Paris, 2011.
Ao som de James Black - Retrograde. A cidade onde agora moro se chama Montreuil-sur-Sienne, um distrito artístico, antigo e cheio de história ao leste de Paris. As ruas são apertadas, cheias de prédios de tijolos avermelhados cobertos por heras, e o cheiro de café e chuva fria percorre o ar como um perfume nostálgico. Às vezes, me perco caminhando entre as vielas apenas para sentir a calçada molhada sob meus pés e lembrar como era o calor seco batendo no asfalto rachado de North-Pólen.
Hoje o céu está cinza como um quadro mal terminado. Garoa leve toca a janela da sala de aula da Delacrux Arts Visuels, uma das mais respeitadas da França. A aula já está em andamento, mas minha mente está longe... tão longe daqui.
Olho fixo para frente, mas tudo o que vejo são as lembranças. O relógio marca 11:26. Meus dedos traçam com a unha pequenas linhas na madeira gasta da mesa. O som da chuva misturado com as vozes ao fundo me embala numa espécie de transe. Estou presa a outro tempo, outro lugar.
Sinto saudades de um calor que não existe mais. O calor da adrenalina, da velocidade, do risco. North-Pólen era tudo que Paris não é: seco, perigoso, cru. Era o palco da minha liberdade, das minhas escolhas sem rédeas.
Lembro como se fosse ontem… A corrida dos ônibus. O caos. O momento em que um dos pneus saltou pelo para-brisa de um dos veículos. Ele passou a milímetros do meu rosto. Eu quase morri, mas foi ali que me senti mais viva.
E Hellen… minha parceira, minha melhor amiga. Engenheira de corpo e alma. Ela falava com os carros como se fossem gente. Ainda ouço sua risada, ainda escuto sua voz me dizendo “Não pisa no freio, pisa no coração.”
Cubos, o faminto. Nunca vi ninguém comer tanto e ainda correr daquele jeito. Ele era a comédia do grupo. Sempre pronto pra tirar um sarro, mesmo quando a situação era crítica. Aquele jeito meio malandro, meio irmão mais novo que eu queria proteger e ao mesmo tempo aprender com ele.
Jonas. O cérebro. O hacker. Irmão do Daniel, mas tão diferente dele. Jonas era mais introspectivo, mas carregava dentro dele um coração que parecia não caber no peito. Tão inteligente quanto sensível.
E então… Daniel.
Fecho os olhos e o nome dele ecoa em mim como uma batida de motor acelerando.
Daniel, o garoto que me venceu em todas as corridas — e venceu meu orgulho, meu medo, meu coração. Era como se o universo inteiro conspirasse pra colocar aquele sorriso diante de mim, sempre depois de uma vitória ou de um beijo roubado.
Não sei o que foi mais fatal… se foi a forma como ele pilotava, ou como ele olhava dentro de mim, como se eu não tivesse mais pra onde correr. Achei que quando meu avião decolasse da Baía, esse sentimento ia ficar pra trás. Mas um ano se passou, e eu ainda estou aqui, em Paris, sentindo falta do gosto da gasolina, do cheiro de borracha queimada, e do toque dos lábios de Daniel.
Às vezes fecho os olhos na aula e volto para aquela noite, dentro do SUV preto do meu pai. Era nossa última noite em North-Pólen. Estávamos os dois sozinhos. O banco reclinado, as luzes da cidade ao fundo, e nossos corpos tão próximos que pareciam um só.
Naquela lembrança, eu retiro o Jonas da equação. Ele não bate na janela. Ele não nos interrompe. É só Daniel e eu. A respiração dele no meu pescoço, minhas mãos nos cabelos dele, o calor de nossos corpos trocando juras sem palavras. Tudo se intensifica. Cada toque, cada movimento. Sinto o calor subindo da barriga até o rosto. Sinto minha pele arrepiar. Meus músculos se contraem sozinhos, como se estivessem lá novamente, dentro daquele carro, na penumbra da madrugada.
O calor se espalha. Estou suando. O ar parece mais denso, mais úmido. Meus dedos apertam as bordas da mesa. Tento me concentrar na aula, mas estou acesa, tremendo por dentro, como um motor prestes a explodir.
— Mademoiselle Ray? — a voz grave e seca de professor Adrian me tira daquele delírio.
Abro os olhos como se acordasse de um sonho quente e proibido.
— Está tudo bem?
Faço que sim com a cabeça, tentando disfarçar meu rubor. Ele me encara por um segundo a mais do que o necessário, como se soubesse de algo. Depois vira-se para o quadro e começa a explicar os trabalhos finais do semestre.
Professor Adrian é um homem de presença. Não sei sua idade exata, talvez quarenta e poucos anos. Tem olhos pequenos e escuros, mas atentos. Cada detalhe da arte contemporânea parece morar no seu olhar. Usa camisas de linho sempre amarrotadas, barba por fazer e uma paixão silenciosa pela estética imperfeita.
Ele foi o primeiro a notar meu talento, mesmo quando eu não conseguia ver nada demais nos meus traços. Um dia, durante a aula, ele me chamou para conversar. Disse que eu pintava com raiva, com saudade, com desejo. Disse que minha arte precisava ser mostrada.
Foi ele quem me apresentou ao CEO da Galerie Le Voile, um dos homens mais influentes do circuito de arte europeu. Esse CEO misterioso — de quem falarei depois — se interessou pelo meu trabalho imediatamente. Me ofereceu uma vaga como assistente em sua nova coleção. Desde então, Adrian ficou diferente. Começou a me observar mais de perto, mais intensamente. Começou a elogiar menos e criticar mais. Como se quisesse me puxar de volta para perto.
No início achei que era proteção. Agora, não sei mais.
Minha única certeza, além das minhas lembranças, é minha melhor amiga aqui em Paris: Inès Valois. Uma francesa de ascendência argelina, com olhos que carregam todas as lutas da sua história. Ela tem um cabelo cacheado volumoso, usa batons escuros e roupas ousadas. Fala com ironia e poesia ao mesmo tempo.
Inès me acolheu desde o primeiro dia. Me apresentou os cantos escondidos da cidade, os bares onde os artistas se encontram depois da meia-noite, os grafites mais lindos sob as pontes do Sena. Ela é tipo uma tempestade calma. Me faz rir quando tudo parece ruir. Quando fico triste, ela diz:
— Ray, você nasceu pra correr. Mesmo que seja dos seus próprios fantasmas.
E tem minha mãe...
Desde que me mudei para Paris, tudo piorou entre nós. Minha arte não é o suficiente para me convencer a esquecer as corridas. Mas eu sou feita de riscos. Não de regras.
Ela e meu pai continuam brigando. Mesmo com um oceano entre eles, continuam encontrando formas de se ferir. E mesmo aceitando minha vinda pra França, nunca aceitaram de verdade quem eu sou.
Sinto saudade do Norte-Pólen porque lá, apesar do perigo, eu era livre.
Em Paris, às vezes, sinto que troquei a liberdade pela beleza. E não sei se valeu a pena.
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Desci as escadas do meu quarto com passos silenciosos, mas por dentro era um vendaval. As paredes brancas do apartamento pareciam mais frias naquela manhã cinzenta em Neuilly-sur-Seine, um bairro elegante de Paris. Do lado de fora, a garoa caía delicadamente, tingindo a cidade com tons de melancolia. Era 11h26 da manhã, e o ar cheirava a madeira molhada e café passado.
Na metade da escada, encontrei Marie, a funcionária que ajudava com a limpeza, ajoelhada no chão, esfregando o piso com um pano embebido em algum produto tás-tás-francês.
— Bonjour. — ela disse, sem me olhar, a voz gentil como sempre. — O café já está na mesa.
— Minha mãe já foi trabalhar? — perguntei, com a voz mais baixa do que pretendia.
Ela apenas fez um movimento leve com a cabeça e continuou esfregando o chão. Entendi a resposta: minha mãe estava em casa. Suspirei fundo.
Na cozinha, encontrei Célia sentada com a coluna ereta, um ar de ocupação eterna. Na mesa, um espresso pequeno, um prato com dois ovos fritos perfeitamente temperados e uma maçã intacta, provavelmente mais estética do que apetitosa. O laptop diante dela exibia planilhas, e sua mão direita se agitava no ar com o celular preso ao ouvido esquerdo.
— Preciso que você prepare o relatório financeiro urgente. Precisamos apresentar antes da concorrência. Assim teremos mais chances de sermos selecionados. Nossa, é um contrato de dez anos... Se formos selecionados, vamos exportar eventos para o mundo todo.
(Uau, mundo todo é muita coisa.)
Não falei, mas pensei alto o suficiente para que ela erguesse os olhos. Ela sabia quando eu estava debochando, mesmo em silêncio. Me dirigi ao fogão e preparei meu café coado com leite. Detestava aquela máquina café-pellets.
Ela desligou o telefone, me olhou com aquele ar diplomático e disse:
— Au revoir. Bom dia, minha bruxinha. Como anda sua vida artística?
Revirei os olhos e fiz um carão.
— E como anda os negócios, mãe bruxona?
Ela riu, satisfeita com o jogo de palavras.
— Preciso de energias positivas. Estou finalizando um projeto que será grandioso.
— Hum... interessante. — minha voz arrastada deixava claro meu desinteresse.
— Mas me fala da faculdade. Faz muito tempo que não conversamos, bruxinha.
— Hoje eu vou apresentar um trabalho artístico. O professor pediu algo do coração...
— Um minuto, filha. Estou recebendo uma ligação importante.
Ela se afastou com o telefone de novo colado ao ouvido. Soltei um suspiro exagerado.
— Obrigada, mamãe, pela atenção. — falei em voz alta, enquanto revirava os olhos novamente.
Pouco depois, estava na porta de casa esperando Inès. Minha carona de todos os dias e uma das únicas pessoas que me mantinham sã nesta cidade. Desde a minha saída de North-Pólen, fui proibida de dirigir. Algo sobre "má influência da adrenalina". Ainda me dava arrepios pensar nisso.
O carro de Inès parou com suavidade. Ela abriu a janela.
— Bonjour, ma chérie. Pronta pra impressionar Adrian com sua arte?
— Só se ele não estiver de TPM masculina hoje. — Respondi, rindo.
Entramos no carro e seguimos por entre as ruas arborizadas. Ela colocou um disco de jazz moderno, e o som preenchia o espaço entre uma conversa e outra.
— Ainda tá sonhando com o Daniel? — ela perguntou, arqueando uma sobrancelha.
— Não sei se é sonho ou tortura psicológica constante.
— Isso é romântico. — disse com sarcasmo.
— Isso é masoquismo.
Na porta da Faculdade Delacrux des Arts Visuels, ela me deixou e seguiu para o estacionamento. A arquitetura clássica do prédio principal me lembrava aquelas pinturas do século XIX. Tinha um charme decadente.
Na entrada, encontrei Malik. Ele tinha 24 anos, pele negra como a noite sem lua, cabelos raspados nas laterais e um sorriso que iluminava mais que a Torre Eiffel inteira.
— Olá, Renata Ray da arte dramática. — disse ele, brincando.
— Olá, Malik dos raps secretos.
— Dormiu bem ou ficou sonhando com Daniel de novo?
— Dormi mal e sonhei bem. Tem alguma coisa errada nisso.
Rimos. Estávamos nos conhecendo havia três dias. Não havia promessas, apenas encontros, beijos escondidos e um certo fascínio.
Na galeria da faculdade, as obras estavam cobertas com lonas pretas. Inès e eu nos posicionamos diante das nossas. Alunos murmuravam expectativas.
Professor Adrian entrou na sala com sua prancheta, terno marrom e uma câmera pendurada no pescoço.
— Vamos começar. Inès Valois.
Ele puxou a lona. Um corpo grego nu, perfeito... exceto pelo pênis desproporcionalmente grande.
Os alunos tentavam conter o riso.
— Isso diz muito sobre sua personalidade, Inès.
Ela sorriu, nada abalada. Sempre confiante.
— Agora... Renata Ray.
Ele puxou a lona da minha obra.
Era um carro esculpido em camadas de resina e ferro oxidado, os faróis acesos por LEDs e no painel uma cidade vazia. No banco do passageiro, uma figura feminina feita de espelhos rachados. A legenda: "Correndo em linha reta para lugar nenhum."
Houve um silêncio.
Adrian se aproximou, seus olhos fixos.
— Incrível. Um carro, mas não sobre velocidade. Sobre ausência. Sobre Paris e o que ela não consegue preencher.
Inès me cutucou.
— Ele tá caidinho por você. Aposto que vai inventar um projeto só pra passarem mais tempo juntos.
— Para. Ele é meu professor.
— Professores são pessoas também, querida. Pessoas com carências...
Saímos rindo.
Malik nos esperava.
— Estavam falando mal de mim?
— Estávamos planejando sua ruína, claro. — brinquei.
— Então vamos beber algo pra comemorar antes da ruína.
— Minha mãe me mata se eu não chegar no horário.
— Então a gente acelera. — disse ele com um sorriso torto.
Seguimos para uma região subterrânea da cidade, conhecida como "La Tranchée". Um espaço escondido sob os trilhos de um metrô desativado. Motos, carros tunados, garotas com cabelos coloridos, garotos tatuados. Era Undeer City com baguetes.
Meus olhos brilharam. Aquilo pulsava como meu peito nas corridas. Malik notou.
— Você contou sobre... como chama? North-Pólen?
— Sim. Onde o asfalto queimava e a vida era acelerada.
Ele se sentou ao meu lado, em um canto alto com vista para os carros abaixo.
— Eu cresci no 18º distrito. Gueto. Meu pai sumiu cedo. Minha mãe limpava casas. Tive que crescer rápido. Trabalhar cedo. Ganhar respeito. Aqui, esses rachas são minha fuga.
— Sinto muito...
— Não sinta. Isso me tornou quem sou. E olha onde estou. Com você.
Ele me beijou.
Foi suave no início. Depois, urgente. Mãos, suspiros, calor.
Me afastei, com o coração acelerado.
— Está indo rápido demais...
Ele assentiu. Não insistiu.
Me levou de volta pra casa. Nos despedimos com um beijo na testa.
E naquela noite, antes de dormir, sonhei com Daniel. Mas desta vez, ele estava em Paris, dirigindo aquele carro feito de solidão.
(...)
O relógio marcava 23h17 quando Adrian largou a taça de vinho meio cheia sobre o parapeito da janela de seu apartamento, no sexto andar. A cidade ainda respirava abaixo, e as luzes dos carros se misturavam à chuva fina que escorria no vidro. Ele olhou para o celular, hesitou por dois segundos, e então discou.
— Allô? — atendeu Léo com sua voz grave e arrastada.
— Léo, mon ami... — Adrian sorriu, olhando para o nada — …acho que encontrei o que você procurava.
— Seja mais direto. Você sabe que não gosto de suspense.
Adrian se virou, olhando para o mural com fotos de estudantes da Delacrux Arts Visuels.
— Uma artista. Brilhante. Incrivelmente instintiva. Jovem, talentosa... e com um passado interessante. O tipo de arte que você adoraria explorar... e talvez manipular.
Léo silenciou por um instante.
— Nome?
— Renata Ray.
— Ray?
— Sim. Filha da Célia Ray.
A respiração de Léo pesou no outro lado da linha.
— Agora estou ouvindo, Adrian.
Adrian riu baixinho, com um leve brilho de vingança nos olhos.
— Eu imaginei que estaria.
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A cidade dormia sob um cobertor pesado de neblina e silêncio, quebrado apenas pelos passos ecoantes de Malik sobre o asfalto úmido. As luzes dos postes piscavam com falhas, lançando sombras intermitentes pelas paredes grafitadas dos becos. Era tarde. Muito tarde. E ele sabia que não devia estar ali.
O caminho era o mais curto entre a estação e seu pequeno apartamento alugado no 18º distrito. Mas também era o mais arriscado. As vielas que cortavam o coração velho de Paris escondiam mais que lixo e ratos — escondiam histórias que não se queria reviver.
Após enviar uma mensagem de texto para Renata, Malik enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta jeans surrada, tentando se aquecer mais do que se proteger. A noite estava gélida, mas sua mente fervia. Pensava em Renata, no jeito como ela sorria com o canto da boca, nos olhos castanhos profundos, na forma como ela não sabia esconder o que sentia. Pensava em como sua vida poderia mudar... se tudo desse certo dessa vez.
Então, do nada, braços o agarraram com violência, puxando-o contra a parede de pedra úmida.
— Opa, opa, sua direita ainda tá ótima, monsieur Malik — disse uma voz rascante, com um sotaque francês puxado, familiar e desagradável.
O impacto do Corpo contra a parede tirou o ar dos pulmões de Malik por um instante. O rosto do agressor surgiu das sombras. Era Djalil, um velho conhecido do gueto — um daqueles “amigos” que sorriem com os dentes, mas mordem com as palavras.
Malik reagiu por puro instinto. O punho direito se fechou e, com força concentrada, acertou o maxilar de Djalil, fazendo-o cambalear um passo para trás.
— Merde! — resmungou Malik, ajeitando a gola da jaqueta. — Droga? Não pode me agarrar assim num beco a essa hora. Tá doido?
Dois vultos emergiram da penumbra atrás de Djalil. Dois caras altos, encapuzados, olhar de predador. Malik deu um passo para trás, o corpo tenso, o olhar se movendo rápido entre os três.
— Sério? Precisa disso? Três caras? — tentou manter a voz firme, mas o medo lhe traía no canto dos olhos.
— Cadê a nossa grana, Malik? — disse Djalil, agora recuperando o equilíbrio e limpando um filete de sangue no lábio. — Já se passaram dois meses. Você sumiu. Acha que esquecemos?
— Calma, cara. Eu disse que ia pagar. Eu conheci uma garota nova... A mãe dela tem dinheiro... — Malik tentava ganhar tempo.
Mas não teve tempo. Um dos capangas lhe cravou o punho no estômago, o suficiente para fazê-lo dobrar os joelhos, tossindo.
— Sim, sim... seus golpes baratos em garotas carentes não tão rendendo, Malik. Ainda faltam 40 mil. — Djalil se aproximou, agarrou-o pela gola, e colou seu rosto no dele. — Quarenta mil. Ou quer que eu desenhe no chão?
Malik tentou se recompor, engolindo a dor com saliva e orgulho.
— Cara... dessa vez vai dar certo. Sério. Ela é diferente.
— Ah, claro. A história de sempre. — Djalil riu. — Vai seduzir a garota e arrancar grana da família. Clássico Malik. O que vai fazer agora, hein? Vai sequestrar a menina?
O silêncio caiu como um trovão.
Por um instante, os três encararam Malik. Ele hesitou. E foi justamente essa hesitação que Djalil soube interpretar como fraqueza.
— Hah... não tem estômago pra isso, Malik. A gente sabe. Você é só um sonhador do gueto com a lábia afiada e a alma mole.
Mas então, com um meio sorriso, Djalil deu um tapinha no rosto dele, como um irmão mais velho encorajando o caçula antes de empurrá-lo do penhasco.
— Mas hoje... hoje é o seu dia de sorte, monsieur Malik.
Ele estalou os dedos. Um dos caras tirou algo do bolso — um envelope grosso.
— Temos um trabalho pra você. Um serviço pequeno, mas que pode pagar uma parte da dívida. Simples, direto, quase elegante. Interessado?
Malik olhou para o envelope, ainda ofegante, a expressão dividida entre medo e alívio. Seus dedos se fecharam devagar em torno do papel pardo. Ele não disse nada. Mas não precisava.
Naquele beco, em meio à garoa da cidade e às promessas não ditas, Malik sabia que acabara de cruzar uma linha. Mais uma vez.
(...)
O som do sino antigo marcava meia-noite em ponto quando Inès Valois empurrou discretamente a pesada porta lateral da Maison Épine. O prédio, de fachada aristocrática e sombras barrocas, parecia adormecido entre os casarões do 9ème arrondissement. Mas lá dentro, sob a luz baixa das arandelas douradas, a noite estava apenas começando.
Ela ajeitou o lenço que escondia seus cachos e amarrou com firmeza o avental de tecido cru, desgastado pelos meses de trabalho noturno. Suas mãos — que mais cedo seguravam pincéis e carvão na aula de escultura — agora percorriam rolos de tafetá, linho e cetim com a destreza de quem já sabia onde estavam os pequenos defeitos e os grandes segredos de uma peça de alta costura.
— Bonsoir, chérie... atrasadinha de novo? — provocou Amadou, o cortador-chefe, um homem imenso com voz de veludo e dedos leves como brisa. Ele lhe ofereceu um sorriso enquanto guiava um pedaço de tule cor de champanhe sobre uma mesa de moldes.
— C’est Paris, Amadou... o metrô decidiu tirar uma soneca no meio da linha. — Inès revirou os olhos com charme. Seu francês era perfeito, mas tinha o sotaque despreocupado de quem cresceu entre línguas diferentes. Ela se posicionou diante da bancada e começou a alfinetar a saia de uma peça que levaria semanas para ser bordada.
O atelier estava em pleno caos elegante: tecidos empilhados em montes vibrantes, manequins com braços tortos cobertos por vestidos em gestação, estojos de pérolas e fios dourados espalhados como tesouros secretos. Um rádio antigo tocava jazz instrumental, e o perfume do incenso de sândalo disfarçava o leve cheiro de cola quente e suor.
A cada passo, Inès tomava cuidado para não deixar cair seu crachá da faculdade, que ficava escondido no bolso do avental. Ninguém ali podia saber que ela era apenas uma estudante — muito menos que sua peça final do semestre havia sido inspirada por um vestido que ela mesma ajudou a montar ali dentro, durante as madrugadas.
Ela se aproximou do manequim onde a estilista-chefe, Madame Lucille, deixara o molde de uma nova criação. Era um vestido negro, esqueleto de algo grandioso, com ombros estruturados e gola alta que lembrava as divas do cinema noir. Inès segurou a manga direita com as duas mãos e, por alguns segundos, ficou parada, observando.
Isso aqui é o meu palco secreto, pensou. É onde posso ser genial... sem ninguém olhar.
— Inès, preciso de você aqui! — chamou Madame Lucille do fundo da sala, com voz cortante. — La cliente libanaise quer ajustes no forro antes do desfile de sábado. E traga o croqui da peça branca também. Aquele que você... sugeriu. A mulher arqueou uma sobrancelha.
Inès sentiu um arrepio. A sugestão que fizera, de forma quase acidental, dias atrás, fora acolhida e transformada em parte da coleção. Mas seu nome não constava em lugar nenhum. Mesmo assim, o orgulho que sentia não cabia no peito.
— Oui, madame! — respondeu animada, e correu até o armário de croquis, seus saltos baixos ecoando pelo piso de mármore envelhecido.
Horas depois, quando o relógio marcava 3h17 da manhã, Inès finalmente se sentou. Seus dedos doíam e os olhos ardiam. Mas ali estava ela, entre sedas e sonhos, segurando uma xícara de chá de jasmim e observando o vestido que ajudara a nascer. O vapor do chá subia em espirais finas, e a sensação era a mesma de quando completava uma obra de arte.
O mundo inteiro poderia me aplaudir agora, pensou, enquanto o coração batia tranquilo no ritmo da costura.
Do lado de fora, Paris dormia em silêncio. Mas dentro da Maison Épine, Inès Valois brilhava, mesmo que ninguém soubesse disso.
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