Era assim tão complicado aquele tipo perceber que tinha de me vir buscar para eu não chegar atrasado a casa daquela velha irritante?! Olhei para o meu rolex caríssimo. Os minutos estavam a passar muito depressa e em breve ela ia ligar para saber o motivo da minha demora. O que é que eu lhe ia dizer? " Olha amor, desculpa , mas o meu irmão está a comer alguma tipa e por causa disso está super atrasado..."
Sim, ela ia gostar imenso que eu lhe dissesse isso.
Voltei a olhar para o fundo da rua e nem sinal do Neo. Esfreguei as têmporas irritado. Era de dia, os meus vizinhos estavam a sair de casa para o trabalho e mal me viam falavam para mim como se eu quisesse saber da existência deles.
Era demasiado cansativo ter de mostrar uma falsa simpatia que eu não conseguia ter por eles. Normalmente eu só chegava a casa de madrugada. Durante o dia eu só saía se alguma das minhas clientes me pedisse para as acompanhar a algum lugar e neste caso era o que tinha acontecido. Letty, uma velha da alta sociedade, viúva e sem filhos que adorava que eu a bajulasse precisava que eu fosse acompanhá-la a um evento de caridade, logo eu era o ato de caridade dela nesse dia...
Uma van preta de vidros esfumados parou à minha frente, olhei o meu reflexo nos vidros e sorri ao ver o quão bonito eu estava.
O meu cabelo castanho claro tinha sido esticado, e apesar de não cortar o cabelo à dois meses ele não estava ainda muito comprido. Os meus olhos castanhos cor de mel faziam que as minhas clientes derretessem constantemente e me dessem tudo o que llhes pedia e a minha boca carnuda...bem, posso dizer que fazia maravilhas por elas...
- Esse fato é novo.- disse o meu irmão mal baixou a janela do lado do pendura para me mandar entrar na carrinha.
- Não posso vestir sempre os mesmos trapinhos...
- Depois dizes que nunca mais consegues pagar a tua dívida.
- Pára com isso e vê lá se te mexes. Estavas a fazer o quê?
- Tive de ir ter com o Yuri. - olhei para ele alarmado. Yuri era o assistente do chefe da máfia, ele era quem coordenava parte do negócio, geria a parte dos empréstimos de capital e eu só falava com ele se me atrasasse no pagamento das minhas dívidas. Óbvio que quando ele falava comigo a conversa já não era lá muito amigável , mas no entanto , com o Neo ele até se dava bem.
- Que se passou ? Já paguei tudo este mês!
- Sabes que nem tudo gira à tua volta, certo?
- Sei, mas devia...- ele bufou, mas acabou por se rir. -Mas diz lá o que se passou...
- Nada demais, acho que o chefe vai aposentar-se em breve, e quem vai ficar à frente daquilo tudo é o filho dele.
- Nem sabia que ele tinha um filho , sempre pensei que ele ia deixar tudo ao Yuri.
- O Yuri não quer ficar com aquilo, ele prefere ser a sombra do novo chefe.
- Conheces o tipo?
- Já o vi algumas vezes, ele parece ser como o pai , mas não quero testar a paciência dele, por isso mantém-te na linha...
- Vem-me buscar quando te ligar, quero ver se lhe saco mais algum dinheiro extra hoje.- disse-lhe mal chegámos à porta do hotel onde ia ser realizado o cocktail do evento de beneficência.
- Vê lá o que fazes...- era um aviso que ele me estava a dar, mas eu sabia que ele na realidade apenas se preocupava comigo.
Éramos órfãos , não tínhamos sequer conhecido os nossos pais e por causa disso tínhamos crescido por nossa conta e risco.
Vivermos num orfanato sobrelotado não tinha sido o ideal, mas foi isso que nos ajudou a conseguirmos lidar com a sociedade de hoje em dia. O dinheiro era o que comandava tudo e tínhamos de saber como o arranjar.
Neo trabalhava que nem um escravo a fazer entregas de comida durante o dia e às vezes à noite limpava os vidros no hospital perto da nossa casa, mas eu, bem eu tinha uma arma poderosa e usava-a sempre que podia: descobri que era bonito, que as mulheres e os homens pagavam bem por algumas horas de prazer ou até em ter-me como acompanhante deles em eventos, eu era um troféu que gostavam de exibir. Por isso, quando conheci o chefe da máfia e ele me ofereceu dinheiro para que eu conseguisse dar uma melhor vida ao meu irmão eu aceitei. Estava farto de ver o Neo chegar tarde a casa, de o ver contar o dinheiro na esperança de conseguirmos ter uma casa melhor. Aceitei na hora a proposta dele, não pensei sequer em ler as letras pequenas no contrato e quando me atrasei no primeiro pagamento vi a minha vida mudar num ápice. Os juros eram altos, demasiado altos e eu mesmo que pagasse a prestação em atraso tinha agora de pagar os juros que eram quase a metade do valor do empréstimo! Implorei que me deixassem voltar ao meu acordo inicial e foi nessa altura que me levaram a conhecer o Yuri.
Ele acabou por me perdoar o atraso , era a primeira vez, mas em troca tive de assinar um novo contrato no qual dei a carrinha que tinha oferecido ao meu irmão como prenda de aniversário como garantia. Eu estava mais do que lixado, se eu não pagasse o valor sempre a horas o Neo ia ficar sem a carrinha e eu sabia que ele amava aquela carrinha, por isso percebi que o melhor que eu tinha a fazer era juntar o máximo que eu pudesse para pagar a minha dívida de uma vez e livrar-me daqueles tipos.
Letty veio buscar-me à porta do hotel, vinha com o andarilho dela, mostrou um sorriso enorme mal me viu. O rapaz que estava à entrada do hotel olhou para mim e para ela com uma certa repugnância no olhar.
- Ganho mais que tu e nem tenho de baixar a cabeça a ninguém...- respondi mal passei por ele, Letty riu, uma gargalhada bem alta e deixou o andarilho ao pé dele.
- A minha bengala favorita chegou, não preciso disto por agora, mas quando ele for embora traga-mo de volta se fizer favor...- o homem acentiu com a cabeça e ela entrelaçou um braço dela no meu e sorriu para mim. Dei duas palmadinhas na mão dela.
- Quantas cobras nos esperam?
- Sempre tão perspicaz o meu menino lindo!- ela disse num sussurro orgulhosa. Entrámos numa sala onde estavam várias peruas da alta sociedade, todas ficaram pasmas quando me viram de braço dado com ela.
- Sou o neto ou o amigo hoje?- perguntei. Normalmente tínhamos tempo de combinar as nossas histórias, mas como eu tinha chegado atrasado as coisas tinham-se complicado um pouco. Ela olhou para as outras mulheres , avaliou-as e depois disse-me baixo.
- Hoje somos amigos. Apenas isso. E não te ponhas a seduzir mais alguma mulher , estou a pagar este tempo contigo.
- Os seus desejos são ordens...- respondi sorridente para ela.
Fui apresentado como Luigi, ela adorava italianos e teve a triste ideia de dizer que embora estivéssemos nos Estados Unidos que eu era de ascendência italiana. As amigas dela olhavam para mim na esperança de me ouvir falar italiano, mas eu tinha de dizer educadamente que nunca tinha estudado a língua do meu país, desculpas inventadas à última da hora, foi quando vi Roger, um dos meus "colegas " de profissão com uma das outras mulheres. Ele viu-me e ergueu a taça de chanpanhe, fiz o mesmo. Letty olhou para nós receosa.
- Conheces ele?
- Sim, também faz o mesmo que eu, mas não se rale, ele tem tanto a perder como eu, ele não vai abrir a boca para dizer que sou apenas pago para o dia de hoje como ele...
- É capaz de não ser só para hoje Shay...
- Como assim?- perguntei inocentemente quando eu já sabia a resposta.
- Na semana que vem tenho um evento e quero que vás comigo como meu acompanhante. É uma espécie de jantar de despedida e festa de boas vindas, tudo no mesmo.
- Terei de ver a minha agenda...- respondi, ela olhou para mim e depois soltou uma gargalhada que deixou as outras mulheres curiosas sobre o que eu lhe teria dito para ela rir assim.
- Se tiveres alguém nesse dia desmarca, pago o dobro. Preciso que me acompanhes, aquela gente não são de confiança, não me sinto bem no meio deles...!
- Letty, passa-se algo? Parece-me receosa...Se não quer ir a esse evento não vá...- apeteceu-me bater com a mão na boca, estava ali quase a dar a uma cliente um conselho idiota que implicava não me chamar para trabalhar!
Sentei-me com ela numa mesa onde estavam algumas pessoas reunidas, era a nossa mesa, em breve iam começar a servir os cocktails e reparei que a minha barriga estava já a dar sinal de ter fome.
- És muito novo para entender isto.- ela disse, passou a mão na minha cara e tirou os óculos de sol que ela costumava usar só para eu ver os olhos dela azuis límpidos como se fosse o azul das águas de alguma praia paradisíaca. - Eu preciso de ir. Se não for estarei a mostrar fraqueza.
Um conjunto de garçons entraram na sala com bandejas, uns traziam mais taças de champanhe e outros traziam canapés. Mal pararam junto a nós tirei alguns para mim e para ela.
- Então okay, vou consigo. Mas tenho de saber no que me vou meter não?- ela encolheu os ombros e tirou da mala dela da gucci uma caixinha branca transparente que tinha vários comprimidos. Ela olhou para os comprimidos e depois escolheu dois e tomou-os com uma taça de champanhe.
- Não é nada demais, apenas são pessoas com quem tive no passado os meus problemas, mas agora estamos bem, só que todo o cuidado é pouco, conheço a família e sei que são pessoas que têm negócios duvidosos, mas não vamos meter tudo no mesmo saco, certo?
Endireitei-me na cadeira, a curiosidade estava a matar-me e eu precisava de saber onde é que a ia acompanhar. Ela pareceu ler a minha expressão.
- Vamos ao jantar de despedida do chefe June. Contente?
Gaguejei naquele momento.
- O da máfia...?
- Ainda bem que já ouviste falar nele. Vamos ao jantar dele, o Yuri o assistente dele mandou-me um convite e eu não quero de todo rejeitar esse convite.
- O filho dele vai ficar no lugar dele...ouvi dizer isso...
- Sim. Confesso que não conheço o Scott bem, mas penso que pelo que já me disseram ele é tão mau como o pai, por isso vai ficar tudo na mesma...
- A Letty não gosta muito deles, pois não?- ela sorriu para mim, era um sorriso triste que me fez ficar com o meu coração de manteiga apertado.
- O pai dele foi o responsável pela morte da minha família, por isso, não , não gosto deles.
Saí do evento com a minha conta bancária mais recheada e com um sentimento estranho. Algo me dizia que o melhor que eu tinha a fazer era arranjar uma desculpa e não ir ao jantar do chefe June. Mas depois lembrava-me da conversa que tinha tido com a minha velha e uma coisa chamada consciência entrava em acção. Eu não lhe podia falhar.
- Cliente fixa?- perguntou-me o Sebastian quando se aproximou de mim. Estávamos à porta do hotel à espera das nossas boleias.
- Sim. E a tua?
- Também , o marido deve estar a comer alguma loira oxigenada e ela vem sempre sozinha a este tipo de coisas, por isso nessas alturas ela liga e eu venho fazer-lhe companhia, por acaso até paga bem...
Houve um momento de silêncio. Falar da nossa profissão não era propriamente o meu objetivo de vida. Olhei para o meu telemóvel e vi uma mensagem do Neo a dizer que estava prestes a chegar. O silêncio era constrangedor, as convidadas do evento estavam todas a sair e olhavam-nos como se fôssemos uma peça de carne.
- Mulheres desesperadas...- Sebastian disse muito baixo. Olhei para ele confuso. - Olham para nós como se fôssemos uma tábua de salvação das vidas monótonas que levam...
- Algumas só precisam mesmo de ter companhia...- tentei justificar, mas ele atirou a cabeça para trás e riu.
- São poucas...hoje em dia somos o troféu, o amante que elas bancam para depois esfregarem um dia no divórcio ao marido na cara que não era só ele que traía!
- Vê-se que não gostas do que fazes...- comentei. O olhar dele ficou fixo nas pedras da calçada durante instantes.
- O que tenho para gostar? Somos usados, iludem-nos com promessas que nos vão tirar desta vida, dizem que vão deixar tudo por nós , mas na realidade ao primeiro problema descartam-nos...nunca comentas o mesmo erro que eu e penses que vai haver alguma ou algum que te leve a sério ,porque não vai acontecer... nunca te apaixones...Não vale a pena...
Era esse o problema afinal.Olhei para ele sem saber o que lhe dizer, ouvi uma buzina e vi a van do Neo estacionar quase em cima do passeio.
- Queres boleia?- perguntei-lhe, comecei a ter pena dele.
- Não, o meu próximo cliente vem buscar-me. Podes ir à tua vida...- despedi-me dele e entrei na van, Neo nem se lembrou de baixar o vidro do lado do pendura como costumava fazer. Entrei na van e vi o Sebastian a olhar de relance para nós.
- Conheces ele?- Neo perguntou enquanto olhava pelo espelho para ver quando podia seguir a marcha, Sebastian tinha agora acabado de entrar no carro desportivo de um tipo que eu conhecia, já tinha sido meu cliente.
- É o Sebastian, ele também é gigôlo como eu. Conheces ele?- Neo abanou a cabeça e seguiu em silêncio o resto do caminho.
- Quando é que vais deixar esta vida?- ele perguntou quando chegámos a casa. Eu já sabia como ia terminar aquela conversa, mas durante alguns segundos fiquei calado na esperança que ele mudasse de assunto, mas tal não aconteceu.
- Assim que pagar a minha dívida. Já te tinha dito.
- Podes ter um trabalho normal como eu.
- Tão normal que mal ganhas para pagar as contas,tiveste de ter três empregos ao mesmo tempo para conseguires aguentar as pontas e mesmo assim ficámos sem nada.- aquilo saiu da minha boca sem intenção de o magoar, mas o olhar que ele me lançou só mostrou que eu tinha acabado de atingir um ponto sensível.
- Nunca te pedi ajuda!
Fechei as mãos e os olhos, respirei fundo, aquela conversa estava a levar um rumo que eu não estava a gostar.
- O que se passou para estares assim?!
- Nada!- ele quase me rosnou. Não olhava sequer para mim. Puxei ele por um braço e fiz ele olhar para mim.
- Alguém te chateou por minha causa? Fala comigo!!!- sacudi ele, ele olhou para mim com puro ódio no olhar.
- Sabes o que é trabalhar num lugar onde os tipos adoram falar que tenho um irmão que come velhas por dinheiro?! Até quando tenho de aguentar isso?!
Larguei ele. Sim, só podia ser isso e eu tinha sido um idiota em tentar que ele me dissesse o que se passava quando parte de mim já adivinhava o que se passava.
- Mais uns meses, prometo que só mais uns meses, antes do final do ano estou livre disto. Prometo.
Meti as minhas mãos nos ombros dele e encostei a minha testa à dele, ele fechou os olhos e respirou fundo, a respiração era trémula, ele estava a tentar segurar as lágrimas.
- Espero que sim, preciso de ter uma vida normal...- ele abraçou-me finalmente, era um abraço apertado que me conseguiu tranquilizar naquele momento, mas o que ele não sabia era que eu lhe tinha mentido: eu não tinha a mais pequena ideia de quando eu ia largar o meu " trabalho".
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