O outono tingia a fazenda com tons de ouro e ferrugem. As folhas secas riscavam os caminhos de terra como memórias que insistiam em permanecer, mesmo quando o tempo empurrava tudo para frente. A vida ali era mais lenta, mais cheia de significados ocultos. Mas o silêncio nunca fora apenas calmaria nos domínios dos Amaral — ele sempre foi o prenúncio do que viria.
Edward Amaral estava com quatorze anos.
Alto para sua idade, olhar glacial, e uma presença que pesava nos ambientes. Era o tipo de garoto que não precisava dizer uma palavra para ser respeitado — ou temido. Usava o uniforme da escola com exatidão quase militar, carregava livros como quem carrega armas e tinha um estranho fascínio por xadrez e história de guerras. Seu quarto era organizado, meticulosamente limpo, sem um pôster na parede, sem uma cor vibrante. Apenas uma pequena estante com biografias de líderes e estrategistas, e, na parede, uma fotografia antiga: Aslan segurando Ayla pela cintura, olhando o horizonte com a expressão que moldou o império Amaral.
Ele estudava em um colégio internacional em São Paulo. E toda semana voltava para a fazenda. Nunca faltava. E nunca contava o que acontecia por lá. Mas bastava observá-lo para saber: Edward via mais do que deixava escapar.
Naquela sexta-feira, ele chegou antes do pôr do sol. Desceu do carro com passos lentos, mochila nas costas, e uma carta dobrada no bolso. Mais uma.
— As meninas da sua escola estão em guerra, hein — provocou Noah, parado na varanda, com um copo de suco na mão e um sorriso provocativo.
Edward ergueu uma sobrancelha.
— Guerra implica em duas forças em conflito. Eu nem participo.
— Que modesto — Céline surgiu logo atrás, envolvendo Noah pela cintura. — Ou é um pequeno Aslan disfarçado?
Edward não respondeu. Apenas caminhou para dentro da casa com o mesmo silêncio que o tornava inquietante.
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Na cozinha, Luna mexia um molho aromático na panela. Dante estava ao lado dela, cortando legumes com a precisão de quem aprendeu a dominar até a cozinha por amor. O jantar seria apenas para os da família: irmãos, pais, filhos, e os escolhidos de coração.
— Ele tá mais fechado que o normal — disse Luna, referindo-se ao filho.
— Adolescência — murmurou Dante. — Ou legado.
Luna o olhou de lado, preocupada.
— Às vezes tenho medo que ele esteja carregando o peso de todos vocês. De você, principalmente.
— Ele não carrega nada que não queira. Ele foi feito para isso.
Luna suspirou. Não era um consolo. Era uma constatação.
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Na sala de estar, Yara organizava um álbum de fotos para o jantar da noite. Gael entrou, pegando-a de surpresa por trás, depositando um beijo em sua nuca.
— Lembra do nosso casamento? — ele perguntou, folheando as imagens.
— Como esquecer? Você usou branco. Achei que era pra mim, mas era pra você brilhar.
— E você de vermelho. Ninguém esperava. Mas era a sua cara.
— Era a nossa guerra disfarçada de altar — ela disse, sorrindo. — E vencemos.
Aurora chegou pouco depois, com Valentina e duas crianças nos braços — seus filhos gêmeos, agora com cinco anos, correndo de um lado para o outro.
— Me lembra de nunca mais dar doce antes de um jantar — resmungou Aurora, enquanto um dos filhos derrubava uma almofada.
— São Amaral — brincou Valentina. — Eles nasceram intensos.
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Quando a noite caiu, a mesa foi posta no jardim. Luzes penduradas nas árvores, vinho servido em taças de cristal, pratos antigos resgatados do baú de Ayla, que observava tudo com olhos marejados.
Aslan chegou por último, usando um paletó escuro e o mesmo olhar que sempre carregou: de quem sabe tudo, mas fala pouco. Sentou-se ao lado da esposa, segurou sua mão, e esperou.
Edward se sentou à esquerda de Dante. Silencioso. Observando.
— Vou fazer um brinde — disse Ayla, erguendo sua taça.
Todos silenciaram.
— Ao tempo. Que ensinou mais do que qualquer livro. Aos erros. Que nos fizeram acertar. Às alianças. Que nos curaram. E aos nossos filhos — ela olhou para cada um, parando em Edward por fim — que não repetiram nossos passos… mas construíram novos caminhos.
As taças se ergueram. E os olhos também.
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Durante o jantar, as conversas fluíam com leveza.
— Você sabia que Edward recebe pelo menos uma carta por semana de garotas da escola? — disse Aurora, rindo.
— O quê? — Yara quase engasgou com o vinho. — Ele só tem catorze!
— As garotas têm olhos — disse Gael.
— Ele nem responde — completou Luna.
— Isso é o pior — murmurou Céline. — A indiferença é uma arma poderosa.
Edward apenas observava. Não corava. Não reagia. Mas havia algo nos seus olhos… algo entre orgulho contido e cansaço precoce.
— E o que você quer ser, afinal? — perguntou Noah, num tom leve, mas curioso.
Edward olhou diretamente para ele. Seus olhos cinzentos eram como espelhos opacos.
— Eu não vou ser. Eu já sou. Só estão esperando perceber.
Silêncio. Depois risos.
Mas nenhum dos adultos ali subestimou aquelas palavras.
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Depois do jantar, eles sentaram-se ao redor da fogueira. Cada casal, cada história, cada parte do legado estava ali, viva, quente, pulsante.
Ayla acariciava o rosto de Aslan. Os dois estavam mais velhos, sim, mas havia algo que jamais envelheceria entre eles: a certeza de que tudo o que construíram nasceu do impossível.
Yara encostava-se a Gael com a cabeça no ombro dele, olhando as estrelas com um sorriso calmo. Aurora cochichava algo para Valentina, que ria com os olhos. Dante e Luna estavam lado a lado, as mãos unidas no colo. E Edward… observava.
Ele via tudo. Gravava tudo.
E, quando ninguém esperava, falou:
— Um dia, eu vou sentar aqui. Com a minha mulher. Com os meus filhos. E vocês vão ver que eu não fui apenas herdeiro do nome. Eu fui a evolução dele.
Dante ergueu os olhos. Ayla sorriu em silêncio. Aslan apenas assentiu.
E Luna, com os olhos marejados, sussurrou:
— Meu menino.
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Na escuridão daquela noite, o que mais se ouvia não era o som da fogueira crepitando.
Era o som da próxima geração nascendo. E ninguém tinha dúvidas: Edward Amaral era a nova promessa do império.
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A manhã havia começado como tantas outras no Colégio Internacional Saint Augustine. Os corredores de mármore branco brilhavam sob a luz fria do outono, refletindo os passos apressados e os cochichos abafados de adolescentes envoltos em seus próprios universos. As salas eram climatizadas, os professores exigentes, os uniformes impecáveis. Ali, o prestígio vinha com sobrenomes. E o de Edward Amaral era uma fortaleza entre paredes de vidro.
Ele entrou pela portaria sem trocar palavras com ninguém. Costumava caminhar reto, com os fones desligados nos ouvidos — não por ouvir música, mas por manter a distância. Não era um garoto popular no sentido tradicional. Era temido, admirado e completamente inalcançável. As garotas o viam como um enigma — e os garotos, como uma ameaça que não se nomeava.
Mas naquela manhã, algo desviou sua atenção.
Ela estava parada ao lado do portão lateral. Os cabelos castanhos estavam soltos, despenteados pelo vento, e a mochila parecia pesada demais para os ombros frágeis. Vestia o mesmo uniforme dos outros, mas nele não havia ajuste ou orgulho. Estava grande demais, como se tivesse sido emprestado. A saia longa escondia os joelhos, os sapatos estavam gastos. E o olhar… era o oposto de tudo ali.
Ela não olhava para ninguém. Olhava para o chão. Como quem espera algo ruim acontecer.
— Viu a esquisita nova? — cochichou uma menina, rindo ao lado de um grupo.
— Deve ter vindo de algum abrigo — respondeu outra.
— Ou do lixo.
Risadinhas abafadas. Edward passou por elas como se não tivesse ouvido. Mas ouviu. E viu. Os olhares tortos. As provocações silenciosas. As costas viradas. E a forma como a garota aceitava tudo com a cabeça baixa, como se já tivesse aprendido que lutar era pior.
Na primeira aula, ela entrou atrasada. O professor não reclamou — talvez por pena. Sentou-se na última fileira. Não tinha caderno, nem estojo. Apenas um envelope dobrado que usava como marca-página.
Na terceira aula, alguém derrubou os papéis dela no chão. Sem querer, é claro. Ninguém viu quem foi. Ela se ajoelhou em silêncio para recolher, os dedos tremendo. Ninguém ajudou. Mas Edward observava. O tempo todo.
Durante o intervalo, ela ficou do lado de fora, no banco perto das árvores. Sozinha. Enquanto as outras meninas riam em grupos, e os garotos passavam com olhares zombeteiros, ela comia um pedaço de pão seco que tirou de uma sacola. Sem água. Sem suco. Sem companhia.
E então Edward passou por ela.
Olhou direto. Ela não ergueu os olhos.
Mas alguma coisa apertou no peito dele.
Algo antigo. Algo que não vinha do presente.
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A semana passou assim.
Ela sempre sozinha.
Sempre quieta.
Sempre alvo de cochichos, piadas maldosas, empurrões discretos nos corredores, olhares de desprezo. Mas nunca revidava. Nunca reclamava. Nunca olhava nos olhos de ninguém. Edward observava cada detalhe, como se a mente estivesse registrando os movimentos de uma peça de xadrez que ninguém mais via.
Na sexta-feira, ele voltou para casa mais cedo que o habitual. O carro o deixou na entrada da fazenda, como sempre. Mas, dessa vez, ele desceu com os punhos cerrados. O céu estava nublado, e o vento trazia o cheiro forte da terra molhada.
Dante estava no campo, supervisionando os cavalos com Noah. Luna costurava algo na varanda com Yara. Gael e Aurora estavam na cidade. Mas Ayla estava ali, regando as plantas no jardim, quando viu o neto chegar.
— Você está com raiva — ela disse, sem desviar o olhar das flores. — Aconteceu algo?
Edward parou. Respirou fundo. Seus olhos estavam sombrios, mas não com ódio. Com indignação.
— Estão maltratando uma menina nova na escola — disse, com a voz baixa.
Ayla virou-se devagar.
— Maltratando como?
— Ignoram. Riem. Empurram. E ela não faz nada. Ela só aceita.
— E o que você faz?
Ele demorou a responder.
— Eu observo.
— E isso resolve?
— Ainda não. Mas vai resolver.
Ayla assentiu. E não perguntou mais nada. Sabia que Edward era como o avô: não se movia por impulso. Quando tomava uma decisão, ela já vinha com consequências.
**
No jantar, ele falou pouco. Comeu menos ainda. Luna percebeu, mas respeitou o silêncio. Dante, no entanto, observava. O filho estava diferente. Carregando algo que não sabia nomear.
Naquela noite, Edward foi até o quarto de Aslan. Encontrou o avô lendo à meia-luz, como fazia todas as noites. Ayla dormia ao lado, exausta.
— Posso entrar?
Aslan ergueu os olhos. Um pequeno sorriso se formou.
— Você nunca pergunta. Claro que pode.
Edward sentou-se na poltrona de couro escuro.
— Existe um tipo de dor que a gente não vê?
— Existe — respondeu Aslan. — A dor de ser invisível. De não ter lugar no mundo.
— Ela tem esse olhar.
— Quem?
— A garota nova. Ninguém a quer ali. Mas ela também não quer estar. Só… sobrevive.
Aslan fechou o livro.
— E por que isso te incomoda?
— Porque me lembra de coisas que não vivi, mas sei. Como se estivesse vendo o início de um vazio que não termina.
Aslan assentiu.
— Então faça o que ninguém fez por mim, nem por você.
Edward olhou para o avô. E entendeu.
**
Na semana seguinte, ele mudou a rotina.
Começou a chegar mais cedo. Passava por ela e dizia “bom dia”. Sem esperar resposta. Quando alguém empurrava os livros dela no chão, ele os recolhia. Quando estavam no refeitório, sentava-se algumas mesas à frente, mas em silêncio, como um escudo não declarado.
Na aula de História, quando a professora propôs duplas, ninguém se aproximou dela. Edward se levantou.
— Posso fazer com você? — disse, de forma calma.
Ela hesitou. Depois assentiu com a cabeça.
E, naquele dia, ele viu um detalhe novo: os olhos dela eram de um verde-acinzentado estranho, como folhas antigas. E carregavam cicatrizes que ele reconhecia.
Cicatrizes de silêncio.
**
Quando voltou para casa naquela sexta, ele entrou pela porta e largou a mochila no chão.
Dante estava na cozinha.
— Como foi a semana?
Edward pegou um copo de água, bebeu inteiro, e respondeu:
— Estou cuidando de alguém.
Dante franziu o cenho.
— Alguém da escola?
— Uma garota. Ninguém gosta dela. Ninguém ajuda. Mas agora eu estou ajudando.
— E por quê?
Edward encarou o pai.
— Porque um dia... ninguém me viu também. E eu sobrevivi. Mas ela não deveria ter que sobreviver. Ela deveria apenas viver.
Dante não respondeu. Mas naquele instante, soube: o legado estava vivo. E estava crescendo.
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Na varanda, naquela noite, Ayla comentou baixinho com Luna:
— Ele tem olhos antigos. Como os do avô. Mas o coração… é seu.
Luna apenas sorriu. E agradeceu, em silêncio.
Porque a garota do silêncio, sem saber, acabara de ser escolhida por alguém que nunca deixava nada passar despercebido.
E o mundo dela estava prestes a mudar para sempre.
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O corredor principal do Colégio Internacional Bravatares tinha uma acústica peculiar. Tudo parecia ecoar mais do que deveria — passos, cochichos, risos abafados. E naquela manhã de segunda-feira, o som que ecoava mais alto era o do desprezo disfarçado.
A nova aluna havia voltado.
Seus cabelos estavam presos num coque desajeitado. As roupas, apesar de limpas, eram simples demais para os padrões do colégio. Não havia maquiagem em seu rosto, nem celular nas mãos, nem qualquer sinal de interesse em interagir. Caminhava como se quisesse desaparecer, como se cada passo fosse um pedido silencioso para que ninguém a notasse.
Mas todos notavam.
— Quem veste esse tipo de blusa em maio? — zombou uma das meninas do terceiro ano, mal disfarçando o riso ao lado do armário.
— Acho que ela não conhece o conceito de condicionador — murmurou outra, lançando um olhar de cima a baixo.
A garota ouviu. Mas não respondeu. Apenas abaixou a cabeça e apertou os livros contra o peito, como se fossem um escudo frágil entre ela e o mundo.
Edward observava tudo do canto oposto do corredor. Braços cruzados, encostado na parede. Parecia distraído, mas não perdia um único gesto.
Ele não sabia o nome dela ainda.
Sabia apenas que havia chegado na semana anterior, transferida de um colégio público do interior. Disseram que era órfã de mãe, que o pai a havia deixado com parentes distantes. Mas ninguém sabia de verdade. E ninguém se importava o suficiente para perguntar.
A escola era cruel com os fracos. E ela parecia fraca.
Mas Edward sabia que havia uma força perigosa naqueles que se acostumaram a apanhar em silêncio.
**
Na hora do almoço, o refeitório parecia uma vitrine de ostentações: mochilas de grife, celulares de última geração, conversas sobre viagens internacionais e festas em iates.
A nova garota se sentou no canto mais afastado. Pegou seu lanche — um pão embrulhado em papel alumínio e uma caixinha de suco de uva — e começou a comer devagar, olhando para o nada.
Uma maçã foi arremessada em sua direção. Bateu de leve na mesa, rolando até parar perto de sua mão.
Risos.
Ela não reagiu.
Mas Edward viu.
Levantou-se da sua mesa. Não disse nada aos colegas. Apenas atravessou o salão em passos calmos, pegou a maçã da mesa dela, olhou para os dois garotos que haviam rido, e simplesmente jogou a fruta de volta. Não com força, mas com precisão. Ela bateu no centro da bandeja de um deles, fazendo a água do copo cair.
Silêncio.
Todos observaram.
— Isso foi um aviso? — perguntou um dos garotos, tentando parecer desafiador.
— Não — respondeu Edward, com frieza. — Foi um lembrete.
Virou-se, andou até a sua mesa novamente… e naquele dia, pela primeira vez, deixou metade da comida no prato.
**
À noite, de volta à fazenda, ele chegou calado. Subiu direto para o quarto, sem jantar, sem trocar palavras com os irmãos.
Mas Luna, como sempre, sentiu.
Ela foi até lá. Bateu de leve na porta e entrou sem esperar resposta. Encontrou Edward sentado na escrivaninha, encarando o tabuleiro de xadrez como se os peões carregassem dilemas maiores que o próprio mundo.
— Não vai comer? — perguntou com suavidade.
— Não estou com fome.
— Aconteceu alguma coisa?
Ele demorou a responder.
— Estão machucando ela na escola mãe — disse, enfim. — Mas não com tapas. Com palavras. Com olhares. Com desprezo.
Luna se aproximou, parando ao lado dele.
— E você quer protegê-la?
Ele olhou para cima. Seus olhos cinzentos estavam escurecidos por uma indignação contida.
— Eu não quero. Eu vou.
— Por quê?
Edward hesitou. Não tinha uma resposta clara. Não a conhecia. Não sabia seu nome. Só sabia que ela não pertencia àquele mundo cruel, e mesmo assim, tentava sobreviver nele com uma dignidade silenciosa.
— Porque ela é invisível pra todo mundo… menos pra mim.
Luna acariciou seus cabelos, emocionada.
— Então veja por ela. Até que ela consiga ver por si mesma.
**
No dia seguinte, ele a viu novamente.
Estava sentada no mesmo lugar da biblioteca, com os mesmos livros velhos e o mesmo silêncio ao redor. Mas quando Edward passou por ela, desta vez, deixou uma frase solta no ar:
— Você tem um nome?
Ela ergueu os olhos, surpresa. Como se ninguém houvesse perguntado isso antes.
— Isadora.
Edward assentiu.
— Prazer, Isadora. Eu sou Edward.
E continuou andando. Não esperava gratidão. Não queria medalhas.
Mas a partir daquele momento, a garota invisível não estava mais sozinha.
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