um gesto de trégua. "As bolachas estão num lugar seguro. A gente vai rápido, antes que a confusão volte."

O adolescente hesitou por um longo momento, os olhos fixos na mão estendida de Lucas, procurando por qualquer sinal de traição. O silêncio tenso pairou entre eles, quebrado apenas pelo vento que sussurrava entre as ruínas. Finalmente, com um aceno quase imperceptível, o garoto assentiu e seguiu Lucas, mantendo uma distância cautelosa.

Correram pelas ruas desertas, desviando de escombros, buracos e cadáveres inchados que jaziam como marcos de um tempo esquecido. Ao menor sinal de gritaria, de um ruído suspeito vindo de becos escuros, eles apressavam o passo, os pulmões ardendo, o medo impulsionando-os. Ao chegarem à casa de Lucas, ele trancou a porta com a pouca força que lhe restava e respirou aliviado, escorregando para o chão.

"Pode dormir aqui, se quiser. Quando o caos começa, nunca sabemos quando termina." Lucas ofereceu, o gesto de bondade soando estranho até mesmo para seus próprios ouvidos.

"Meu nome é Lucas", disse o garoto, a voz baixa, quase um sussurro.

O Lucas mais velho empalideceu, o sangue escoando de seu rosto. "Como assim... o mesmo nome?" O choque, misturado a uma estranha familiaridade, o atingiu em cheio.

"Você... tem alguém? Família?" perguntou Lucas, o anfitrião.

O garoto sacudiu a cabeça. "Não. Só eu. Me criei sozinho. Nunca conheci meus pais. Uma senhora me criou e me disse que... o mundo não é o que parece."

"Como assim?" Lucas sentiu um arrepio subir pela espinha. As palavras da voz em sua mente voltaram: "Não acredite em tudo que vê. Este mundo é imperfeito."

"Ela disse que tudo isso... pode ser só um sonho."

Lucas não soube o que responder. Apenas entregou as bolachas, e os dois ficaram um tempo em silêncio, mastigando a comida seca, sentindo o estranho conforto da companhia. Pela primeira vez em muito tempo, Lucas se sentiu menos sozinho. Havia outro "ele", outro Lucas, em um mundo de milhões, e isso, de alguma forma, era uma esperança frágil.

Mas então... o relógio brilhou novamente.

Não era um brilho suave. Era uma explosão de luz ofuscante, branca e violenta, que se projetou do seu pulso para preencher o quarto. O ar estalou com uma energia estática e vibrante.

O tempo parou.

Literalmente.

Não de forma metafórica. O mundo congelou. Tudo ficou em suspensão. O movimento das partículas de poeira no ar. Os sons distantes da cidade. Até mesmo a respiração do garoto Lucas, que estava a poucos metros dele. Lucas tentou gritar, mas sua voz não saía, aprisionada na garganta. Ele tentou tocar o outro garoto, mas sua mão atravessou a pele como se fosse ar, sem nenhuma resistência. O mundo estava congelado, mas Lucas estava estranhamente fora dele, um espectador invisível.

E então, a palavra ecoou, não no ar, mas diretamente em sua mente, um som oco e perturbador: "2030..." E com ela, uma silhueta. Era alta, distorcida, feita de sombras e rachaduras, flutuando no fundo de sua mente. Tinha olhos onde não deveria haver olhos, e esses olhos pulsavam com uma luz escarlate. O terror o dominou.

E então tudo ficou escuro.

Lucas acordou, ofegante, no mesmo canto sujo da casa, o corpo pesado, o coração martelando no peito. O relógio em seu pulso estava apagado, silencioso. Correu até o garoto.

"Lucas?! Está bem?!"

O menino piscou, confuso. "Tô sim... por quê?"

"Nada", Lucas recuou, a voz embargada, os olhos fixos no rosto do outro Lucas. "Nada aconteceu?"

"Não... por quê?"

Lucas se afastou, respirando fundo, as mãos tremendo. Nada fazia mais sentido. Os limites entre o real e o irreal haviam se desfeito. A falsa realidade, o tempo parado, a silhueta, as vozes, o ano 2030... Estaria mesmo ficando louco? Ou... estaria começando a despertar para algo muito maior? E o que diabos era aquele relógio? Ele o largou, e o relógio não se quebrou, apenas vibrou e se fixou na data 2050 novamente. Um lembrete frio e constante de que ele era uma peça em um jogo que ainda não compreendia.

A fratura do tempo

O despertar veio, não com o som familiar do mundo lá fora, mas com o pulsar insistente do relógio em seu pulso. Não um tique-taque mecânico, nem um alarme vibrante, mas um batimento rítmico, como um coração ansioso martelando contra sua pele. Suas luzes internas vibravam no escuro do quarto, projetando sombras geométricas e dançantes nas paredes rachadas. Lucas piscou, a mente turva, tentando entender se ainda era a escuridão da noite ou se o dia já havia começado lá fora – mas a janela parecia mostrar ambos ao mesmo tempo: um céu cinzento, dividido em manchas de luz e trevas que se contorciam, como uma pintura abstrata.

O garoto Lucas ainda dormia profundamente no canto do quarto, o rosto calmo, alheio ao tormento que se desenrolava no pulso do outro Lucas. O contraste entre a paz do menino e a crescente agitação de sua própria mente era perturbador.

De repente, as palavras surgiram no visor do relógio, brilhando com uma intensidade cruel por apenas um segundo antes de sumirem, como se nunca tivessem existido:

"Não confie nele."

A mensagem o atingiu como um soco no estômago, tão visceral quanto a dor física. O quê...? Lucas piscou, sacudindo a cabeça, tentando clarear a visão, mas as palavras haviam desaparecido sem deixar vestígios. Por um instante, sentiu um impulso avassalador de arrancar o relógio do pulso, de jogá-lo longe, de se livrar daquele peso enigmático. Mas algo – talvez o medo do desconhecido, talvez uma curiosidade mórbida que o prendia àquela nova e terrível realidade – o impediu.

A casa parecia mais silenciosa do que o normal, um silêncio denso e opressor que Lucas começava a associar com a anormalidade. Silêncio demais. Ele se levantou, os músculos tensos, e andou com cautela pelos corredores, seus passos ecoando no vazio. E então, notou. As paredes haviam mudado. Havia fotos que não estavam lá antes – retratos de famílias desconhecidas, paisagens serenas que não combinavam com o cenário apocalíptico lá fora. Um espelho, que antes estava quebrado, agora parecia mais novo, intacto, refletindo um rosto que parecia o seu, mas com uma estranha frieza. Uma planta seca na noite anterior, um emaranhado de galhos mortos, agora florescia vigorosamente, suas pétalas vibrantes e cheirosas como se fosse primavera.

"Algo está errado com o tempo", sussurrou Lucas, a voz um fio, o suor frio escorrendo por sua testa. A sensação de que a realidade estava desmoronando ao seu redor, pedaço por pedaço, era quase insuportável.

No quarto ao lado, que antes estava vazio, Lucas encontrou uma caixa velha, de madeira escura e empoeirada, escondida sob tábuas soltas do chão. Ele a puxou com dificuldade, a tampa rangendo ao ser aberta. Dentro, havia cadernos com páginas amareladas, finas e frágeis, folhas soltas com anotações frenéticas e pedaços de jornais antigos colados com fita adesiva desgastada. Letras trêmulas em tinta azul, quase desbotadas pelo tempo, preenchiam as páginas, contando uma história que parecia se desdobrar diretamente de seus pesadelos:

"Tudo começou com as fendas. Elas não estão nos céus, como muitos pensam... estão no tempo. A própria realidade colapsa de dentro pra fora, desfiando-se como um tecido velho. As pessoas acham que é guerra, doença, aquecimento global, o fim do mundo como o conhecemos. Mas não é. É o tempo que está quebrando, se fragmentando, se repetindo em ciclos sem fim. Estamos todos presos em um loop, condenados a reviver o fim, sem nunca aprender com ele."

A assinatura no final da página, em uma caligrafia um pouco mais firme, dizia apenas: Dra. Lúcia G. Ferraz. Lucas lembrou-se do nome, da mulher na "sala de contenção", aquela que disse que ele estava "fraturado entre versões". As peças começavam a se encaixar, mas a imagem que se formava era de um quebra-cabeça de terror.

Uma anotação solta, escrita em vermelho vibrante, parecia ter sido feita durante um momento de desespero, a tinta borrada como se as palavras tivessem sido escritas às pressas:

"O Relógio é um marcador. Um guia. Mas também é uma chave. A chave para a prisão, para a liberdade... ou para a destruição."

Lucas folheou os cadernos com as mãos tremendo, a adrenalina o mantendo em alerta. Mais adiante, em uma letra que parecia quase suplicar, lia-se:

"Vi um menino ontem. O mesmo rosto, o mesmo nome. Ele está em looping, sem saber. Mas vai saber. Ele é parte da solução... ou do problema."

A paranoia o atingiu com força. O menino Lucas. O mesmo rosto. O mesmo nome. "Não confie nele." A mensagem do relógio ecoou, agora com um peso aterrorizante. Ele olhou para o quarto, onde o garoto ainda dormia inocentemente, e uma pontada de desconfiança fria perfurou seu peito. Seria ele uma ameaça? Uma parte daquela loucura que o perseguia?

Um estalo alto ecoou na sala, arrastando Lucas para fora de seus pensamentos perturbados. Ele virou-se, assustado, o corpo tenso. O sofá, que antes estava em um ângulo reto, agora estava torto, inclinado de forma estranha, como se tivesse sido empurrado com violência. A cortina da cozinha tremia sem vento, balançando de um lado para o outro. Um prato caiu da prateleira sozinho, com um som seco, rachando em três partes perfeitas no chão. E por um segundo, apenas um segundo, Lucas jurou ter visto uma sombra escorregar no teto, movendo-se como uma rachadura viva na própria realidade, um rasgo escuro que se abria e se fechava em um piscar de olhos.

O tempo estava escorregando, e Lucas sentia isso em seus ossos. A casa, antes um refúgio, agora parecia um campo minado de anormalidades.

Ele correu de volta para o quarto, seu coração martelando, e viu o garoto Lucas acordado, olhando para ele com olhos arregalados, a expressão sonolenta. "Tudo bem?", perguntou o menino, a voz baixa, quase um sussurro.

Lucas hesitou, a mensagem do relógio "Ele já esteve aqui antes" queimando em sua mente. Deveria confiar no menino? O que ele sabia? O que ele era? "Tá sim... só... acho que dormi demais."

"Que dia é hoje?", perguntou o garoto, com uma simplicidade infantil que, naquele momento, soou como a pergunta mais complexa do universo.

A pergunta o paralisou. A boca de Lucas se abriu, mas nenhuma palavra saiu. Ele não sabia. Não fazia ideia. A percepção o atingiu com a força de um raio: ele havia perdido a noção do tempo. Os dias se misturavam, as horas se embaralhavam. O mundo era um borrão de presente, passado e futuro.

Desesperado por ar, por qualquer coisa que fizesse sentido, Lucas saiu para respirar ar fresco. As ruas estavam estranhamente quietas, um silêncio sepulcral que não pertencia ao caos que ele conhecia. Um vento gélido cortava as construções em ruínas, trazendo com ele o cheiro metálico da ferrugem e do esquecimento. Era uma quietude que gritava.

E foi então que ele viu.

Do outro lado da rua, parado entre duas sombras longas que se estendiam dos prédios demolidos, um homem o observava. O mesmo rosto de Lucas. Os mesmos olhos. Mas com uma barba por fazer, cicatrizes profundas e linhas de expressão que denunciavam uma vida de sofrimento e conhecimento. Ele não era mais um garoto. Era um homem cansado, marcado pela guerra do tempo.

Eles se encararam por longos segundos, o Lucas mais novo congelado pelo medo e pelo choque, o coração disparado em seu peito. O outro Lucas – sua própria versão do futuro? – apenas acenou com a cabeça, um gesto lento e pesado, como quem diz: "Agora é com você. A decisão é sua."

E então, ele desapareceu. Não em uma explosão de luz ou fumaça, mas de forma gradual, desfazendo-se em partículas de ar e sombra, como se nunca tivesse estado ali, mas ao mesmo tempo, sempre estivesse.

Lucas caiu de joelhos, ofegante, a cabeça girando, a mente em frangalhos. O relógio, antes pulsante, agora estava em um silêncio assustador, mas a tela brilhava com uma nova e terrível inscrição:

2030.00.00 - REINÍCIO INICIADO

Um reinício. Uma falha. Ele estava preso. E a verdade... a verdade estava apenas começando a se revelar.

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