Lívia
Se alguém me dissesse que eu, Lívia Castro, 27 anos, cabelo loiro, olhos verdes e uma coleção invejável de boletos vencidos, terminaria minha carreira como garçonete num restaurante chinês no bairro da Liberdade em São Paulo… eu teria rido. Rido alto. Tipo gargalhada de vilã de novela, igual a Nina quando fazia a Carminha de gato e sapato.
Mas lá estava eu, entre uma bandeja de guiozas e um pedido gritado em mandarim que, até três meses atrás, eu jurava ser uma invocação demoníaca. Juro por Deus, parecia que eu estava em um mundo paralelo.
Minha vida sempre foi uma montanha-russa desgovernada. Daquelas que não têm cinto de segurança e o carrinho range quando faz curva. Trabalhei em tudo: recepcionista de dentista com bafo de café, assistente de loja de roupa onde as clientes achavam que eu era cabide humano, e até vendedora de plano de celular — o que, sinceramente, deveria ser classificado como tortura psicológica.
Nada pagava o suficiente. Mal dava pra cobrir aluguel, passagem e um miojo gourmet no fim do mês. A cereja do bolo foi ser demitida por “excesso de sinceridade” — só porque disse a um cliente que ninguém precisava de 8 chips pra um único CPF.
Foi aí que encontrei o restaurante do Sr. Wang, escondido entre as ruazinhas cheias de letreiros vermelhos e cheiros que faziam meu estômago cantar o hino da fome. A placa dizia “Tradição do Dragão Dourado”. Pensei que era um nome brega. Ainda acho. Mas o salário era o dobro do último emprego, então decidi engolir o orgulho. E o brega.
Os primeiros dias foram caóticos. Meus colegas falavam entre si num mandarim super acelerado, e eu só entendia "ni hao" e "chá". Minha chefe me gritava algo e eu sorria como uma idiota, esperando que fosse uma instrução simples e não um “o fogão está pegando fogo”. Spoiler: era sobre o fogão.
"Se a vida te der limões espero que faça uma caipirinha bem feita"
Comecei a estudar mandarim pelo celular nos intervalos e à noite. Aplicativo, vídeo, dublagem de K-dramas com legenda errada… valia tudo. Hoje, consigo entender quando me mandam calar a boca ou correr com um pedido. Pequenas vitórias. Tudo pelo salário.
Em casa, a coisa era ainda mais caótica — mas com glitter. Minha mãe, Vera Castro, é uma ex-vedete. Sim, daquelas dos anos 80, cheia de plumas, pernas torneadas e rebolado digno de prêmio. Agora, dançava em eventos e ensaiava coreografias na sala, entre uma panela de arroz queimando e uma ligação do Serasa.
Bem que ela poderia ter escolhido um velho rico para engravidar, pelo menos assim se eu chorasse enxugaria milhas lágrimas com notas de cem.
A gente brigava o tempo todo, mas no fundo éramos melhores amigas. Ela dizia que eu era dramática demais, eu dizia que ela vivia no passado. Ela retrucava com um passo de samba e um “passado melhor que seu futuro, querida”.
Mas mesmo com as piadas e as dificuldades, a gente dava um jeito. Ríamos, dividíamos um pacote de bolacha recheada no jantar e improvisávamos. Sempre improvisando.
Rainha do improviso, ela me disse um dia.
O que eu não sabia, naquela noite em que servia chá de jasmim pela centésima vez, era que minha vida prestes a ser revirada como um yakissoba na wok.
E tudo começou com um cliente muito estranho… e um pingente antigo caído no chão.
Naquela noite, o restaurante estava mais cheio do que rodízio em feriado prolongado. Eu corria com bandejas, desviava das panelas e implorava mentalmente para não tropeçar e jogar sopa quente em ninguém — de novo.
Foi quando ele entrou.
Não era exatamente marcante — ao menos à primeira vista. Usava roupas estranhas, tipo aquelas túnicas de filme antigo, como se tivesse saído de um cosplay histórico. Pensei que fosse alguma pegadinha, ou mais um daqueles turistas excêntricos que vinham tirar fotos com a decoração do restaurante como se fosse ponto turístico.
Ele se sentou na mesa do canto, pediu um chá (em mandarim arcaico que fez até o Sr. Wang franzir a sobrancelha, e ficou lá. Quieto. Observando tudo com um olhar que parecia escanear o lugar. Me deu um calafrio.
Quando fui levar a conta, percebi que ele tinha ido embora — sem que ninguém notasse. Tipo ninja. Só que o mais estranho não foi isso. O estranho foi o objeto que ele deixou cair.
Era um pingente dourado, com o formato de um dragão enrolado em torno de uma pérola esverdeada. Brilhava de um jeito sutil, mas hipnotizante. Quando peguei, senti um leve choque — daqueles que a gente leva quando encosta em alguém de meia no carpete, só que mais… profundo.
“Não mexe nisso, Lívia”, eu disse em voz alta.
Então, claro, mexi. Era mais forte do que eu, sempre tive uma queda por coisas brilhantes, acho que isso puxei a minha mãe de tanto ver glitter e bijuterias baratas.
O pingente parecia antigo, pesado, e estava quente. Não como se tivesse sido deixado no sol. Quente de um jeito interno, pulsante, como se tivesse vida própria. Examinei a pérola. Tinha pequenos símbolos gravados ao redor — nada que eu reconhecesse. Talvez chinês antigo? Ou código alienígena?
Fui levá-lo ao Sr. Wang, mas quando cheguei na cozinha, ele estava gritando com dois cozinheiros sobre o pato queimado e nem me notou. Decidi guardar o pingente no bolso até a confusão passar.
Má ideia.
Assim que o metal tocou minha pele, uma onda de tontura me atingiu. O mundo girou. Literalmente. Tentei me segurar na parede, mas ela não estava mais lá. O chão sumiu. As luzes piscavam como se eu tivesse entrado numa rave sobrenatural. E, do nada, tudo ficou branco.
E aí, escuro.
E aí… silêncio.
Quando abri os olhos, estava caída no chão. Num chão de pedra, frio, sujo e cheirando a incenso queimado.
E à minha frente, um homem vestindo armadura, apontando uma espada pra minha cara, gritando algo em mandarim que, curiosamente, meu cérebro entendeu como:
“Quem é você, demônio de cabelos dourados?”
Eu só consegui responder uma coisa:
— Cara… eu nem comecei o turno ainda.
Lívia
A espada estava a dois dedos do meu nariz.
Literalmente.
O homem à minha frente era alto, musculoso, e usava uma armadura dourada que parecia pesar mais do que minha dignidade no dia de boleto vencido. Seu cabelo escuro estava preso num coque elegante com um acessório de jade. O rosto? Escultural. Sério. Como se tivesse saído de um drama chinês — só que armado e nada afim de selfies.
Ele gritou outra coisa, dessa vez com mais raiva, e eu entendi:
— Quem é você? Espiã? Feiticeira? De onde veio?
Meu cérebro estava lutando entre responder e desmaiar. Acabei escolhendo a terceira opção: sarcasmo.
— Moço... se você quer saber meu signo, a gente pode começar com um “ni hao”, tá?
Ele estreitou os olhos. Claramente não achou graça. Ótimo começo.
Enquanto eu tentava ficar de pé, percebi que estava num templo antigo. Paredes de pedra, velas acesas, fumaça de incenso no ar. Em volta, monges assustados e soldados armados apontando lanças. Eu estava descalça, com meu uniforme de garçonete amarrotado, e com um dragão mágico no bolso.
Se isso não era um surto psicótico, era o episódio piloto da minha ruína.
— Meu nome é Lívia — disse, levantando as mãos. — LÍ-VI-A. Humana. Brasileira. Garçonete. Perdida. Não sou ameaça. A não ser pra fritura em óleo velho.
O general baixou a espada meio centímetro. Os soldados recuaram um passo. Alguém cochichou algo sobre “cabelos de ouro” e “mulher celestial”. Ótimo. De garçonete a deusa mística em dez minutos. Pior que Uber.
Ele me estudava. Seus olhos tinham aquele brilho frio de quem está calculando todas as formas possíveis de te derrubar — com ou sem espada.
— General Liang Wei — ele se apresentou, em um mandarim que eu magicamente entendia, graças ao pingente queimando no meu bolso. — Você não pertence a este tempo.
— E que tempo seria esse?— perguntei já temendo pela resposta.
— Estamos no ano de 630, na Dinastia Tang..
Misericórdia senhor, será que eu nunca vou ver minha mãezinha de novo?!
— Cara, isso só pode ser uma piada de muito mal gosto— murmurei, olhando meu avental sujo
Um silêncio pesado caiu. Os monges murmuravam orações. Eu juro que ouvi um deles dizer “ela veio do céu” e outro “ou do inferno”.
Liang Wei se aproximou devagar, pegou o pingente que agora brilhava como uma mini lua, e franziu o cenho.
— Isso é arte do céu… ou de demônios. E você, mulher de língua solta, acabou de se meter no meio de uma guerra.
Conte-me uma novidade Sherlock.
Ótimo se eu não achava que podia piorar.
Ele virou-se, acenou para os soldados e deu uma ordem que entendi perfeitamente:
— Levem-na ao palácio. O imperador vai decidir o que fazer com ela.
E foi assim que a minha aventura começou. Sem passaporte, sem chinelo, sem Wi-Fi. Espero que pelo menos esses não sejam iguais aos europeus na época medieval, detestaria ficar sentido fedor de quem tomava banho cada 6 meses.
Só eu, uma roupa feia, um general com cara de vilão sexy, e um império inteiro prestes a virar de cabeça para baixo.
Liang Wei
Eu já vi muitos horrores em campanha.
Homens despedaçados por lâminas, aldeias devastadas por bandidos, generais chorando feito crianças diante da derrota. Já vi o impossível em campo de batalha: lendas se tornarem realidade, presságios se cumprirem. Traições a torto e a direito.
Mas nada... absolutamente nada... me preparou para aquela mulher de cabelos dourados e língua afiada que surgiu no altar sagrado do Templo do Dragão.
No início, achei que fosse uma bruxa.
Ou um truque. Um disfarce. Um espião travestido — embora eu jamais tenha visto um espião com seios tão... evidentes e tão linda como uma deusa.
em meus 32 anos de vida nunca vi uma beleza tão exótica e diferente quanto a dela.
Ela falava estranho. Seus gestos eram desajeitados, sua roupa ridícula. Ainda assim, havia algo nela que me incomodava mais do que o medo de magia: ela não tinha medo algum.
Nem da minha espada. Nem dos soldados. Nem do templo onde ela havia surgido como um trovão fora de hora. E isso me instigou a saber mais sobre ela.
Seus olhos — verdes como jade lapidada — me encararam com uma mistura de deboche e curiosidade. Como se eu fosse o intruso. Como se ela estivesse entediada com a possibilidade de morrer.
Que mulher tola.
— Moço... se você quer saber meu signo...
Signo? O que diabos é um “signo”?
A única explicação plausível era que ela estivesse louca.
Mas o pingente... aquilo era real.
Reconheci os símbolos. Símbolos que vi uma vez num manuscrito selado da biblioteca imperial — um texto proibido que falava de artefatos dos “Filhos do Céu”, seres vindos de além do tempo, portadores de caos... e mudanças.
Ela caiu diante de mim como uma profecia viva.
E isso me deixou furioso. Não gostava quando as coisas saíam do meu controle assim, não entender o que aquilo significa tava me deixando irritado.
Mas por causa das perguntas que ela trazia. Quem a enviou? A quem serve? É uma jogada dos ministros que querem ver o império ruir? Ou é o presságio da queda que os astrólogos tanto murmuram?
Eu deveria matá-la.
Mas hesitei. E eu nunca hesitava quando via um potencial inimigo em minha frente.
Algo em mim — instinto, talvez — me fez querer ouvir mais. Observar. Entender.
Ela não se comportava como espiã, nem como assassina. Ela falava demais. Ria na hora errada. Tinha uma forma estranha de olhar tudo como se fosse novo… e encantador. Até os monges, supersticiosos e temerosos, estavam divididos entre chamá-la de “benção” ou “maldição”.
Mas eu sabia o que fazer.
Levá-la ao imperador, mesmo quando não confiava totalmente nele.
Ele saberia se ela era um sinal dos deuses… ou apenas um erro cósmico. Na pior das hipóteses ele faria ela a sua concubina ou escrava.
E se ela fosse ameaça, seria executada.
Se fosse útil… seria domada.
Particularmente, eu não estar na pele dela naquele momento.
O que eu não esperava era o que aquela mulher faria com o coração da corte.
E, muito menos, com o meu.
Para mais, baixe o APP de MangaToon!