Capítulo 1 — O Último Dia de Nio
O porto de Itarandá estava cinza naquela tarde. O céu coberto de nuvens pesadas parecia refletir o cansaço de Nio. Com 55 anos, o corpo já não respondia como antes. Cada saco levantado, cada contêiner conferido, era uma batalha entre a força de vontade e a dor constante que se espalhava pelo peito. O câncer já havia sido diagnosticado há quase um ano, e ele se recusava a parar. "Se eu cair, quem cuida do Augusto?", pensava sempre.
Augusto, seu filho , era um adolescente de 14 anos que não se sentia confortável com o próprio corpo. Há alguns meses, dissera que queria ser chamada de Eliza. Nio, após um momento de silêncio, respondeu apenas: “Se é isso que te faz bem, então é isso que importa.” Desde então, passou a tratá-la como filha. Era difícil às vezes, não pelas mudanças, mas pelo mundo lá fora. A cidade era cruel com quem era diferente. Mas dentro de casa, Eliza era apenas... filha.
Naquele fim de expediente, Nio andava devagar pela rua de paralelepípedos molhados pela garoa, quando ouviu um grito. O coração gelou. Reconheceu a voz.
— Parem! Por favor!
Correu, ignorando a dor. Dobrou a esquina e viu: quatro adolescentes cercando Eliza, chutando-a, chamando-a de aberração. Um deles segurava sua mochila, outro puxava seu cabelo.
— EI! LARGUEM ELA AGORA! — gritou com a voz rouca.
Eles se viraram. Um riu.
— É o velho do porto... vai fazer o quê?
Nio se jogou em cima do mais próximo, conseguindo derrubá-lo. Conseguiu dar dois socos antes de sentir a dor. Uma dor diferente. Aguda. Profunda.
Seu corpo fraquejou. As pernas dobraram. Caiu de lado, ofegando.
— Pai...? — Eliza tentou se levantar, rastejando até ele.
Os agressores olharam para o corpo caído, sem reação.
— Ele morreu? — perguntou um deles, pálido.
— Estamos ferrados. Isso é assassinato, mano! — disse o outro, com voz trêmula.
— Então... — o terceiro começou, olhando para Eliza — ...ela não pode contar.
Eles a agarraram novamente. Nio, agora um vulto sem corpo, gritava. Tentava segurá-los, empurrá-los, mas seus braços atravessavam tudo.
— PAREM! ELA É SÓ UMA CRIANÇA! — gritou.
— Pai... — Eliza chorava, os olhos marejados encarando o vazio.
— É o pai dela! A gente tá morto!
Um deles, em desespero, puxou uma faca. Houve um golpe. Silêncio. O sangue se espalhou na calçada.
E então... escuridão.
Nio gritou. O mundo girava. Quando abriu os olhos, não estava mais no beco. Estava diante de quatro figuras colossais. Uma irradiava luz como o sol, outra tinha olhos como buracos de guerra, uma terceira flutuava com correntes negras, e a última segurava uma esfera brilhante como uma estrela.
— Onde estou...? Onde está minha filha?!
— Você está entre mundos, Nio, disse a Deusa da Criação. — Seu coração puro nos chamou. Precisamos de alguém como você.
— Não quero isso! Quero a minha filha! Me levem até ela!
O Deus do Submundo assentiu com pesar. Com um gesto, Eliza surgiu, em espírito, ao lado do pai. Eles se abraçaram.
— Pai...
— Você está bem, minha menina?
— Tô com medo.
Os deuses olharam entre si.
— Há um mundo que precisa de vocês. Um mundo cruel, como o nosso. Mas com oportunidade de recomeço. Eliza será como deseja. E você, Nio, poderá protegê-la.
— E eu posso ser... mulher? — perguntou Eliza, olhando com firmeza.
— Sim. E seu nome será Eliza. Seu poder será a manipulação da água.
— E você, Nio, disse o Deus da Guerra, sorrindo — terá o dom de se adaptar. Qualquer magia, qualquer estilo de luta... o que precisar, poderá aprender.
Luz os envolveu. O chão desapareceu.
— Agora vão. Um novo destino os aguarda.
Capítulo 2 — Um Novo Corpo, Um Novo Mundo
A luz que os envolveu desapareceu tão rápido quanto surgiu. Nio sentiu seus pés tocarem o chão de novo — mas um chão diferente. Era macio, coberto por folhas secas e terra úmida. O som de pássaros estranhos ecoava pelas árvores altas e retorcidas ao redor. Havia magia no ar — ele podia sentir, mesmo sem entender como.
— Pai...?
A voz doce e familiar o chamou. Ele se virou e viu uma jovem se aproximando. Por um momento, não a reconheceu.
— Você... Eliza?
— Sou eu, pai... — ela parou, com um olhar curioso. — Mas... é você mesmo?
— Sim, sou eu. Por quê essa pergunta...?
Ela sorriu e deu um passo à frente.
— Você tá jovem! Não aparenta mais que 20 anos... e seu cabelo... tá vermelho! E tá... lindo.
Nio levou a mão ao próprio rosto e depois ao cabelo. Era verdade. A pele antes marcada por rugas e manchas agora estava lisa. A dor constante que o acompanhava havia sumido. E seu cabelo, que fora grisalho e ralo, agora era espesso e caía até os ombros, vermelho como fogo.
— O que... como isso é possível...?
— Eu que pergunto! — Eliza deu uma risadinha. — E eu? Como eu tô?
Ele a observou com carinho. A menina diante dele parecia ter entre 14 e 16 anos. Era bela, com olhos grandes e intensos, e longos cabelos brancos que dançavam com o vento. Seu rosto lembrava muito uma cantora famosa que ela adorava — Nio esquecera o nome, mas a semelhança era gritante.
— Você tá linda. Parece aquela cantora que você amava... uma jovem de cabelos brancos, lembra?
— Aaaaah! Eu sabia que ia ficar incrível!
Eles riram juntos por um instante, aliviados por estarem vivos. Ou pelo menos... algo próximo disso.
— Onde estamos? — Nio perguntou, olhando ao redor.
— Sem ideia. Mas isso tudo... parece um RPG. E eu adoro RPG! — disse Eliza empolgada. — Acho que é hora de tentar entender nossa magia. Vamos explorar!
Seguiram por entre as árvores até encontrarem um riacho cristalino, com água tão limpa que podiam ver o fundo. Eliza imediatamente se aproximou da margem e começou a concentrar-se.
Enquanto ela treinava, Nio se afastou e andou pelo mato. Pegou um galho firme, improvisou uma linha com fibras das plantas ao redor, encontrou uma raiz resistente para fazer o anzol e, em poucos minutos, já pescava. Também reuniu folhas largas, gravetos e cipós para montar uma pequena tenda e uma fogueira. Quando o sol começou a sumir, ele já havia limpado dois peixes e os colocava sobre as brasas.
Eliza, impressionada, se aproximou.
— Pai... como você fez tudo isso?
Ele olhou para as mãos sujas de terra, pensativo.
— Não sei. Foi como se... eu tivesse possuído. Era como se eu soubesse exatamente o que fazer, sem pensar.
— Isso é incrível. Talvez esse seja o seu poder... adaptação total, lembra?
— É... talvez seja isso.
Sentaram-se lado a lado, comendo o peixe assado enquanto a noite caía. A floresta ganhava sons misteriosos, mas ali, junto à fogueira, sentiam-se seguros.
— Acho que minha magia é água mesmo. Eu consegui formar bolhas e até criar um pequeno jato. Se fosse classificada por ranks... diria que tá no nível Hank C no máximo.
— E isso é ruim?
— Não! C é bom! Só tô curiosa pra saber até onde posso chegar...
Conversaram até tarde, sonhando com possibilidades. Falaram sobre encontrar uma vila, descobrir mais sobre aquele mundo e, talvez, entender por que os deuses os trouxeram ali.
Quando Eliza finalmente adormeceu, encolhida na pequena tenda, Nio ficou de vigília. Observava a floresta escura, atento a cada som. Ainda era um pai. E proteger sua filha era, acima de tudo, sua missão.
O vento soprou suave, como se dissesse: o pior passou... por enquanto.
Continua...
Capítulo 3 — Primeiras Moedas, Primeiros Passos
O sol ainda estava baixo quando Nio e Eliza seguiram viagem. Caminharam por cerca de uma hora, seguindo a trilha natural deixada por animais entre as árvores. A floresta começava a clarear à frente, e logo avistaram os primeiros sinais de civilização: cercas de madeira, campos arados e, mais adiante, casas simples com telhados de palha. Um vilarejo humano.
— Pai... Será que vão nos aceitar aqui? — perguntou Eliza, ajeitando os cabelos brancos que brilhavam sob o sol.
— Vamos descobrir agora. Fique perto.
Ao se aproximarem, um guarda com armadura de couro, lança na mão e expressão desconfiada os parou.
— Forasteiros, hein? De onde vêm?
— De longe... estamos apenas procurando abrigo e trabalho. Tenho três peixes grandes comigo, não temos moedas. Pode nos ajudar?
O guarda, após uma breve análise dos dois, assentiu com a cabeça e apontou com o polegar por sobre o ombro.
— O bar do Velho Brann costuma comprar peixe pra servir. É ali, perto da praça. Talvez ele tenha algum trabalho também. Mas não esperem muito.
O tal “bar” era pequeno, de madeira escura, com poucas mesas e cheiro forte de temperos. Nada parecido com um restaurante de cidade grande, mas aconchegante. Brann, um homem gordo, careca e de bigode grosso, os recebeu com desconfiança.
— Três peixes desses... 20 quilos cada, hein? Dou duas moedas de bronze.
Nio nem discutiu. Não sabia o valor da moeda, nem se o peixe valia mais.
— Fechado. E... por acaso está precisando de ajuda? Trabalho mesmo. Posso fazer qualquer coisa.
Brann coçou o queixo.
— Sabe cozinhar?
— Sim. E minha filha pode ajudar servindo, se precisar.
— Tá feito então. Vamos ver o que sabem fazer.
Naquela tarde, Nio foi para os fundos, onde preparou peixe grelhado com ervas locais que nem sabia o nome — mas seus instintos guiavam suas mãos. Enquanto isso, Eliza circulava entre as mesas com sorrisos gentis, servindo pratos e limpando canecas de barro com uma graça que encantou os fregueses.
Ao final do dia, Brann entregou a Nio uma única moeda de prata.
— Não é muito, mas é justo. Vocês trabalharam bem. Agora vão descansar.
— Conhece um lugar onde possamos dormir? Com comida, se possível.
Brann indicou uma pequena hospedaria perto dali. O dono cobrou duas moedas de bronze pela diária com refeição — justo, segundo ele.
Naquela noite, enquanto Eliza dormia tranquila em um colchão de palha, Nio ficou sentado perto da janela, pensativo. O bar era bom, mas não seria o suficiente. Precisavam entender aquele mundo.
Na manhã seguinte, ao perguntar à dona da hospedaria sobre livros, ela suspirou e pegou um velho volume empoeirado.
— Não temos biblioteca, só esse aqui. É um livro escolar antigo. Pode ler, se quiser.
Ele mergulhou nas páginas com avidez. As palavras eram estranhas, mas fáceis de entender, como se algo dentro dele o ajudasse. Descobriu que o sistema monetário era assim:
10 moedas de cobre \= 1 bronze
10 bronzes \= 1 prata
10 pratas \= 1 ouro
10 ouros \= 1 Trax
E acima de todas... a moeda sagrada: 1 Elyndra.
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