As cordas apertavam meus pulsos com tanta força que sentia formigamento nos dedos. A carroça sacudia sobre o chão de terra batida, e a madeira áspera sob mim estava suja de lama e sangue seco. O cheiro era pior que o gosto de fome.
Eu só queria um peixe. Um mísero peixe para colocar na panela… e acabei aqui, amarrada, sendo levada como mercadoria.
Engraçado como o destino gosta de repetir tragédias. Ou talvez só esteja rindo da minha cara.
Quando eu tinha dois anos, minha mãe também foi levada.
Lembro da última coisa que ela fez: me enfiou dentro de um armário velho, cobriu minha boca com os dedos e sussurrou com firmeza: "Fica quietinha, Hua. Fecha os olhinhos. Não importa o que ouvir, não sai.”
E eu obedeci.
Mesmo quando os homens entraram arrombando tudo, gritando que ela seria vendida para pagar dívidas. Mesmo quando ela chorava, mesmo quando ouvi uma das tábuas do chão se partindo de tanto que ela lutou. Diziam que ela era de um bordel, que fugiu sem pagar. Eu não sei se era verdade.
Talvez tenham inventado isso só pra justificar o que fizeram.
Mas comigo… comigo é diferente, não é?
Não teve dívida. Não teve bordel.
Teve só a fome. E um monte de homens ruins que não se importam com leis, nem com a tal abolição da escravidão que os anciãos da vila juravam existir.
Eu devia ter acreditado nos boatos…
Diziam que meninas estavam sumindo, levadas no meio da noite. Que caravanas clandestinas passavam na estrada ao norte. Eu achei que estavam só tentando me assustar.
Mas aqui estou.
Na carroça.
Amarrada.
E dessa vez… não tem armário para esconder-me.
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O tempo dentro da carroça parecia não passar. A cada solavanco, meus ossos batiam contra a madeira, e minha cabeça latejava com o calor abafado. Paramos algumas vezes — em uma delas, ouvi choro. Em outra, gritos abafados. Na última, o portão de madeira rangeu e alguém foi atirado ali dentro como um saco de batatas.
Era uma menina.
Ela caiu ao meu lado, o corpo fino tremendo. Tinha cabelo castanho claro, desgrenhado, e olhos castanhos que se arregalaram ao me ver — ou talvez ao perceber que estava presa como eu.
Até a boca dela estava amarrada com um pano sujo.
Os pulsos, marcados de sangue seco, estavam atados para trás.
— Essa daí precisava era de focinheira — um dos homens riu alto do lado de fora, enquanto a carroça balançava com a porta sendo fechada de novo.
A menina tentou se erguer, mas logo desistiu. Seus olhos se encheram d’água e ela encolheu os joelhos como se pudesse desaparecer. Eu me aproximei com cuidado, mesmo sem saber o que dizer. Não adiantava falar. Aqui dentro, não existiam nomes. Nem vozes. Só o barulho dos grilhões e dos gritos distantes que vinham de fora.
O cheiro de suor, poeira e desespero era sufocante.
Algum tempo depois — não sei quanto — a porta se abriu de novo. A luz do fim de tarde queimou meus olhos por um segundo. Um dos homens entrou. Ele era grande, com o rosto queimado de sol e dentes amarelados. Trazia uma tigela de arroz murcho e um pouco de água em um pote de barro rachado.
— Você. Come. — Ele apontou pra mim.
Eu fiquei em silêncio. Não queria. Não conseguia. Comer alguma coisa ali dentro parecia errado, como aceitar aquele destino. Como desistir.
— Eu disse pra comer, vadia — ele rosnou, e deu um passo pra dentro.
Virei o rosto.
Foi rápido. Ele me agarrou pelos cabelos, puxou minha cabeça pra trás e enfiou os dedos na minha boca. Tentei morder, mas ele foi mais forte. Empurrou o arroz à força, me fazendo engasgar.
— Se morrer, não vale nada. Entendeu? Se você morrer, eu perco dinheiro — cuspiu, empurrando a tigela no meu colo. — Agora come como um bicho obediente. Ou vou te mostrar como cachorro apanha quando morde.
Eu engoli seco. O gosto do arroz misturado ao sal das minhas lágrimas fez meu estômago revirar. A menina ao lado me olhava em silêncio, o pano ainda amarrado à boca. Eu não sabia o nome dela. Mas pela primeira vez, vi nos olhos de outra pessoa o mesmo medo que sentia:
a certeza de que estávamos sendo tratadas como coisas.
E talvez fosse isso mesmo.
Coisas podem ser vendidas.
Podem ser transportadas.
Podem ser esquecidas.
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O cheiro mudou antes mesmo da carroça parar. Era mais intenso, abafado, carregado de fumaça, carne seca e sujeira de muita gente amontoada no mesmo espaço.
Quando finalmente desceram a tampa traseira e nos empurraram para fora, meus pés tocaram o chão quente de um lugar que eu nunca tinha visto. Não era minha vila. Não era nem meu reino. As bandeiras penduradas nas construções e o símbolo dourado gravado na pedra central denunciavam que estávamos longe… muito longe de casa.
Eu não estava mais em Hwa-guk.
Estava no Império de Xiyuan.
A língua ainda era a mesma, mas o sotaque era diferente — arrastado, mais fechado, como se comessem as palavras antes de soltá-las. Meus ouvidos mal conseguiam acompanhar o que diziam, mas entendi o suficiente.
Estávamos em um mercado de servas clandestino.
Cercadas de grades altas, outras garotas — muitas jovens, algumas com roupas rasgadas, outras com olhos vidrados — eram tratadas como mercadoria. Havia homens negociando em voz baixa, moedas sendo passadas discretamente, nomes sendo riscados em listas.
Foi quando ouvi passos firmes e elegantes ecoando pelo chão de pedra.
Um homem entrou acompanhado de outro mais novo e de aparência comum. Mas havia algo no olhar do primeiro que não combinava com aquele lugar. Ele usava um manto simples, mas caminhava com uma postura autoritária, como se o mundo devesse se curvar.
O vendedor se adiantou, sorrindo de forma suja.
— Meu senhor! Procurando algo mais jovem, ou prefere as mais obedientes?
O homem sorriu, com um brilho cínico nos olhos.
—Obedientes são chatas. — Ele passou os olhos pelas garotas atrás das grades, parando por um momento em mim, mas sem demonstrar nada. — Quero servas novas. Bonitas. Inteligentes, se possível. Estou montando um harém discreto. Compreende?
O vendedor riu, nervoso.
—Claro, claro! Posso conseguir. O senhor tem o olhar refinado... Ali, por exemplo — ele apontou para mim com a cabeça. — Aquela é nova. Foi pega pescando, mas não parece doente. Bonita, não?
O homem se aproximou. Seus olhos eram escuros, mas profundos. Quando se abaixou para olhar nos meus, senti um arrepio — não de medo, mas de algo que não conseguia explicar.
Ele segurou meu queixo por um instante, com delicadeza fingida.
—Sim... essa serve. — ele se virou de volta para o vendedor. — Quantas dessas você tem? E de onde estão vindo? Eu quero mais.
—Bom... depende. Algumas vêm da fronteira de Hwa-guk... umas a gente encontra em estradas, outras vêm por caravanas de coleta... tem gente que nos ajuda, sabe como é...
O homem sorriu mais largo, puxando um saco com moedas pesadas que tilintaram no ar.
—Então me diga quem são esses ajudantes. Onde eu encontro mais meninas como essa.
O vendedor hesitou.
Foi o suficiente.
O homem mais jovem que o acompanhava assobiou baixo — e num piscar de olhos, soldados disfarçados surgiram pelos cantos da praça. O vendedor tentou correr, mas foi imobilizado com o braço torcido nas costas.
—Pela ordem do príncipe imperial de Xiyuan, vocês estão presos por tráfico humano, desacato ao tratado de fronteira e violação de contrato imperial — declarou o servo, firme, mostrando o selo real escondido no manto.
A multidão gritou, tentou fugir — mas estavam cercados.
O homem que me analisara se endireitou, e então percebi...
Ele não era um comprador qualquer.
Ele era o próprio príncipe.
—Reúnam todas as garotas — ordenou com frieza. — Nenhuma será devolvida ao mercado. A partir de hoje, serão levadas ao palácio imperial como servas contratadas sob proteção do selo real. Receberão abrigo, comida, e assinarão um contrato por tempo determinado.
A partir daqui… escolhem se recomeçam ou se se rendem.
Olhei para ele em silêncio, com os lábios trêmulos.
Eu não confiava em príncipes.
Mas nunca tinha visto um olhar como aquele…
Um que não me via como coisa.
Um que… me viu.
A carruagem balançava de forma mais suave que a carroça anterior, mas meu corpo ainda doía em cada ponto. Eu me sentia como uma folha presa no meio de um rio turbulento.
Pelo menos agora, minhas mãos estavam soltas.
Ainda havia grades do lado de fora, claro. E guardas. Mas era diferente.
Limparam nossos rostos com panos mornos e jogaram mantos por cima das roupas rasgadas. O príncipe não voltou a falar com ninguém. Apenas montou e sumiu com os soldados.
A menina da focinheira estava sentada do meu lado, agora com o pano fora da boca.
Ela ficava olhando pela fresta da madeira como se o mundo ainda fosse perigoso demais pra encarar de frente.
Foi ela quem falou primeiro.
— De onde você veio?
Virei um pouco a cabeça na direção dela.
— Fronteira sul de Hwa-guk. Uma vila pequena... sem nome grande o suficiente pra alguém lembrar. E você?
— Oeste de Xiyuan. Meu pai trabalhava em caravanas. Um dia não voltou. Depois vieram me buscar.
Ela engoliu seco e esfregou os pulsos, ainda marcados pelas cordas.
— Você acha mesmo que... vão deixar a gente ir embora?
A pergunta ficou no ar como fumaça.
Olhei pela janela também. O céu já estava alaranjado, e podíamos ver o contorno dos muros do palácio se aproximando à distância. Dourado, imponente. Uma prisão bonita ainda era uma prisão.
—Eu não sei — respondi com honestidade. — Eles falaram em contrato, em pagamento... mas se somos só servas, talvez tenhamos alguma chance. Talvez.
—“Alguma” não é certeza — ela murmurou.
Ficamos em silêncio por um tempo. A estrada fazia barulho sob as rodas. Os guardas falavam baixo lá fora, como se esse momento fosse o único de paz que nos permitiam.
—Meu nome é Lifen — ela disse de repente. — Esqueceram de trocar o meu ainda. Acho que não fui importante o bastante.
—Eu sou Hua Lian — falei baixo, como se dizendo em voz alta fosse me fazer perder de novo.
Lifen me olhou de lado, surpresa.
—Hua? Tipo... flor?
Assenti com a cabeça.
Ela sorriu pela primeira vez desde que nos jogaram juntas naquela carroça.
—Bonito. Combinou com você.
Pela primeira vez em dias, senti que ainda havia algo meu aqui dentro.
Mesmo que o nome fosse a única coisa que me restava, pelo menos era verdade.
—Acha que vão nos tratar bem lá dentro? — ela sussurrou, quando os portões começaram a se abrir.
—Não sei — repeti.
Mas dessa vez, minha voz tremia menos.
Porque mesmo sem certeza… eu queria descobrir.
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A carruagem parou com um solavanco, e os guardas abriram as portas sem dizer uma palavra. O portão do palácio era alto demais para que eu visse o céu.
Por um instante, parecia que o mundo tinha sumido — só existia aquele muro, as grades… e a gente.
Fomos levadas para um pátio coberto de pedra cinza. As colunas eram altas, de mármore gasto pelo tempo. À frente, uma mulher muito velha, com o cabelo preso em um coque apertado e a postura rígida como uma espada, já nos esperava.
—Novas? — a velha perguntou, sem tirar os olhos do pergaminho em mãos.
—Sim, madame — respondeu uma das servas de uniforme azul, que nos escoltava. — São resgatadas da patrulha imperial, todas aguardando registro.
—Tsc. Sempre mais bocas pra alimentar — resmungou a mulher, e só então levantou os olhos. Eram pequenos, fundos, e pareciam atravessar a gente como se quisessem encontrar sujeira escondida por dentro da alma.
Ela caminhou devagar, nos observando uma a uma. Passou por mim, por Lifen, e por outras meninas que eu ainda nem tinha reparado. Havia pelo menos umas oito ao todo, algumas bem mais jovens, outras com olhares já endurecidos.
—Essa aí está pálida demais — apontou para uma menina que tremia. — Acha que vai durar no Setor das Lavagens?
—Essa parece esperta — apontou Lifen. — Vai para as cozinhas. As da fronteira têm faro bom.
Quando chegou em mim, parou. Me encarou por longos segundos.
—Linda demais pra ficar no estoque comum. Vai dar problema. — Ela bufou. — Setor dos Refeitos.
—O quê...? — Lifen murmurou ao meu lado.
—Silêncio. — A velha estalou os dedos, e logo outras mulheres mais jovens, com roupas simples e o brasão bordado no ombro, se aproximaram.
—Vocês serão designadas a setores diferentes. A partir de agora, seus nomes podem ser alterados para registro interno. Os antigos não têm valor aqui. — Ela bateu o pergaminho com força na tábua ao lado. — Recebam as roupas. Troquem. Banho no pátio da ala leste. Depois disso, cada uma vai com sua tutora.
Uma pilha de tecidos dobrados foi jogada sobre uma mesa.
Nos separaram por pares e nos levaram para dentro. O palácio por dentro era ainda maior do que parecia. Paredes de madeira escura com entalhes refinados, corredores limpos como se ninguém pisasse ali. Mas era tudo silencioso.
Assustadoramente silencioso.
Nos despiram sem gentileza, jogaram água quase fria com ervas no corpo e esfregaram até minha pele arder.
Quando terminaram, me deram um quimono bege simples, com um laço escuro na cintura e os cabelos presos com um cordão de linho.
—Agora parece gente — murmurou uma das mulheres.
Voltamos ao pátio, onde a velha nos esperava de novo.
Haviam mulheres ali — muitas. Usavam hanfus longos, tecidos bordados, e o perfume que deixavam no ar era mais forte do que o cheiro das ervas que esfregaram na minha pele.
Elas estavam sentadas sob um toldo branco, tomando chá enquanto nos observavam como se fôssemos frutas em exposição.
As Damas-Chefes do Harém.
Cada uma era responsável por um setor, e agora… elas queriam novas servas.
Mas não bastava escolher a mais limpa ou a mais forte.
Elas queriam testar.
—Você. Lê isso — disse uma dama de vermelho, jogando um pedaço de papel para uma menina assustada. A garota gaguejou, tentou decifrar os traços simples, mas não conseguiu.
—Próxima. Essa aí só serve pra esfregar chão.
Mais uma, e mais uma. Algumas não sabiam ler. Outras sabiam, mas não conseguiam pronunciar bem. Uma foi mandada embora só por dizer "nobreza" com sotaque da fronteira.
As damas riam.
Não alto — mas com aqueles sorrisos contidos, venenosos.
—Essa tem olhos bons, mas vai virar isca de imperador se chegar perto demais.
—Cabelo bonito demais. Bota no turno noturno das cozinhas.
—Essa aí não tem chance, olha a cara de tonta...
Tudo era julgamento. Tudo era ameaça.
Quando chegou minha vez, uma dama de azul escuro me olhou de cima a baixo, segurando o leque fechado entre os dedos.
—Nome?
—Hua Lian — respondi.
Ela sorriu, debochada.
—Ainda acha que vai manter nome de flor aqui dentro?
A outra dama ao lado dela, mais jovem, de amarelo, sussurrou algo no ouvido da que usava roxo. A mulher de roxo nem se mexeu, mas seus olhos pousaram em mim.
Fria. Precisa. Como se estivesse calculando algo.
Ela se levantou lentamente. O silêncio se espalhou em volta.
Todas as outras pareceram dar um passo mental para trás.
O tecido roxo do vestido arrastava no chão como névoa enquanto ela se aproximava. Seus olhos eram escuros, sem calor. Sem pressa, ela tirou um pequeno leque de dentro da manga e o abriu diante de mim.
—Leia.
As palavras eram caligrafia antiga. Difícil. Mas eu… reconhecia.
Tinha aprendido com a velha da vila que me criou. Ela dizia que "quem sabe ler, sabe se proteger".
—"Servir com recato é a virtude da água, que se molda mas não quebra." — recitei.
Ela fechou o leque com um estalo.
—Sabe escrever?
Assenti. Ela não pediu prova.
—Você. Comigo.
Sem mais uma palavra, ela se virou e foi embora.
A dama de amarelo sorriu, quase como quem sente pena.
—Ela é do Setor Violeta. Provavelmente nunca mais volta.
Me puxaram para fora da fila. Lifen ainda estava lá, me olhando com olhos aflitos.
—A gente se vê? — ela sussurrou.
Não respondi.
Porque não sabia.
O harém era outro mundo.
Não havia poeira ali. Nem gritos. Nem cheiro de ferro ou suor. Só perfume de flores caras e incenso queimando. Os corredores eram largos, as janelas altas, e as paredes tinham pinturas de seda com cenas de montanhas e rios.
O chão era tão polido que meus pés descalços escorregavam sem querer. O silêncio era quase sagrado, interrompido apenas pelo som ritmado dos nossos passos.
A dama de roxo à minha frente andava rápido, e eu tentava acompanhá-la sem tropeçar no quimono limpo que agora vestia. Quando pensei que seguiríamos direto para algum aposento, ela parou de súbito diante de um portão lateral.
—Banho. De purificação. — disse, sem me encarar.
Duas servas abriram as portas, e eu fui empurrada para dentro de um cômodo de pedra com uma grande banheira fumegante no centro, cheia de pétalas de lótus brancas. A água era quente, o vapor fazia minha respiração queimar.
Me despiram sem cerimônia, como se eu não fosse ninguém, e esfregaram meu corpo com pasta de arroz e leite de arroz morno.
—Purificação do toque. Purificação da voz. Purificação do nome — murmuravam, como um ritual.
Quando me vestiram de novo, o tecido era mais leve e elegante que o anterior, e agora meus cabelos estavam presos em um coque simples, com uma fita lilás no alto.
Saímos pelos corredores do Pavilhão Violeta, e a dama à frente finalmente olhou por cima do ombro.
—Ouça com atenção — disse. Sua voz era calma, mas afiada como uma adaga. — A Consorte Rui está grávida de sete meses. E o imperador preza por ela como se fosse a última flor do jardim. Qualquer coisa que a estresse... pode custar caro. Pra você.
Engoli seco.
Ela continuou:
—Neste pavilhão, sua língua é sua serva, e não sua senhora. Fale pouco. Não confie em ninguém fora destes muros. E, principalmente, nunca se envolva com quem ronda a ala vermelha.
—Acha que está a salvo porque foi escolhida? Você foi escolhida porque pode servir. Se não servir, será descartada.
—E se por acaso levantar um dedo contra a Consorte Rui...
Ela virou-se por completo, e seus olhos estavam calmos, mas sem vida.
—...você morre. Entendido?
Assenti. Era a única resposta possível.
Passamos por mais dois corredores, e então as portas do Pavilhão da Consorte Rui se abriram.
Dentro, o ambiente era completamente diferente. Havia almofadas coloridas, bandejas com frutas, chá recém-preparado... e cinco mulheres sorridentes vieram até mim.
—Você que é a nova? Olha só, que menina linda! — disse uma delas, rindo com os olhos.
—Finalmente mandaram alguém decente! — outra comentou, ajudando a ajustar minha faixa. — Já estava cansada de lavar lençol sozinha.
—Seja bem-vinda, florzinha — disse a terceira, de forma tão suave que minha garganta apertou.
A mais alta delas, de expressão elegante, era claramente a chefe daquele grupo. Ela usava um vestido de linho refinado e tinha os cabelos presos com uma peça de jade violeta. A mesma mulher que antes parecia fria, distante, como gelo.
Agora sorria.
—Não precisa se assustar — ela disse, segurando minha mão com leveza. — Aqui, você está segura. Aqui, somos um lar. E a nossa Senhora... cuida de cada uma como se fosse sua própria filha.
As outras assentiram. Havia algo estranho naquela harmonia, mas… não parecia mentira.
Não parecia armadilha.
A líder apertou levemente minha mão.
—Você vai conhecê-la em breve. Mas antes… vamos tomar chá juntas. Você deve estar com fome, florzinha. Aqui ninguém serve de estômago vazio.
Essa coisa de me chamar de florzinha sem ao menos ter alguma intimidade comigo é de certo modo irritante!
—Por que... florzinha?
As meninas riram, mas sem deboche. Era como se já me tratassem com um carinho estranho pra um lugar tão severo.
—Porque você é a mais nova, ué — disse a mais baixinha, que parecia ter sempre um sorriso escondido nos lábios. — A mais novinha é sempre a flor do jardim. Mesmo que o jardim fique... num ninho de cobras.
—Especialmente por isso — completou a outra, ajustando a manga do kimono. — Aqui dentro, a gente forma muros umas pras outras. O harém não é lugar pra inocente sobreviver sozinha.
A líder, a mesma que antes parecia feita de gelo, agora se sentou com a postura graciosa e apontou para as demais com um gesto tranquilo.
—Vamos nos apresentar. Ela merece saber com quem está lidando, certo?
A primeira a falar foi a sorridente.
—Sou Mei, tenho vinte e um. Cuido das roupas da consorte. Lavo, dobro e passo o dia reclamando dos lenços de seda que ela ama usar — disse rindo.
A baixinha se adiantou:
—Sou Rin, dezenove. Limpo os utensílios de chá e arrumo as flores dos arranjos. Se ver algo torto, fui eu mesmo.
A mais elegante, com cabelo trançado, falou a seguir:
—Sou Hana. Vinte e três. Organizo a ala da noite — velas, camas, lençóis e os banhos da consorte. Sempre deixo tudo pronto antes que ela peça.
Depois, uma mulher mais séria e reservada, que até então não tinha dito uma palavra, deu um pequeno aceno:
—Chamo-me Li. Tenho vinte e cinco. Cuido da contabilidade e entrego os relatórios semanais à chefe. Alguém precisa manter a papelada organizada neste templo de mulheres.
Por fim, todas olharam para a chefe.
Ela sorriu, com calma.
—Sou Dama Shen. Trinta e um anos. Sou a responsável por esse setor. E antes que pergunte, sim... este é o único pavilhão onde cada serva tem um quarto próprio. É ordem direta da Consorte Rui.
Aqui ninguém dorme no chão.
Meus olhos se arregalaram. Eu ia dividir com elas... mas sem dividir tudo?
—Mas e os outros pavilhões?
—Lá elas dividem um quarto com cinco, seis... às vezes dez. — Rin fez careta. — Aqui é diferente. Porque a Senhora faz questão.
—Ela nos protege — completou Mei. — E por isso a gente retribui com lealdade. Ninguém entra aqui sem passar por nós.
—Ok... e o que eu vou limpar?
Na mesma hora, o salão ficou em silêncio.
Todas abaixaram o olhar.
A atmosfera leve pareceu congelar por um momento.
Foi Dama Shen quem respondeu, com a voz mais baixa agora:
—Você... não vai limpar nada.
Minha testa se franziu.
—Como assim?
Ela me encarou por um momento longo demais. Então, disse:
—Você foi escolhida para ser a provadora oficial da Consorte Rui.
Minha respiração travou.
Eu tinha ouvido esse termo antes. Nas histórias sussurradas no caminho.
Nas listas que nunca eram lidas em voz alta.
Provadora.
Aquela que come antes.
Aquela que, se houver veneno... morre primeiro.
Foi naquele instante que tudo fez sentido.
Os sorrisos suaves.
O tratamento gentil.
O apelido “florzinha”.
O quarto individual.
A água quente.
O cuidado.
Era pena.
Elas sabiam. Todas ali sabiam.
Escolheram a mais nova. A mais leve. A que podia parecer doce o bastante pra não levantar suspeitas... e descartável o bastante para morrer no lugar da mulher que todas ali juraram proteger.
Engoli seco. Não chorei. Mas o chá que me ofereceram antes... agora parecia mais amargo por que é claro, nada é tão simples não é?
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