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O Homem que Desfez Minha Cicatrizes

O Primeiro Olhar

 O Primeiro Olhar

Bianca não costumava sair sozinha depois da aula. Mas naquele dia, a briga em casa tinha sido tão pesada que ela preferiu andar a esmo pelas ruas do centro até o fim da tarde. Estava com a mochila pesada nas costas e o uniforme amassado, os olhos ainda vermelhos por ter chorado no banheiro do colégio.

Foi quando entrou na lanchonete da esquina para tomar uma água e descansar. E viu ele.

Guilherme.

Camiseta preta, tatuagem discreta no antebraço, barba malfeita. Estava atrás do balcão, limpando um copo com um pano que parecia mais decorativo que útil. Mas quando os olhos dele encontraram os dela, ele sorriu — não um sorriso qualquer, mas aquele tipo de sorriso que parece dizer “eu te enxerguei”.

— Vai querer alguma coisa? — perguntou, com um sotaque leve, voz rouca.

Bianca hesitou.

— Uma água... com gás.

Ele virou de costas para pegar a garrafa, e ela teve tempo de reparar no porte físico: alto, ombros largos, braços definidos, cabelo castanho escuro preso num coque baixo. Parecia mais velho, talvez uns vinte e poucos anos. Um homem, diferente dos meninos da escola que só falavam de jogo e riam alto demais.

— Primeira vez por aqui? — ele perguntou ao entregar a garrafinha, olhando direto nos olhos dela.

Ela assentiu.

— Estudo ali perto… só entrei pra… sei lá.

— Tá tudo bem? — perguntou sem rodeios.

Bianca não sabia se era o jeito direto dele ou o fato de que estava exausta emocionalmente, mas acabou dizendo: — Briguei com minha mãe. De novo.

Guilherme não fez cara de julgamento, nem lançou uma frase clichê. Só olhou para ela com atenção.

— Eu também. Quando era mais novo, quase morei na rua por causa disso. Às vezes a gente precisa de um tempo da casa pra não enlouquecer.

Depois piscou e completou:

— Mas é só um tempo. Não se perde as raízes.

Ela sorriu pela primeira vez naquele dia.

A conversa não durou muito, mas no final, ele pegou uma embalagem de bala e rabiscou um número com caneta azul.

— Qualquer coisa, se quiser conversar… — disse, entregando o papel.

— Tá.

Ela guardou no bolso, sem prometer nada. Mas naquela noite, antes de dormir, leu o número várias vezes. E uma hora depois, mandou:

> “Sou a garota da água com gás.”

A resposta veio menos de um minuto depois.

> “A garota de olhos tristes, né? Tava esperando.”

E assim começou.

Nos dias seguintes, Bianca inventava desculpas pra passar perto da lanchonete. Às vezes ele estava lá, às vezes não. Quando estava, ele sempre oferecia um café ou uma fatia de torta como se fosse só um gesto gentil, mas o jeito como olhava pra ela dizia que era mais.

Eles começaram a trocar mensagens o tempo todo. Guilherme era engraçado, falava de filmes antigos, sabia escutar. Nunca forçava assunto, mas também nunca deixava que ela sentisse que estava sozinha. Ele dizia coisas como “você é muito mais forte do que pensa” ou “ninguém te ensinou a ser amada do jeito certo, mas eu posso mostrar”.

Com 14 anos, Bianca se sentia adulta demais para os colegas da escola e ingênua demais para o mundo. Guilherme parecia ser o meio-termo perfeito. Ele tinha 22, trabalhava, era independente, e mesmo assim queria saber como tinha sido o dia dela na aula de biologia.

Um dia, ele a esperou na saída da escola. Estava encostado na moto, com capacete na mão e um sorriso torto no rosto.

— Posso te levar pra casa?

Ela hesitou.

— Minha mãe não ia gostar...

— Mas você ia?

Ela subiu na garupa.

O primeiro beijo foi numa pracinha quase deserta, enquanto o céu ficava laranja no fim da tarde. Ele a olhou como se pedisse permissão. Bianca sentiu o coração bater tão forte que teve medo dele ouvir.

Foi um beijo lento, cuidadoso, e ao mesmo tempo cheio de fome. Ela nunca tinha beijado alguém daquele jeito — como se o mundo tivesse parado só pra isso.

— Você é uma menina incrível, Bianca — ele disse depois. — Mas eu vou te tratar como mulher. Porque é assim que eu te vejo.

Ela não respondeu. Só encostou a cabeça no ombro dele e fechou os olhos.

Sentia que, pela primeira vez, alguém estava lhe oferecendo abrigo.

Ela só não sabia que, com o tempo, aquele mesmo abrigo viraria uma prisão.

Ele Me Chamava de Meu Mundo

 Ele Me Chamava de Meu Mundo

Bianca se lembrava do primeiro "eu te amo" como se tivesse sido ontem. Guilherme não disse durante um beijo, nem num momento de impulso. Foi numa tarde de chuva, enquanto ela secava os cabelos no sofá e ele preparava um macarrão simples com molho pronto. Ela tinha 16, ele 24.

— Você é meu mundo, sabia? — ele disse, sem nem olhar pra ela, concentrado na panela. — O único canto onde tudo parece certo.

A frase grudou na pele dela. "Meu mundo." Bianca não tinha costume de ser o centro de nada. Vinha de uma casa onde as brigas falavam mais alto do que os elogios. O pai ausente. A mãe amarga, cansada. Era fácil se perder ali, fácil esquecer que existia pra além das obrigações e dos gritos. Mas com Guilherme, era diferente. Ele a via.

Quando completou 16 anos, Bianca saiu de casa. Oficialmente, foi porque queria mais independência. Na verdade, queria paz. Guilherme sugeriu que ela morasse com ele. Disse que pagaria as contas, que ela só precisava continuar estudando, terminar o ensino médio e pensar na faculdade.

— Você nasceu pra ser grande, Bia. E eu vou te ajudar a chegar lá — ele dizia.

Nos primeiros meses, era como viver dentro de um conto de fadas de concreto e sabão em pó. Ele fazia café antes dela acordar. Deixava bilhetes com frases bobas no espelho do banheiro. Às vezes aparecia na porta da escola com chocolate ou uma flor roubada de algum jardim. E nas madrugadas em que ela chorava, sentindo saudade da mãe ou confusa com o futuro, ele segurava sua mão e dizia:

— Eu tô aqui. Você nunca mais vai precisar passar por nada sozinha.

Bianca acreditava. Como não acreditar?

 

Ela se esforçava pra manter tudo funcionando. Arrumava a casa, estudava como nunca tinha estudado antes, e aos poucos começou a trabalhar como recepcionista numa academia próxima. Guilherme dizia que se orgulhava dela.

— Uma mulher de verdade, batalhadora. Não como essas patricinhas que vivem no celular — ele comentava às vezes.

Bianca achava engraçado o ciúmes dele. No começo, soava como cuidado. Ele não gostava que ela usasse roupas muito justas, nem saísse sozinha. Mas sempre dizia:

— É só porque você é linda demais. E eu tenho medo de te perder.

Ela achava bonito. Soava como amor.

Até começar a parecer uma cerca invisível.

 

O apartamento deles era pequeno, mas Bianca o deixou com cara de lar. Colocou cortinas claras, fotos deles na parede, um tapete que ela mesma escolheu. Tinha a sensação de que estavam construindo algo, mesmo que tudo fosse simples.

Guilherme começou a chegar mais cansado do trabalho. Às vezes dormia no sofá. Outras, nem dava notícia. Quando Bianca perguntava, ele respondia:

— Tô virando um cavalo de tanto trabalhar por nós dois. E você me cobra?

Ela se sentia culpada. Começou a tentar compensar com mais carinho, mais dedicação. Fazia comida, deixava bilhetes, cuidava pra não incomodar. Às vezes até deixava de sair com colegas da escola pra não dar motivo de desconfiança.

Mas aos poucos, Guilherme foi mudando. Menos sorrisos, menos paciência. Começava a implicar com o jeito que ela se maquiava, com as mensagens que recebia no celular. Dizia que os colegas da escola só queriam se aproveitar dela, que as amizades femininas eram cheias de inveja.

Bianca começou a duvidar de todo mundo. Menos dele.

 

Uma noite, ele chegou em casa com cheiro de perfume doce. Disse que era da recepcionista do lugar onde ele foi resolver um pagamento. Bianca fingiu que acreditou. Mas no fundo, algo se quebrou ali.

Pela primeira vez, ela sentiu medo.

Medo de perder ele.

Medo de estar sendo enganada.

Medo de estar sendo boba.

Mas ainda assim, ela se lembrava dos dias bons. Da promessa que ele fez de ajudá-la a ser alguém. Do jeito que ele a chamava de "meu mundo". E então, ela se agarrava a isso como quem se segura numa corda fina, prestes a arrebentar.

 

Em uma tarde de sábado, enquanto dobrava roupas, Bianca encontrou um batom vermelho no bolso da calça jeans de Guilherme. Ela não usava aquela cor. Nunca tinha usado.

Foi como levar um soco no estômago.

Ela colocou o batom em cima da mesa e esperou.

Quando ele chegou, tarde como sempre, ela apenas apontou com o olhar.

Ele riu.

— Isso? Deve ser de alguma cliente

Ela não respondeu.

— Tá achando que eu tô te traindo, Bianca?

— Não tô achando. Eu tô sentindo.

Ele ficou sério. Depois, suspirou e disse:

— Você anda muito sensível. Acho que essa convivência toda tá te fazendo mal.

Naquela noite, dormiram cada um virado pro lado.

E Bianca teve, pela primeira vez, a sensação de que talvez não fosse mais o "mundo" de ninguém.

As Primeiras Trincas

As Primeiras Trincas

O amor, às vezes, não acaba de uma vez. Ele se esfarela devagar. E foi exatamente assim que o de Bianca começou a se romper.

Depois do episódio do batom, a desconfiança se instalou como uma sombra no quarto deles. Bianca não conseguia mais olhar para Guilherme da mesma forma. Os sorrisos pareciam forçados, os abraços vazios. E o silêncio entre os dois começou a gritar.

Guilherme tentava agir como se nada tivesse acontecido. Continuava saindo, voltando tarde, deixando o celular sempre virado para baixo. Às vezes, sumia por horas sem avisar. Quando Bianca perguntava, ele retrucava com uma frieza que doía:

— Você tá ficando neurótica, garota. Quer controlar minha vida agora?

Ela se encolhia. E, com o tempo, parou de perguntar.

 

As amigas da escola começaram a notar. Bianca já não sorria como antes. Estava mais magra, mais calada, mais distante. Uma delas, Tainá, chegou a confrontá-la:

— Amiga, tá tudo bem com você e o Guilherme?

Bianca hesitou. Depois fingiu um sorriso.

— Só correria. Escola, trabalho, casa... cê sabe, né?

Mas não era isso. A verdade era que ela já não se reconhecia. Estava se apagando aos poucos.

 

Foi numa segunda-feira qualquer que Bianca descobriu a traição. Ela tinha saído mais cedo da escola e resolveu fazer uma surpresa. Comprou um lanche que ele gostava e seguiu até o trabalho de Guilherme. Era uma pequena loja ou lanchonete onde ele trabalhava com o primo.

Chegando lá, ele não estava.

— Saiu faz uma meia hora — disse o primo, distraído.

Bianca resolveu esperar. Mas algo dentro dela mandou olhar o Instagram de uma menina chamada Flavinha — uma conhecida do bairro, amiga de Tainá. Ao abrir os stories, o coração dela parou por um segundo.

Guilherme.

Num carro.

Sorrindo ao lado de Flavinha.

A legenda era: “Com o mozão, porque eu mereço.”

Bianca sentiu o mundo girar.

Ela nem sabia como saiu dali. Só se deu conta quando estava sentada num banco da praça perto de casa, o lanche ainda na mão. As lágrimas caíam sozinhas, silenciosas, como se o corpo inteiro chorasse por ela.

Ela não chorava só por ele. Chorava por tudo que tinha deixado pra trás. Por ter acreditado. Por ter lutado. Por ter se doado por inteiro. E, no fim, ser apenas mais uma.

 

Naquela noite, ela não voltou pro apartamento. Dormiu na casa da mãe. Não contou o motivo, disse apenas que precisava de um tempo. A mãe, mesmo desconfiada, acolheu.

— Você sempre tem pra onde voltar, Bianca. Mesmo que eu não seja perfeita.

Era difícil reconhecer, mas ela precisava ouvir aquilo.

 

Dois dias depois, Guilherme apareceu na porta da casa da mãe de Bianca. Com cara de arrependido.

— Foi um erro, Bianca. Juro por tudo. Foi uma carência, uma burrice. Eu te amo. Não quero te perder.

Bianca ouviu tudo em silêncio. Não disse nem sim, nem não.

Naquela noite, ela ficou acordada até tarde, encarando o teto. Uma parte dela ainda queria acreditar. Ainda amava. Ainda lembrava dos bilhetes no espelho, dos dias bons.

Mas a outra parte... estava cansada.

Cansada de ser diminuída, de ser duvidada, de se sentir sozinha mesmo acompanhada.

 

Os dias foram passando. Guilherme tentava reverter tudo com mensagens, flores, promessas. Bianca oscilava entre a raiva e a saudade.

Até que um dia, mexendo no antigo notebook dele, achou mensagens antigas. Várias. Não só com Flavinha. Com outras também. Algumas até durante o período em que ela achava que estavam bem.

Foi o ponto final.

Ela olhou para si mesma no espelho. O rosto ainda jovem, mas já marcado pela dor de quem amou demais.

— Chega.

 

Bianca voltou pro apartamento só pra pegar suas coisas. Guilherme tentou impedir, implorou. Chorou.

— Você é tudo que eu tenho, Bia!

— E você... me quebrou em pedaços — ela respondeu.

Voltou pra casa da mãe, mas já com um plano: ia arrumar outro canto, trabalhar mais, e terminar o ensino médio com nota alta. Sonhava em cursar Direito. Queria lutar por justiça — não só a dos outros, mas a dela também.

E, acima de tudo, queria se reencontrar.

Porque, pela primeira vez, ela entendia: não era o mundo de ninguém.

Era o mundo inteiro por si mesma.

 

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