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Entre Faíscas e Sentenças

A Imbatível Clara Monteiro

O salto fino ecoava no mármore claro da recepção como uma declaração de guerra: Clara Monteiro estava ali. E estava pronta.

Não havia nada naquela mulher que passasse despercebido. Nem o corte preciso do tailleur cinza escuro, nem a pasta de couro que ela segurava com a mesma firmeza com que segurava seus argumentos. E, muito menos, o olhar. Aquele olhar. Firme, penetrante, ligeiramente entediado — como se estivesse sempre dois passos à frente de quem quer que ousasse se opor a ela.

Aos trinta anos, Clara não apenas ocupava uma sala no novo e cobiçado escritório de advocacia Santiago & Ramos — ela já tinha o respeito silencioso de todos que passavam por ela. Ganhara sua vaga não por sorte ou indicação, mas por uma trajetória impecável feita de inteligência, ambição, e, principalmente, da teimosa incapacidade de aceitar menos do que merecia.

E ela sabia disso. Sabia do próprio valor. Sabia que sua presença incomodava. E adorava.

Clara nasceu no meio de uma guerra que não começou com ela: a eterna rivalidade entre Selma Monteiro, sua mãe, e Ângela Moretti, a vizinha da casa ao lado. Duas mulheres orgulhosas, exigentes, competitivas — e que viam nos filhos o reflexo das próprias vitórias.

A infância de Clara foi regada a comparações. Selma exigia excelência, compostura, resultados. “Se ele tirou 9, você tira 10.”

Ele, no caso, sempre era Caio Moretti. O vizinho irritante que transformava qualquer interação em disputa. Um monstro de ego que insistia em roubar o pódio, o centro das atenções, e às vezes — só às vezes — o ar que ela respirava.

A verdade é que Clara nunca soube o que era crescer em paz. Cresceu em competição. Cresceu aprendendo a argumentar, a vencer pelo raciocínio, a sobreviver aos silêncios da mãe e aos olhares de deboche de Caio. Aprendeu que inteligência era sua arma. E sarcasmo, seu escudo.

Na escola, ela foi a aluna que sentava na frente — mas que rebatia os professores quando notava um erro. A garota que escrevia ensaios brilhantes e arrancava aplausos nas apresentações, mas que também ganhava inimigos por nunca fingir modéstia.

Na faculdade de Direito, surpreendentemente, Caio também estava lá. Claro que estava. Escolheram o mesmo curso, a mesma universidade, até algumas das mesmas matérias. E mesmo que nunca admitissem, sabiam exatamente onde o outro estava a cada semestre. Era inevitável. Um orbitava o outro como se o universo tivesse uma piada pessoal com os dois.

Mas ali, Clara se superou. Publicou artigo acadêmico aos 21, foi monitora, estagiou com os melhores nomes, defendeu colegas injustiçados como se fosse um tribunal de verdade. Aprendeu, com frieza, a transformar emoção em estratégia. E Caio… bom, ele estava sempre por perto. Às vezes à frente, às vezes atrás — mas sempre ali. O olhar dele sempre parecia um desafio.

Agora, advogada formada, reconhecida, contratada por um dos escritórios mais exigentes do estado, Clara sentia que, finalmente, estava onde queria. E não havia espaço para distrações.

Ela organizava sua nova mesa quando sentiu o celular vibrar. Era sua mãe.

Selma: “Vi no grupo do condomínio que os Moretti estão de volta. Parece que Caio também vai trabalhar aí no centro. Cuidado com esse rapaz. Ele sempre achou que podia mais do que devia.”

Clara revirou os olhos. Selma falava de Caio como quem fala de uma gripe insistente: algo que volta todo inverno, mesmo quando você se vacina.

Ela jogou o celular sobre a mesa sem responder. Por mais que não gostasse de admitir, o nome de Caio ainda tinha um peso. Como se toda vez que ela o ouvia, algo dentro dela se preparasse — como um sistema de defesa que nunca foi desativado.

Mas agora era diferente. Ela estava madura. Pronta. Inatingível.

Ou era o que ela queria acreditar.

Clara girou a cadeira, encarando a vista ampla da cidade pela janela envidraçada. O novo escritório ficava no 23º andar, e dali dava para ver boa parte da zona empresarial. Um símbolo claro de sucesso. O suficiente para alimentar seu ego por um tempo. Mas ela sabia que reconhecimento não bastava. Ela queria mais. Queria o topo. Queria respeito. Queria, acima de tudo, vencer.

E se o destino ousasse colocar Caio Moretti no seu caminho mais uma vez… bem, paciência.

Ela estava pronta para vencê-lo. De novo. Ou, ao menos, era o que dizia para si mesma toda vez que o nome dele atravessava seu pensamento como um raio.

Afinal, ela era Clara Monteiro. E odiava perder. Ainda mais para ele.

Caio Moretti Não Brinca

Caio Moretti sempre soube que o mundo era um jogo.

E ele aprendeu cedo a jogar.

Enquanto os outros meninos chutavam bola no pátio, Caio observava. Media, analisava, escolhia quando entrar e, principalmente, quando vencer. Porque para ele, entrar em algo sem a intenção clara de sair por cima… era perda de tempo.

Não que ele dissesse isso em voz alta — pelo menos, não sempre. Mas estava lá. Na postura. No jeito como olhava as pessoas por cima dos óculos escuros. No andar firme, na fala precisa. Caio tinha o dom irritante de parecer sempre no controle. E o detalhe mais perigoso: ele quase sempre estava.

Filho de Ângela Moretti — a mulher que transformava cada churrasco do condomínio em um campo de batalha social — Caio cresceu ouvindo que deveria ser o melhor. Não um dos melhores. O melhor.

E parte desse fardo vinha na forma de uma comparação constante com a vizinha da frente. Mais especificamente, com a filha dela.

Clara Monteiro.

Nome curto. Início igual ao dele. Temperamento… explosivo.

Ângela não escondia o desprezo: “Essa menina é insuportável. Acha que sabe de tudo. Não deixa ninguém falar. Vai acabar sozinha com esse gênio.”

E Caio, ainda pequeno, absorvia tudo em silêncio. Observava Clara de longe e… se incomodava. Porque o pior era que, às vezes, a praga estava certa.

Na escola, Clara era rápida. Ácida. E — para desespero dele — invencivelmente inteligente. Enquanto os outros meninos ficavam nervosos com sua presença, Caio só queria vencê-la. Em tudo. Na nota de matemática, na oratória, na corrida de revezamento. Ela era a régua invisível com a qual ele media o próprio desempenho.

Mas também era a pedra no sapato. A única pessoa que não se intimidava com ele. Que retrucava. Que zombava. Que jogava o jogo com a mesma frieza, a mesma audácia. Às vezes, ele se pegava pensando: se ela não fosse tão irritante… seria perfeita.

Durante a faculdade de Direito, o destino teve a gentileza de não deixá-lo esquecer de Clara.

Ela estava lá. Sempre. No mesmo curso. No mesmo grupo de debates. Às vezes até na mesma sala.

Era como se o universo dissesse: “Divirtam-se, idiotas.”

E, sim, havia algo de divertido. As brigas eram legendárias. Os olhares cruzados em corredores estreitos, os comentários sarcásticos em apresentações conjuntas, as pequenas vitórias — e as grandes provocações. Ela o fazia perder o controle. E ele odiava perder o controle. Mas, de um jeito estranho, também gostava do desafio.

Clara não era só inteligente. Ela era afiada. Sagaz. Tinha uma resposta pronta para cada palavra dele. E, mais perigoso ainda, parecia enxergá-lo. De verdade. Como se pudesse ver além da pose, da arrogância ensaiada, da casca. Isso o irritava. O deixava vulnerável. E Caio odiava se sentir vulnerável.

Então ele disfarçava com ironia. Com charme. Com aquele sorrisinho torto que desarmava quase todo mundo. Quase.

Agora, com trinta e um anos, recém-chegado de uma temporada em Brasília — onde trabalhou com um dos juristas mais influentes do país — Caio voltava para São Paulo com o nome já reconhecido no meio jurídico, um currículo invejável e a promessa de um novo cargo num dos maiores escritórios do país: Santiago & Ramos.

Era o movimento lógico. A nova peça no tabuleiro. E Caio jogava bem demais para não dar esse passo.

Ele dirigia pelas ruas movimentadas da zona sul como quem já sabia exatamente onde queria chegar. Mãos firmes no volante, mente calculando os próximos passos. Sabia que o escritório era exigente, competitivo, um campo de batalha jurídico — e era exatamente o que ele queria. O que ele precisava.

Só não esperava a mensagem da mãe.

Ângela: “Vi no grupo do bairro que a Clara Monteiro também vai trabalhar nesse escritório. Espero que eles tenham seguro incêndio, porque vocês dois juntos...”

Caio riu sozinho, um riso baixo e cético. Claro que Clara estaria lá. Por que não? Ela sempre estava.

Na competição. Na frente. No caminho.

No lugar errado na hora mais certa possível.

Ele encostou o carro e digitou uma resposta rápida.

Caio: “Fica tranquila. Eu sou civilizado. Só não prometo que ela vai continuar sendo.”

Mas a verdade era: ele não sabia o que sentir.

Algo nele se incomodava com a ideia de vê-la de novo. Algo no fundo do estômago, um misto de curiosidade e instinto de defesa. Fazia anos que não se viam pessoalmente, mas ele tinha certeza de que ela ainda o deixaria louco. Como sempre fez. Como só ela fazia.

E havia uma parte dele que queria isso. Que queria vê-la. Testá-la. Provocá-la.

Ver se ela ainda era tão afiada. Ver se ela ainda o odiava tanto quanto ele fingia odiá-la.

Mas, por ora, ele precisava manter a compostura. Ser o profissional brilhante que todos esperavam. Mostrar a que veio.

O jogo ia começar de novo.

E ele não perderia dessa vez.

Nem para ela.

Nevasca

O céu estava limpo, mas Clara sentia a tempestade se formando.

Desde o momento em que pisou no prédio do Santiago & Ramos, havia uma tensão diferente no ar. Algo pesado. Quase imperceptível… até que a recepcionista falou:

— O novo advogado da área cível também chega hoje. Deve estar subindo agora.

Clara sorriu com educação e caminhou até a sala indicada, sem se abalar. Ou melhor, fingindo não se abalar.

Internamente, o nome de Caio Moretti dançava como uma praga entre os pensamentos. Ela ainda não tinha certeza se ele era o tal novo integrante do time jurídico — mas se fosse, o universo definitivamente tinha um senso de humor sádico.

Ela ajeitou o cabelo, cruzou a perna com elegância e se acomodou em sua cadeira de couro. Tinha vencido. Estava ali. Ganhando espaço em um dos maiores escritórios do país por mérito próprio. Não ia se deixar abalar por um idiota com ego inflado e um sorriso idiota.

Mas então…

A porta se abriu.

E o mundo pareceu fazer uma pausa só para assistir.

— Ora, ora… olha só quem voltou congelando o ambiente — disse ele, a voz grave, carregada de ironia e um sotaque paulistano carregado de deboche.

Ela nem precisou se virar para saber. O timbre estava igual. A arrogância? Também. Mas o homem na porta já não era o garoto que ela empurrava nos corredores da escola. Era Caio Moretti — mais alto, mais largo, mais refinado. Um terno caro moldava o corpo com precisão cirúrgica, e o olhar era o mesmo: afiado, perigoso e deliciosamente insuportável.

Clara girou lentamente a cadeira e cruzou os olhos com ele.

— Ainda usando o vocabulário de ensino fundamental? Impressionante. Achei que o tempo tivesse feito você amadurecer. Mas pelo visto, só te fez comprar ternos mais caros.

Caio sorriu. Um daqueles sorrisos perigosos. Lentos. Preguiçosos. De quem adora o próprio veneno.

— E você continua igualzinha, Nevasca. Gela qualquer ambiente em que entra. Me diga… algum homem já conseguiu sobreviver a um toque seu? Ou ainda tem fila de vítimas congeladas?

O apelido bateu como um tapa. Velho, odioso, repulsivo. Nevasca. Criado na oitava série, depois de uma discussão em que Clara o humilhou publicamente — Caio, ferido, soltou na frente de meia escola que “Clara era tão fria que transar com ela devia ser tipo dormir com uma geladeira”. O apelido pegou. E ela odiava.

Mas naquele dia, naquela sala, Clara Monteiro era uma mulher feita. E ninguém mais a tirava do sério sem permissão.

Ela riu. Um riso curto, quase elegante. Cortante como navalha.

— Sabe, Caio… é adorável que você ainda pense em mim dessa forma. Significa que, apesar de todos esses anos, o seu ego ainda sangra pelas cicatrizes que eu deixei. Tão previsível…

Ele deu um passo à frente, desafiador.

— Ah, você deixou marcas, Clara. Algumas ridiculamente profundas. Como uma espinha mal curada que a gente adora cutucar.

Ela se levantou, o salto ecoando com classe no piso de madeira.

— Que pena. Eu curei todas as minhas. Você devia tentar o mesmo. Ou talvez seja isso que dói: perceber que o jogo virou e você ainda está preso nas partidas antigas.

Por um segundo, os dois ficaram ali. Um encarando o outro. A sala parecia pequena demais para tanto sarcasmo, tanta história mal resolvida, tanto desejo não admitido disfarçado de ódio.

— Se isso aqui vai ser um campo de batalha — ele disse, a voz mais baixa agora, mais próxima —, saiba que eu jogo para ganhar.

Clara se aproximou. Tão perto que ele pôde sentir o perfume dela, fresco, elegante, inebriante.

— E eu nasci para vencer, Caio. Você deveria lembrar disso antes de chamar uma tempestade de Nevasca.

Silêncio.

Tensão.

Faíscas invisíveis no ar.

Então, como se o universo precisasse respirar, a porta se abriu de novo.

— Boa tarde, equipe! Bem-vindos oficialmente. — Era um dos sócios do escritório, sorrindo e trazendo pastas.

Ambos sorriram. Educados. Profissionais. Civilizados.

Mas por dentro?

Guerra.

E a primeira batalha só tinha começado.

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