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Notas de Cacau e Paixões

A Promessa de Um Novo Amanhecer

O céu naquela tarde de primavera parecia pintado à mão, em tons suaves de lilás, dourado e rosa queimado, como se o mundo se preparasse para receber uma nova vida. A brisa leve dançava entre as cortinas brancas da casa de campo, que se agitavam como véus em celebração. Dentro daquela casa, tudo transbordava amor.

No centro da sala, sentada com um vestido longo de algodão branco que se moldava ao ventre já tão redondo, estava Elisa, a mãe de Aurora. Seus cabelos loiros escuros caiam em ondas soltas sobre os ombros, como fios de cobre aquecidos pelo sol. Seus olhos verdes, grandes e tranquilos, observavam o jardim pela janela enquanto os dedos acariciavam suavemente a barriga, num gesto cheio de ternura.

Elisa estava na última semana de gestação, e apesar do peso da barriga e da ansiedade, seu semblante era o de alguém que sabia que a vida estava prestes a lhe entregar um milagre. Um leve sorriso repousava em seus lábios.

— Ela está chutando outra vez — disse, rindo, enquanto olhava para o marido ao seu lado.

Henrique, o pai de Aurora, era um homem de traços fortes, pele morena clara e cabelos castanhos desgrenhados, com algumas mechas prateadas nas têmporas que lhe davam um charme calmo e vivido. Ele vestia uma camisa de linho azul-claro, com as mangas dobradas até os cotovelos, e uma calça de sarja bege. Seu olhar apaixonado não desgrudava de Elisa. Ajoelhado diante dela, ele pousou os lábios sobre a barriga, murmurando com a voz rouca e doce:

— Papai está aqui, meu amorzinho. Você já é a luz da nossa vida.

Do outro lado da sala, em cima do tapete florido, uma menininha de cabelos castanho-claros presos em duas trancinhas brincava com blocos coloridos de madeira. Seu vestido amarelo de babados refletia o sol da tarde, e seus olhos castanhos brilhavam como duas jabuticabas maduras. Ela era Lívia, filha do primeiro relacionamento de Henrique. Sua ex noiva o abandonou dias antes do casamento e fruto desse relacionamento antigo veio Lívia. A mãe se mudou para outro país e Henrique ficou com a guarda total da menina.

Lívia se levantou correndo e foi até Elisa, abraçando a barriga com o cuidado de quem já entendia que ali dentro havia algo sagrado.

— Mamãe Elisa, a Aurora vai nascer com cheirinho de flor?

Elisa riu com a pureza daquela pergunta.

— Vai, meu amor. Vai ter cheiro de flor, de bolo no forno, de abraço apertado... Vai cheirar a casa cheia.

Henrique puxou Lívia para o colo e, com ela nos braços e uma das mãos entrelaçadas à de Elisa, disse:

— Essa é a nossa família. Nada poderia me fazer mais feliz do que isso.

O relógio de parede marcava cinco horas. Um cheiro doce de bolo de fubá recém assado tomava conta da casa, vindo da cozinha onde Elisa havia colocado a receita no forno mais cedo, apesar do barrigão. Os móveis de madeira clara, os quadros com flores campestres e os vasos de lavanda nas janelas deixavam tudo com um ar de lar. O som distante de um passarinho cantando se misturava às risadas leves e às histórias inventadas por Lívia.

Ali, naquele instante congelado no tempo, havia só amor — puro, completo, caloroso.

E antes mesmo de Aurora nascer, ela já era rodeada por tudo que a vida tem de mais bonito.

Henrique levantou-se com Lívia no colo e olhou para Elisa com aquele brilho nos olhos que só quem ama de verdade carrega.

— Vamos à cozinha, minhas meninas? O cheirinho de bolo está nos chamando.

Elisa assentiu com um leve movimento da cabeça, apoiando-se no sofá para se levantar. Henrique estendeu a mão prontamente, segurando-a com delicadeza. Ela caminhou devagar, os pés descalços tocando o chão de madeira morna, e o vestido branco flutuando atrás dela como nuvem.

A cozinha era o coração da casa: ampla, com janelas grandes que deixavam o sol entrar generoso. A mesa de madeira maciça já estava posta com uma toalha de linho bege bordada com margaridas amarelas. Sobre ela, uma travessa fumegante com bolo de fubá salpicado com erva-doce, um prato com pães caseiros, manteiga fresca em um potinho de cerâmica azul, queijo branco, geleia de morango feita por Elisa e um bule de chá de camomila perfumando o ar.

Henrique colocou Lívia sentada em uma das cadeirinhas altas, com uma almofada floral para dar altura. Elisa sentou-se de frente para a afilhada, acariciando a barriga com uma mão e servindo chá com a outra.

— Papai, posso pôr a geleia no meu pão sozinha? — perguntou Lívia, erguendo os olhinhos, já com um pingo de geleia no queixo.

— Claro que pode — disse Henrique, rindo. — Mas olha o desastre, mocinha!

Elisa gargalhou, aquele riso leve que parecia música. A alegria naquela casa era silenciosa, sem exageros, mas pulsava viva em cada gesto, em cada palavra. Henrique cortou uma fatia generosa do bolo e colocou no prato de Elisa.

— Você precisa comer direitinho. A nossa princesa está quase chegando.

— Com esse cuidado todo, até me dá vontade de engravidar de novo — brincou Elisa, fazendo Henrique rir alto.

— Melhor esperarmos Aurora nascer primeiro, né? Um de cada vez.

Lívia cantarolava baixinho uma música inventada, balançando as perninhas sob a cadeira, e de vez em quando olhava para a barriga de Elisa e falava com ela como se já conhecesse a irmã:

— Aurora, quando você nascer, eu vou te ensinar a pintar com guache e a fazer castelo de almofada.

Elisa e Henrique se entreolharam, comovidos. Aquele momento, tão simples e tão cheio de beleza, parecia saído de um sonho.

Aurora ainda não havia nascido, mas sua presença já unia aquela família com laços invisíveis de ternura. E naquele café da tarde, entre risadas, farelos de bolo e promessas doces, nascia também uma nova fase — repleta de esperança, de aconchego, e de um amor que não cabia mais só em três corações.

O sol já havia se escondido atrás das colinas quando o café da tarde terminou. A luz dourada da casa agora vinha das luminárias de vidro âmbar espalhadas pelos cômodos, lançando sombras suaves nas paredes, como braços que abraçavam o lar. O som da chaleira ainda borbulhava baixo, e o aroma de bolo persistia, misturado ao perfume de lavanda vindo das janelas abertas.

Lívia, com o rostinho lambuzado de geleia e o cabelo já um pouco bagunçado, estava sentada sobre o tapete da sala com um livrinho de histórias aberto no colo. Elisa, agora com um robe macio cor de creme sobre o vestido, acariciava os cabelos da menina enquanto Henrique guardava os últimos pratos na cozinha, cantarolando baixinho.

Era o tipo de noite tranquila que parece selada por um anjo.

De repente, Elisa sentiu uma pressão diferente no ventre. Não era como os chutinhos ou os apertos que já haviam se tornado rotina. Era um peso mais denso, que se espalhava como uma onda quente.

Ela franziu o cenho, discretamente. Não queria preocupar ninguém.

Minutos depois, outra onda — mais forte. Ela expirou fundo, tentando manter a calma.

— Mamãe Elisa? — chamou Lívia, notando o silêncio repentino — Tá tudo bem?

Elisa sorriu, mas havia algo diferente em seus olhos agora. Henrique entrou na sala, enxugando as mãos no pano de prato, e imediatamente percebeu.

— Amor? Está sentindo alguma coisa?

Elisa assentiu, com um leve aceno de cabeça, e então falou com doçura e serenidade, mas também com firmeza:

— Acho que a Aurora quer vir ver as estrelas com a gente.

Henrique se aproximou em um segundo, ajoelhando-se diante dela, segurando suas mãos. O coração batia acelerado, mas ele manteve a voz baixa, firme e carinhosa:

— Já está vindo? Agora?

— Ainda não... mas está começando. São contrações leves, mas regulares.

Lívia os observava com os olhos arregalados, curiosa e encantada.

— A Aurora vai nascer hoje?

— Talvez, meu amor — respondeu Elisa, beijando a testa da menina. — Mas não se preocupe. Papai vai cuidar de tudo, e a vovó já deve estar chegando.

Henrique pegou o celular do bolso e, com mãos firmes, ligou para a mãe, que já estava de prontidão desde o início da semana.

Enquanto isso, Elisa se levantava com cuidado, segurando no braço do marido. Apesar da dor suave, havia um brilho sereno em seu rosto. Ela olhou ao redor da casa, aquele lar tão repleto de carinho, e sussurrou:

— Que bom que foi aqui que tudo começou... A nossa história.

Henrique a abraçou por trás, pousando as mãos sobre sua barriga, sentindo o movimento leve de Aurora, como se a menina respondesse ao chamado da noite.

Do lado de fora, o céu estrelava-se lentamente, e uma brisa fresca entrou pela janela, balançando as cortinas como se anunciassem uma nova vida.

Naquela noite, a casa não dormiria — mas seria iluminada por algo ainda mais poderoso do que as estrelas: o amor prestes a se multiplicar.

As contrações vinham em intervalos cada vez mais curtos. Elisa agora sentia pequenas ondas de dor que a faziam inclinar o corpo para frente, apoiando as mãos no encosto do sofá enquanto respirava com calma.

Henrique já havia colocado a mala maternidade ao lado da porta e verificava o relógio de minuto em minuto. Apesar do nervosismo evidente em seus olhos, ele mantinha a postura firme, atento a cada detalhe, tentando passar segurança.

Lívia, sentada no degrau da escada com seu ursinho no colo, olhava a cena com olhos arregalados, compreendendo que algo importante estava prestes a acontecer, mas sem medo — havia uma curiosidade serena, misturada com a ansiedade típica de criança.

Foi quando o som familiar do portão elétrico se abriu, cortando o silêncio da noite. O farol do carro atravessou o jardim e logo estacionou. Henrique abriu a porta e correu até a entrada da casa.

Do carro desceu Dona Marta, sua mãe — uma senhora enérgica, de cabelos curtos prateados, com óculos retangulares e um blazer leve sobre um vestido floral de tons lilás e verde. Apesar da elegância natural, ela vinha apressada, com o rosto iluminado pela expectativa e o coração disparado.

— Como está ela? Já começou? — perguntou, abraçando o filho rapidamente, sem nem esperar resposta, enquanto olhava para dentro da casa com os olhos aflitos.

— Está começando sim, mãe. As contrações estão mais próximas. — respondeu Henrique, guiando-a para dentro.

Assim que viu a nora, Marta se aproximou com cuidado, o sorriso grande contrastando com a preocupação evidente.

— Elisa, meu amor... está tudo bem? — disse, tocando de leve no braço da nora.

Elisa, entre uma contração e outra, abriu um sorriso sincero e respondeu com gentileza:

— Está tudo bem, dona Marta. Só um pouco... intenso. Mas está vindo. A Aurora está a caminho.

— Que alegria, minha nossa Senhora! — disse Marta, levando a mão ao peito. — Mal posso esperar para segurar essa bebezinha. Mas agora, vão! Vão com calma, e deixem a Lívia comigo. A casa está em boas mãos.

Lívia desceu correndo os degraus e se jogou nos braços da avó.

— Vovó Marta! A Aurora vai nascer!

— Vai sim, minha boneca! E nós duas vamos preparar tudo aqui pra quando ela chegar, tá bom?

Henrique voltou rapidamente, pegando a bolsa maternidade e ajudando Elisa com o casaco. Ela agora usava um vestido leve azul claro com detalhes rendados no colo e um casaquinho de lã fina por cima. Os cabelos estavam presos em uma trança baixa, mas alguns fios soltos moldavam o rosto — que apesar das dores, ainda irradiava suavidade e força.

Henrique segurou a mão da esposa, apertando com delicadeza.

— Pronta, meu amor?

Ela assentiu, mesmo ofegante.

— Mais do que nunca.

Antes de sair, Elisa abaixou-se devagar e deu um beijo demorado na testa de Lívia.

— Mamãe Elisa te ama muito. E logo, logo, você vai conhecer sua irmã.

Lívia sorriu com os olhos brilhando.

— Vou contar uma história pra ela quando ela chegar.

Henrique e Elisa atravessaram a noite de mãos dadas até o carro. No retrovisor, podiam ver a silhueta de Dona Marta na varanda, com Lívia ao lado, acenando e sorrindo sob a luz amarelada.

No carro, Henrique ligou o motor, mas antes de sair, olhou para Elisa e disse, com a voz embargada pela emoção:

— A próxima vez que voltarmos pra casa... vamos ser quatro.

E Elisa, com os olhos marejados, respondeu com um sorriso cheio de amor:

— A nossa família está crescendo. E está tudo exatamente como deveria ser.

A noite os envolveu enquanto o carro se afastava pela estrada. O céu estrelava-se em silêncio, como se o universo inteiro estivesse à espera da chegada de Aurora.

Quando o Amor Nasce

A cidade dormia em silêncio quando o carro de Henrique cruzou as avenidas em direção à maternidade. As luzes dos postes desenhavam trilhas douradas na estrada, e o som do motor misturava-se ao das respirações de Elisa, cada vez mais ritmadas e profundas.

Ela estava no banco do passageiro, com uma das mãos apoiada sobre a barriga, que se contraía com firmeza em ondas. A outra mão permanecia entrelaçada à de Henrique, que dirigia com atenção, lançando olhares constantes e carinhosos.

— Está indo tudo bem? — perguntou ele, com a voz calma, mas o coração disparado.

— Está sim... — respondeu Elisa, entre uma contração e outra. — Ela está quase aqui, Henrique. Eu sinto.

Ele apertou a mão dela com mais força. Por mais preparado que estivesse, nada o havia ensinado a conter aquela avalanche de emoções. A mulher que amava estava prestes a trazer ao mundo a filha dos dois, e isso o fazia se sentir pequeno e grandioso ao mesmo tempo.

Ao chegarem à maternidade, uma equipe os recebeu com prontidão. Era um hospital moderno, mas com um clima acolhedor. As paredes em tons claros, as luzes amareladas e a música instrumental suave ao fundo criavam um ambiente tranquilo, quase sagrado.

Elisa foi levada para o setor de pré-parto, já com 6 centímetros de dilatação. Henrique permaneceu ao lado dela o tempo todo, vestindo o avental azul e as toucas descartáveis. Ele estava um pouco desajeitado, mas completamente entregue àquele momento.

— Você está indo muito bem — sussurrava ele, entre beijos suaves em sua testa e carícias em sua mão.

Elisa, mesmo entre as dores, mantinha aquele olhar doce e determinado, o rosto levemente úmido de suor, os lábios entreabertos em respirações compassadas.

A enfermeira sorria para os dois, admirada com a sintonia entre o casal.

— Vocês parecem tão conectados. Vai ser um parto lindo.

Henrique olhou para a esposa com ternura.

— A gente esperou por ela com tanto amor… e ela escolheu vir assim, na calma da noite.

Quando a dilatação alcançou os 9 centímetros, Elisa foi levada à sala de parto. Henrique seguiu junto, o coração acelerado e os olhos úmidos. O ambiente era iluminado, mas suave — havia ali mais do que luz: havia magia.

E então, chegou o momento.

Elisa fechou os olhos, tomou fôlego, e com toda a força do seu corpo e da sua alma, trouxe Aurora ao mundo. Um choro forte e puro ecoou pela sala, invadindo o peito de todos com uma emoção difícil de explicar.

Henrique chorava sem conter, com as mãos sobre o rosto, ajoelhado ao lado de Elisa. Ela, exausta e emocionada, abriu os olhos com um sorriso frágil, enquanto a pequena Aurora era colocada sobre seu peito.

A menina era rosada, cheia de vida, com os olhinhos ainda semicerrados e as mãozinhas espalmadas, como se abraçasse o mundo.

— Bem-vinda, minha filha... — sussurrou Elisa, com lágrimas nos olhos. — Você chegou.

Henrique a envolveu com o corpo, beijando ambas — a mulher da sua vida e a filha que acabava de nascer.

E naquela sala, sob a luz suave e o som do primeiro choro, nasceu mais do que uma criança: nasceu uma nova família.

Aurora repousava sobre o peito de Elisa, ainda envolta na delicada manta branca com detalhes cor-de-rosa, os olhinhos fechados, o corpo entregue ao calor e ao aconchego do primeiro colo da vida. Henrique estava ajoelhado ao lado da cama, segurando a mão da esposa e olhando para as duas como se contemplasse o próprio milagre.

— Ela é perfeita… — sussurrou ele, os olhos marejados. — Você foi incrível, Elisa. Eu te amo tanto.

Elisa sorriu, exausta, mas plena.

— Eu também te amo… Ela é tudo o que a gente sonhou.

A equipe médica organizava os instrumentos com tranquilidade. O ambiente tinha cheiro de vitória, de alívio, de nova vida. Mas então, num instante sutil, quase imperceptível, a expressão da enfermeira que monitorava os sinais de Elisa mudou.

— Doutora… — chamou em voz baixa, mas urgente. — Está começando um sangramento anormal.

Henrique levantou o rosto, tentando entender.

— O que foi? Está tudo bem?

A médica, ainda calma, aproximou-se de Elisa e analisou rapidamente a situação. Elisa, que há poucos segundos sorria, agora franzia levemente o cenho.

— Estou... com um pouco de tontura. — disse ela, a voz baixa.

Henrique se levantou num impulso.

— Elisa?

O monitor cardíaco apitou com um leve aumento. O sangramento, antes discreto, começou a se intensificar.

— Estabilizem o sangramento. Hemorragia uterina — disse a médica, com firmeza, enquanto a enfermeira já acionava o suporte emergencial.

Henrique sentiu o estômago afundar. A palavra “hemorragia” parecia não caber ali, naquele momento tão delicado e sagrado. Mas ela veio como um soco, quebrando a doçura da cena com uma urgência cruel.

— Henrique… — murmurou Elisa, tentando manter os olhos abertos. — Cuida da nossa filha…

— Ei, ei, não fala assim. Você vai ficar bem. Tá me ouvindo? — disse ele, segurando seu rosto com as mãos trêmulas. — Olha para mim, amor. Fica comigo!

As enfermeiras pegaram Aurora com cuidado, levando a recém-nascida para a área de cuidados neonatais, enquanto o ambiente da sala de parto se transformava numa correria silenciosa, técnica e grave a enfermeira pede que Henrique saia da sala.

Henrique recuou alguns passos, o coração aos pulos. O mundo girava ao seu redor, mas ele só conseguia olhar para Elisa, que estava mais pálida, ainda tentando sorrir para ele entre uma piscada lenta e outra, enquanto e é empurrado para fora da sala.

— Vai... dar tudo certo — ela sussurrou, antes de ser envolvida pelas mãos experientes da equipe, que a preparava às pressas para a sala de cirurgia.

Henrique ficou parado, como se os pés tivessem grudado no chão. O choro de Aurora, ao fundo, o partia em dois. Queria correr até a filha, mas não conseguia se afastar da mulher que agora era sua vida inteira.

Antes de a levarem, ele se aproximou do ouvido dela e disse:

— Você é forte, Elisa. Você vai voltar. Eu prometo que a gente ainda vai ver o primeiro sorriso dela juntos. Fica comigo…

Mas Elisa já estava sendo levada para o centro cirúrgico. A porta se fechou diante dos olhos de Henrique com um som seco, deixando-o sozinho no corredor, com as mãos tremendo, os olhos fixos, e o coração — agora — numa prece muda.

O nascimento de Aurora fora o momento mais bonito da vida deles.

E agora, a vida… balançava entre o amor e a fragilidade.

Enquanto Aurora era levada para os primeiros cuidados neonatais, Henrique foi convidado a acompanhá-la, como é de costume. Na salinha aquecida, assistiu ao primeiro banho, ao exame do pezinho, à verificação dos reflexos, do peso, da cor… Tudo nela parecia perfeito. Os olhinhos entreabertos, o nariz delicado, os pés miúdos.

Henrique sorria, emocionado, murmurando:

— Oi, filha... Eu sou seu pai. Que sorte a minha...

Ele registrava tudo com o celular, com aquele misto de orgulho e ternura.

Mesmo morrendo de preocupação com Elisa, ele sabia que Aurora também precisava dele ali. A enfermeira pediu que Henrique se sentasse ali próximo a filha pois ela iria para a aquecedora

O relógio da parede parecia zombar de Henrique, marcando os minutos com uma lentidão cruel. Ele estava sentado sozinho na sala de espera, as mãos entrelaçadas, os cotovelos nos joelhos, o corpo inclinado para frente. Mas sua mente… essa estava presa na porta branca do centro cirúrgico.

As palavras da médica ecoavam sem parar: hemorragia uterina… sangramento persistente… estamos fazendo o possível.

Ele havia visto a alegria escapar por entre os dedos como areia. Ainda sentia o perfume doce do cabelo de Elisa, ainda ouvia o primeiro choro de Aurora. Mas agora, só havia silêncio. E o medo. Um medo paralisante, feroz.

Ele levou as mãos ao rosto, respirou fundo. Precisava ser forte. Por Elisa. Por Aurora. Por Lívia, que logo estaria ali.

Como se invocada pelo pensamento, a porta da recepção se abriu, e Dona Marta entrou com Lívia pela mão.

— Henrique! — chamou ela, sorrindo. — Como estão elas? Está tudo bem? Chegamos assim que deu, peguei a estrada com o coração na mão!

Lívia soltou-se da avó e correu até o pai, os cabelos castanho-claros balançando, o vestido lilás florido esvoaçando com cada passinho apressado.

— Papai! A Aurora nasceu? Cadê a mamãe?

Henrique se abaixou, engolindo em seco. Abraçou Lívia com força, como se aquele abraço pudesse sustentá-lo por dentro.

— Ela nasceu, minha princesa… nasceu linda, cheia de saúde. Mas a mamãe… a mamãe tá sendo cuidada pelos médicos agora.

Dona Marta se aproximou, deixando a bolsa no sofá.

— O que houve, Henrique? Você está branco…

Ele se levantou devagar. Respirou fundo e falou, num tom baixo, tentando não alarmar a neta.

— A Elisa teve uma hemorragia depois do parto. Estão tentando controlar o sangramento. Levaram ela pra cirurgia.

O sorriso de Dona Marta apagou-se no mesmo instante. Um silêncio pesado tomou o ambiente. Ela levou uma das mãos à boca, os olhos arregalados.

— Meu Deus… minha menina…

Henrique desviou o olhar, sentindo o peito apertar.

Lívia olhava para um e para outro, confusa.

— A mamãe tá dodói?

Henrique se agachou novamente diante da filha.

— Sim, meu amor. Ela tá um pouquinho dodói. Mas os médicos estão cuidando dela, tá bem? E você vai conhecer a Aurora daqui a pouco. Ela é linda, tem os olhos igualzinhos aos seus.

Lívia assentiu devagar, confiando no pai como só uma criança é capaz. Enlaçou o pescoço dele com os bracinhos pequenos e sussurrou:

— A mamãe vai ficar bem. Eu pedi isso pra estrela mais brilhante ontem à noite.

Henrique fechou os olhos, lutando contra as lágrimas. Sentiu o peso do mundo nos ombros, mas também sentiu aquela centelha — aquela fé inocente da filha, como uma prece pura lançada ao céu.

Dona Marta sentou-se ao lado deles. Pela primeira vez, segurou a mão de Henrique com força, como se fossem, ali, um só coração batendo em espera.

E juntos… esperaram.

Um Amor, Duas Metades

O tempo parecia correr em dois mundos distintos. Do lado de dentro da maternidade, a equipe médica lutava contra o relógio. Do lado de fora, Henrique enfrentava o tempo do coração — aquele que se arrasta entre a fé e o medo.

Dona Marta estava sentada com Lívia no colo, tentando distraí-la com histórias baixinho. Mas Henrique não conseguia se sentar. Andava de um lado para o outro, os olhos fixos nas portas brancas que nunca se abriam.

Foi quando uma enfermeira surgiu no corredor, segurando uma manta cor-de-rosa.

— Sr. Henrique?

Ele se virou de imediato, o peito disparando.

— Sua filha está pronta para ser amamentada. Mas como a mãe ainda está em cirurgia… gostaríamos que o senhor a segurasse um pouco. O contato ajuda a acalmá-la.

Henrique apenas assentiu, mudo. Caminhou até a enfermeira, que lhe entregou com delicadeza o pequeno embrulho — Aurora.

Ela estava desperta, olhos semicerrados, a boquinha fazendo um biquinho involuntário. O corpinho aquecido pela manta se encaixou contra o peito dele como se sempre tivesse pertencido ali.

Henrique engoliu o choro.

— Oi, filha… papai tá aqui, tá?

Ele se sentou devagar, com Aurora nos braços. A emoção tomou conta. Era tão pequena. Tão indefesa. Tão perfeita. Mas naquele instante, o amor dele era atravessado por uma dor que crescia, silenciosa, como uma sombra encostando devagar na luz.

Dona Marta observava a cena com olhos marejados. Aproximou-se devagar, pousando a mão no ombro do filho. Naquele gesto, Henrique sentiu toda a força do colo que sempre o sustentou.

— Ela vai precisar muito de você agora, meu filho… — sussurrou, referindo-se à neta.

Henrique apenas assentiu, afundando o rosto nos cabelos finos da bebê. Respirou fundo o cheirinho doce e morno de recém-nascido, tentando gravar aquele momento na alma.

De repente, a porta branca se abriu com um rangido discreto, e a médica surgiu. Retirou a touca cirúrgica devagar, como quem carrega um peso, e aproximou-se com um olhar firme, mas gentil.

Henrique se virou, e a postura da médica o paralisou.

— Doutora? A Elisa…?

Ela respirou fundo antes de falar. O silêncio entre uma palavra e outra foi um abismo.

— Sr. Henrique… sua esposa teve uma hemorragia grave logo após o parto. Nós fizemos de tudo. Intervenções rápidas, transfusão, compressão, mas o corpo dela não respondeu como esperávamos. Ela… ela não resistiu.

Por um instante, o mundo ficou mudo. O som do choro de um recém-nascido, os passos no corredor, os barulhos da maternidade — tudo sumiu. Só havia o eco daquelas palavras e o silêncio entre elas.

Henrique encarou a médica sem piscar, como se o cérebro se recusasse a entender.

Depois, baixou os olhos para Aurora. E só então, uma lágrima silenciosa caiu.

— Ela... ela se foi? — a voz saiu trêmula, quase infantil.

A médica assentiu com tristeza contida.

— Ela estava consciente antes da cirurgia. Pediu para ver a filha. Segurou a mãozinha dela. Sorriu. Foi o último gesto que teve. Ela... partiu com paz. Com amor.

Henrique se sentou lentamente, ainda com Aurora nos braços, como se as pernas já não respondessem. A bebê fez um pequeno som, como se pressentisse o peso do ar.

Dona Marta tapou a boca com a mão ao ouvir. Seus olhos se encheram num segundo.

— Não… não a Elisa… — sussurrou, cambaleando, aproximando-se do filho.

Henrique abaixou a cabeça e, num impulso, apertou a filha contra o peito. O corpo dele tremia.

— Por quê? — murmurou. — Ela estava bem… sorrindo hoje de manhã… a gente ia voltar para casa juntos…

A médica se abaixou ao lado dele, sem tocar, apenas presente.

— Eu sinto muito, de verdade. Elisa foi forte. Lutou até o fim. Ela deixou amor por todos os lados. E essa menininha nos braços do senhor… é a maior parte dele.

Henrique chorava em silêncio. Não soluçava. Apenas deixava que as lágrimas caíssem, pesadas, quentes, como se cada uma levasse um pedaço da história deles.

Dona Marta ajoelhou-se ao lado, envolveu o filho num abraço contido e forte, enquanto Aurora, alheia à tragédia, dormia serena no centro daquele luto.

— Eu tô aqui, meu filho… — disse a mãe, com a voz embargada. — Eu tô aqui com você. E com elas.

Henrique encostou o rosto nos cabelos da filha e fechou os olhos. Naquele momento, parte dele havia morrido. Mas outra parte, pequena e frágil, respirava no seu colo — esperando por tudo que ele ainda seria capaz de oferecer.

Henrique, então, com uma filha nos braços e outra encostada no joelho, sentiu a dor mais profunda e o amor mais inteiro que já conhecera. A vida havia dividido sua alma em duas.

Pouco depois, com o coração ainda em pedaços, ele foi levado pela enfermeira para um dos quartos da maternidade. Aurora já havia sido alimentada por sonda, estava limpa, cheirosa e enrolada em uma manta rosa de lã macia. O berço aquecido emitia uma luz suave e reconfortante. Henrique a acomodou ali, devagar, com cuidado redobrado, como se ela fosse feita de vidro soprado.

Minutos depois, Dona Marta entrou no quarto, com Lívia pela mão.

A menina hesitou ao passar pela porta.

— Papai… — disse baixinho, os dedos apertando os da avó.

Henrique se virou com suavidade, forçando um sorriso enquanto se ajoelhava diante dela.

— Vem cá, princesa…

Ela correu até ele e o abraçou forte, o rosto encostado no peito do pai. Ele fechou os olhos, sentindo-se ancorado naquele pequeno abraço.

— Cadê minha irmãzinha? — perguntou, erguendo o rosto com uma curiosidade doce.

Henrique se levantou, segurando a mão dela, e a levou até o bercinho.

Lívia se aproximou, de pontinha de pé, e espiou por sobre a borda. Seus olhos se arregalaram.

— Ela é tão pequenininha! Parece uma bonequinha de verdade.

— É a nossa bonequinha — respondeu Henrique, com um sorriso triste. — Mas de verdade mesmo. E sabe o que ela é?

Lívia olhou para ele, esperando.

— Um pedacinho da mamãe… que vai viver com a gente todos os dias.

A menina ficou em silêncio por um instante. Depois se aproximou ainda mais, apoiando os bracinhos no berço. Aurora se mexeu levemente, fazendo um biquinho.

— Ela é linda, papai. Posso tocar nela?

— Pode, mas bem de leve, tá?

Lívia esticou o dedinho com delicadeza e encostou na mãozinha da irmã. Aurora agarrou o dedo sem nem abrir os olhos. Lívia deu um sorriso encantado.

— Ela me segurou!

Henrique sentiu os olhos encherem de novo. Do lado, Dona Marta também se emocionava em silêncio.

— Ela já te ama, Lívia — disse o pai, com a voz embargada. — E vai precisar muito de você.

A menina assentiu com firmeza.

— Eu vou cuidar dela. Igual a mamãe cuidava de mim.

Henrique se abaixou para abraçá-la mais uma vez, agora com a cabeça encostada à da filha mais velha. Três corações em silêncio, tentando aprender a bater de um novo jeito.

E naquele pequeno quarto de hospital, onde a dor e o amor conviviam como irmãos, a vida seguia — frágil, mas pulsante.

Porque Aurora tinha acabado de chegar.

E porque Lívia já estava pronta para amá-la por dois.

Lívia estava sentada no colo da avó, com os olhinhos fixos no berço onde Aurora dormia. O silêncio da sala era denso, cheio de ausências. Henrique se aproximou devagar e sentou-se ao lado das duas.

A menina puxou a manga da camisa do pai, olhando para ele com um franzido de confusão na testa.

— Papai… a mamãe já viu a Aurora?

Henrique respirou fundo. Passou a mão nos cabelos da filha.

— Viu, sim, meu amor. Ela segurou a mãozinha dela… e sorriu.

Lívia sorriu também, aliviada.

— Então… por que ela ainda não voltou? A mamãe não vai vir com a gente pra casa?

Henrique hesitou. O nó na garganta queimava. Dona Marta apertou levemente os ombros da neta.

— A mamãe… — ele começou, engolindo em seco —... a mamãe teve que ir pra um lugar muito especial. Um lugar que a gente não pode visitar agora.

Lívia franziu a testa.

— Ela foi viajar?

Dona Marta respondeu com a voz doce, mas firme:

— Foi, meu anjo. Uma viagem para um céu cheio de amor. Mas mesmo de lá… ela vai estar com vocês. Sempre.

A menina ficou quieta por alguns segundos, olhando para o chão.

Depois ergueu o rosto:

— Então... ela vai ver a gente de lá de cima?

Henrique assentiu, com os olhos marejados.

— Vai sim. E vai ficar muito orgulhosa da sua irmãzinha. E da menininha incrível que você é.

Lívia encostou a cabeça no ombro do pai e sussurrou:

— Eu vou cuidar da Aurora.

Henrique a abraçou apertado, deixando o silêncio falar por ele. E, por um instante, entre lágrimas contidas e promessas silenciosas, eles se deixaram consolar pelo amor que ainda restava.

A madrugada envolvia o quarto da maternidade com sua penumbra suave. Aurora dormia em silêncio no bercinho aquecido. Lívia, finalmente vencida pelo cansaço, repousava no colo de Dona Marta, que cochilava na poltrona ao lado, com a cabeça pendendo levemente para frente.

Henrique estava na poltrona reclinável, os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos entrelaçadas sobre o rosto. O corpo doía. A mente, mais ainda. Cada segundo do dia parecia girar dentro dele, como um filme de memórias e despedidas entrecortadas.

Os olhos ardiam. Ele piscava devagar, tentando se manter acordado, como se dormir fosse deixá-la ir de vez.

Mas o corpo já não obedecia.

Quando adormeceu, foi como cair num outro tempo.

No sonho, o quarto não existia mais. Ele estava em um campo aberto, de grama verde e céu alaranjado, como o fim de uma tarde de verão. O ar era leve. Tudo parecia calmo.

Ele estava em um campo aberto, de grama verde e céu alaranjado, como o fim de uma tarde de verão. O ar era leve. Tudo parecia calmo.

E ali, de pé, como se o esperasse há muito tempo… estava Elisa.

Vestia um vestido branco simples, os cabelos soltos ao vento, o sorriso doce de sempre — o sorriso que fazia o mundo dele parar.

Henrique se aproximou num passo hesitante, como se tivesse medo que ela desaparecesse.

— Eli...? — sussurrou, incrédulo.

Ela assentiu, sorrindo com os olhos.

— Você tá aqui… — ele disse, num sussurro embargado.

— Estou. Por um instante só — respondeu ela, com a voz baixa, mas cristalina.

Henrique parou diante dela, a respiração presa no peito. As lágrimas já escorriam.

— Por quê? Por que você se foi?

Elisa tocou o rosto dele com delicadeza, como quem acalma um passarinho ferido.

— Porque era a minha hora. Às vezes, amor, a vida muda os planos. Mesmo quando a gente ainda tem tanto pra viver.

— Não é justo — ele murmurou, com raiva e tristeza no mesmo tom. — Você… você ia voltar comigo. A gente tinha uma vida inteira ainda…

Ela segurou as mãos dele entre as suas.

— Eu volto, Henrique. Em cada pedacinho da Aurora. No jeito que ela vai franzir a testa quando se concentrar. No som do riso dela. E no cuidado que você vai dar. Você vai me ver nela. Todos os dias.

Ele desabou num abraço, apertando o corpo dela com a urgência de quem sabe que é a última vez. E ela o acolheu, firme, doce, segura como sempre.

— Cuida das nossas meninas — sussurrou no ouvido dele. — E deixa que eu cuido de você, de onde eu estiver.

Henrique tentou dizer algo, mas tudo se desfez em silêncio. A imagem dela começou a se esvair como névoa sob o sol.

— Elisa! Espera! Não vai!

Mas ela apenas sorriu uma última vez.

— Você não está sozinho.

E desapareceu.

Henrique acordou com um sobressalto, os olhos úmidos, o peito apertado. Por um instante, olhou ao redor sem saber se tinha sonhado mesmo.

Mas Aurora resmungou baixinho no berço, como se sentisse a ausência e a presença ao mesmo tempo. E no rosto dela, havia algo — um contorno, uma expressão, um calor — que parecia, por um segundo, o mesmo sorriso de Elisa.

Henrique limpou o rosto com as costas da mão e se inclinou para perto da filha.

— Eu vou cuidar de você, minha pequena. Por mim… por ela… por nós.

E, naquele sussurro, a noite pareceu menos escura.

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