A noite havia caído sobre a cidade como um véu escuro salpicado de néon. Os carros passavam apressados na avenida principal de Valdora, e ninguém percebia o homem de capuz preto que caminhava pelas sombras de um beco. Esse homem não era comum. Dentro de seu peito, batia um coração dividido entre o humano e a besta.
Cael não lembrava exatamente quando havia se transformado, apenas que, desde os quinze anos, a lua cheia provocava algo dentro dele — uma dor insuportável seguida por uma força indomável. Era um lobisomem, o último de sua linhagem, e vivia escondido da humanidade, protegendo os inocentes das criaturas das trevas. Ele era um predador que caçava predadores, um justiceiro que vagava pelas ruas quando a maioria dormia.
Naquela noite, no entanto, Cael sentia algo estranho. O ar parecia mais pesado. O instinto, sempre tão aguçado, gritava dentro de si. Ele parou na esquina de uma rua deserta, o farfalhar de folhas secas sendo pisoteadas ecoando como trovões em seus ouvidos sensíveis. E então, ele apareceu.
O caçador.
Um homem envolto em um manto vermelho, com olhos prateados que brilhavam como aço recém-forjado. Ele não disse uma palavra. Apenas ergueu o braço e, com um movimento rápido, disparou uma lança de energia diretamente no peito de Cael. O impacto o lançou contra a parede, esmagando-lhe as costelas. A dor foi intensa, mas suportável — até que o fogo começou.
A energia mágica daquela arma não era deste mundo. Corria por suas veias como ácido, queimando sua essência lupina, desintegrando o que o tornava especial. Cael tentou se transformar, mas o corpo não respondia. O mundo girava, o sangue escorria, e sua visão começava a escurecer.
“Você não pertence a este mundo, monstro,” foram as últimas palavras que ouviu antes de tudo desaparecer.
Silêncio.
Mas a morte não foi o fim.
Havia algo além.
Uma luz pálida o envolveu, e ele sentiu o corpo flutuar, sem peso, sem dor, sem carne. Era como se a própria alma estivesse sendo puxada por correntes invisíveis. Vozes sussurravam em línguas estranhas, e símbolos brilhavam em sua mente. Algo... ou alguém... o chamava.
Quando Cael abriu os olhos novamente, o céu era roxo.
Estava deitado sobre uma relva macia, o ar carregado de um perfume doce e desconhecido. Árvores gigantescas se erguiam ao redor como colunas de uma catedral antiga, e o som de água corrente vinha de perto. Ele se sentou, confuso, tocando o próprio peito — ileso. Não havia feridas. Nenhum sinal da lança. Nenhuma dor.
E, estranhamente... nenhuma fera dentro de si.
Ele não sentia o lobo.
“Bem-vindo a Élarion,” disse uma voz feminina atrás dele. Cael virou-se bruscamente e viu uma jovem de cabelos prateados e olhos dourados. Ela trajava vestes azuis adornadas por símbolos arcanos que brilhavam levemente sob a luz daquele céu estranho.
“Quem... quem é você? Onde estou?”
“Sou Lysenn, uma aprendiz de conjuradora do Santuário de Thalor. E você está em um dos poucos lugares seguros de Élarion, por enquanto. Fomos nós que invocamos sua alma.”
“Invocaram... minha alma?” Cael tocou o próprio rosto, tentando entender. Tudo parecia real demais para ser um sonho.
“Você morreu em seu mundo, não foi? A magia nos permitiu encontrar um fragmento de você entre os véus do além. Mas o que era você... aquela essência animalesca... não sobreviveu à travessia. Aqui, não existem lobisomens. Sua alma foi purificada para existir neste plano.”
Cael se levantou devagar, olhando em volta. Tudo era estranho e belo, mas havia algo dentro dele — uma ausência. Ele estava... incompleto.
Mas vivo.
E talvez... renascido.
Perssonagem Lysenn
O caminho até o Santuário foi silencioso, quebrado apenas pelo som ritmado dos passos sobre a terra fofa e pelos sussurros do vento entre as folhas de árvores gigantescas. A floresta parecia viva, como se observasse os dois viajantes com olhos invisíveis. Cael seguia ao lado de Lysenn, absorvendo a estranha beleza daquele mundo novo. O céu permanecia em tons de púrpura e lilás, com pequenas luzes esvoaçantes que dançavam entre os galhos — não vagalumes, mas pequenas criaturas mágicas que cintilavam como estrelas em miniatura.
Ele ainda tentava processar tudo o que ouvira. Havia morrido. Havia sido invocado para outro mundo. E, acima de tudo, havia perdido o lobo que por tanto tempo fizera parte de sua identidade. Aquilo o deixava vazio, como se tivesse deixado um pedaço importante de si para trás.
Lysenn lançou-lhe um olhar de lado. Seus olhos dourados pareciam examinar não apenas sua aparência, mas algo mais profundo — sua essência, sua alma. Ela finalmente quebrou o silêncio com a mesma voz calma e melodiosa de antes:
“Você disse que era um caçador. O que exatamente caçava?”
“Sombras,” respondeu ele, após um momento de reflexão. “Demônios. Monstros que se escondiam nas sombras da cidade. Criaturas que se alimentavam do medo e da dor das pessoas. Eu... usava o que era para proteger quem não podia se defender.”
Ela assentiu com um leve movimento de cabeça. “Aqui, as sombras também existem. Mas tomam outras formas. Corrupções mágicas. Espíritos enfurecidos. Criaturas nascidas do desequilíbrio entre os elementos. E nem todos que enfrentam tais horrores retornam inteiros.”
Cael sentiu um peso nas palavras dela, como se falasse por experiência própria. Ele observou o ambiente ao redor: as árvores tinham folhas translúcidas que pareciam captar a luz ambiente e projetá-la de volta. Pequenos animais com pelagens azuladas e olhos brilhantes corriam pelas raízes entrelaçadas no solo. Havia beleza, sim, mas também um ar de melancolia.
“Esse lugar... Élarion... parece mágico,” comentou ele, ainda absorto na paisagem.
“Élarion é mágico,” respondeu Lysenn. “Mas a magia aqui não é apenas um poder. É parte da própria vida. Flui em tudo — nas plantas, no vento, nos rios, até mesmo em você agora. A travessia da sua alma para cá o alterou de maneiras que ainda não compreendemos.”
Eles alcançaram o topo de uma pequena colina, e então Cael teve a primeira visão do Santuário de Thalor. Era imenso. Torres espiraladas se erguiam para o céu colorido, conectadas por pontes suspensas e varandas de pedra entalhada. As cúpulas eram feitas de vidro azulado que refletia a luz ambiente como cristais, e todo o complexo parecia pulsar com um brilho sutil, como se estivesse vivo.
“Seja bem-vindo ao seu novo lar,” disse Lysenn, com um sorriso breve. “Pelo menos, por enquanto.”
Cael permaneceu em silêncio por um tempo, observando o santuário. Havia algo reconfortante e, ao mesmo tempo, inquietante naquele lugar.
“Por enquanto?” questionou.
Ela virou-se para ele, séria. “Você foi invocado por um ritual proibido. Trouxemos sua alma por necessidade, mas nem todos os mestres de Thalor estão de acordo com sua presença. Ainda há quem questione se foi certo ou não corromper os véus do além.”
“E o que acontece se decidirem que não foi?”
“Isso depende de você,” disse Lysenn, com sinceridade. “Se provar que pode ajudar Élarion, que não é uma ameaça... talvez encontre um propósito aqui. Mas se não...” Ela desviou o olhar. “Talvez precise partir. Ou ser desfeito.”
A palavra ecoou dentro de Cael como um trovão abafado. “Desfeito.” Era uma ideia pior que morrer — ser apagado completamente.
Mas então, algo dentro dele se inflamou. Não a fúria do lobo, mas uma centelha de determinação humana. Ele havia perdido muito. Um mundo. Um corpo. Uma parte de si. Mas ainda tinha vontade. Ainda tinha força.
“Então me mostre como lutar aqui,” disse ele, encarando Lysenn. “Me mostre como sobreviver.”
Ela o fitou por um longo momento, e então sorriu, dessa vez com genuína admiração.
“Você tem o olhar de alguém que já perdeu tudo. Talvez por isso ainda tenha algo a ganhar.”
E juntos, desceram a colina rumo ao Santuário de Thalor, onde o destino de Cael começaria a ser escrito nas páginas vivas da magia de Élarion.
O interior do Santuário era ainda mais impressionante do que Cael imaginava. O chão era feito de mármore claro com cristais azulados que brilhavam suavemente sob os pés. Salões vastos se conectavam por arcos encantados e portas que se abriam com o simples toque da presença mágica. Nas paredes, vitrais mágicos retratavam eventos antigos — guerras elementais, pactos arcanos e figuras imponentes com olhos brilhantes e roupas cerimoniais.
Cael seguia Lysenn em silêncio, absorvendo cada detalhe. O lugar parecia respirar poder. Não o mesmo tipo de poder bruto e selvagem que conhecia, mas uma força mais sutil, controlada — quase viva. A magia parecia observá-lo, estudar cada passo, como se o próprio Santuário decidisse se ele era digno de estar ali.
“Você dormirá no Salão dos Convidados,” disse Lysenn, levando-o até uma porta de madeira esculpida com runas. “Não costumo trazer forasteiros aqui. Então, evite vagar sozinho. Este lugar tem... vontades próprias.”
Cael entrou e encontrou um quarto simples, mas confortável. Havia uma cama de madeira escura, uma pequena lareira acesa, uma escrivaninha com pergaminhos, e uma janela aberta para a floresta mágica. Ele suspirou e sentou-se na cama, tentando compreender o turbilhão de eventos recentes.
“Lysenn,” chamou ele, antes que ela se afastasse. “Você disse que minha essência foi... purificada. Mas por que ainda sinto algo estranho dentro de mim?”
Lysenn hesitou. “Porque parte do lobo pode ter cruzado com você. Talvez não em forma, mas em eco. Algo adormecido. Algo que pode despertar.”
“Isso é um problema?”
“Pode ser.”
E ela se foi, deixando Cael com perguntas demais e respostas de menos.
Durante horas, ele permaneceu acordado, observando o luar púrpura entrar pela janela. Tentou sentir algo — magia, espírito, fúria — mas havia apenas o silêncio do novo mundo. Então, quando finalmente adormeceu, os sonhos vieram.
Ele se viu correndo por uma floresta, mas não com pés humanos. Suas patas esmagavam folhas mágicas, e o ar estava impregnado de poder. A lua azul brilhava acima, cheia e silenciosa. E então, ele uivou. Um som poderoso, ancestral, que rasgava o céu como trovão. Era ele, mas não era. O lobo estava lá, dentro do sonho, vivo.
Cael acordou suando, o peito arfando. Estava diferente. Mais... desperto. Aproximou-se da escrivaninha e se encarou no espelho de prata. Seus olhos, por um instante, pareciam ter mudado de cor — do castanho para um âmbar intenso.
“Está acontecendo de novo?” murmurou.
Bateram na porta. Era Lysenn, séria.
“Você sentiu, não é? A magia em você está se agitando. O eco do lobo não foi completamente apagado.”
“Então ele ainda vive?”
“Não como antes. Mas sim, vive. E isso pode ser sua ruína... ou sua salvação.”
Ela entrou e entregou-lhe um cristal azul.
“Este é um foco de energia. Vamos treinar sua conexão com a mana de Élarion. Se você não aprender a controlar o que resta dentro de si... outros perceberão. E nem todos aqui serão compreensivos.”
“Você está com medo de mim?” perguntou Cael, encarando-a.
“Estou com medo do que você pode se tornar,” respondeu ela. “Mas também... do que pode despertar aqui se o lobo renascer.”
Cael fechou os olhos por um momento, segurando o cristal. Sentiu a energia vibrar, e com ela, algo dentro dele respondeu. Um fragmento antigo, primitivo, mas não cruel — um poder que dormia, mas ansiava por viver.
A guerra entre o lobo e o mago estava apenas começando. E Cael sabia que, se quisesse sobreviver, teria que descobrir quem realmente era agora — homem, fera, ou algo novo.
Para mais, baixe o APP de MangaToon!