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Círculo das Almas

Capítulo 1 O Sussurro do início

Capítulo 1 – O Sussurro do Início

A primeira vez que Elisa ouviu as vozes foi durante um sonho. Ela caminhava por um campo enevoado, onde as árvores não lançavam sombras e o céu parecia feito de cinzas. Tudo ali era calmo demais, como se o tempo tivesse arrancado do tecido da realidade. O som quebrou o silêncio como uma rachadura no vidro — um sussurro prolongado, carregado de dor e familiaridade.

“Volte… antes que o círculo se feche.”

Ela virou-se em todas as direções, tentando localizar quem falava, mas o campo estava vazio. De repente, o chão começou a tremer. As raízes das árvores se ergueram, retorcidas como serpentes, tentando agarrar seus pés. Elisa correu. A névoa parecia viva, tentando engoli-la. E então, viu uma figura ao longe: uma mulher com o rosto oculto por um véu preto, parada diante de um círculo desenhado no solo com símbolos que brilhavam em vermelho escuro.

Antes que pudesse chegar perto, tudo virou escuridão.

Elisa acordou com o coração disparado, suando frio. Seus lençóis estavam encharcados, e suas mãos… cobertas de algo escuro. Ao acender a luz do abajur, percebeu que era terra úmida, como se tivesse cavado algo com as próprias mãos. O quarto estava em silêncio, exceto pelo tique-taque do relógio antigo herdado da avó. Um som que nunca havia me incomodado antes, agora parecia o estalar de ossos quebrando.

Assustada, correu até o banheiro. Lavou as mãos repetidamente, mas a terra parecia grudada em sua pele, como se quisesse permanecer ali. No espelho, seu reflexo estava normal, exceto pelos olhos — vermelhos, fundos, como se não tivesse dormido em dias.

Aquela não fora a primeira noite com sonhos estranhos, mas fora, sem dúvida, a mais real. As vozes, os símbolos, a mulher… tudo permanecia nítido em sua memória, como se tivesse acabado de acontecer. Quando voltou ao quarto, encontrou algo sobre a cama: um pequeno pedaço de pano amarelado com um símbolo bordado em linha vermelha. Era o mesmo círculo do sonho.

Elisa não fazia ideia de como aquilo havia parado ali.

No dia seguinte, decidiu investigar. Pegou o pano e foi até a única pessoa em sua cidade que talvez pudesse saber algo: o antiquário Salvatore, um homem velho com olhos que pareciam já ter visto mais do que deviam. O antiquário cheirava a incenso e mofo, suas paredes cobertas de livros, espelhos antigos e bonecos sem olhos.

Salvatore olhou o pano e ficou em silêncio por alguns minutos.

— Você tem certeza de que isso estava em sua cama? — perguntou ele, com a voz rouca.

— Absoluta. Acordei com terra nas mãos. E... sonhei com esse símbolo.

Os olhos dele se estreitaram.

— Este é o selo da Reconexão. Um símbolo usado em antigos rituais de reencarnação. Não é algo que aparece por acaso.

Elisa riu, nervosa.

— Reencarnação? Você está dizendo que eu…

— Que você pode estar se lembrando de quem foi antes. E que talvez alguém esteja tentando lhe enviar uma mensagem — interrompeu ele, colocando o pano em uma pequena caixa de madeira escura.

— Quem?

Salvatore não respondeu de imediato. Levantou-se e puxou um livro grosso, encadernado em couro negro. Nele, páginas amareladas traziam desenhos semelhantes ao símbolo, junto com relatos de pessoas que sonharam com suas vidas anteriores antes de… desaparecerem.

— O que aconteceu com essas pessoas? — ela perguntou, embora já temesse a resposta.

— Algumas enlouqueceram. Outras foram encontradas mortas, com as mesmas marcas que carregaram em vidas passadas.

Elisa sentiu um arrepio subir pela espinha. Aquilo era demais até para sua fértil imaginação. Saiu do antiquário com mais perguntas do que respostas. Porém, uma certeza nascia dentro dela: aquilo era real.

Nos dias que se seguiram, os sonhos voltaram, cada vez mais intensos. Em um, ela era uma mulher condenada à fogueira, gritando por misericórdia. Em outro, empunhava uma adaga banhada em sangue, chorando diante de um corpo estendido no chão. Sempre o mesmo símbolo, sempre a mesma figura encapuzada observando à distância.

Elisa começou a perder o apetite. Mal conseguia dormir. Quando ia ao mercado, estranhos a encaravam como se a conhecessem. Uma senhora de aparência frágil parou diante dela certa manhã e disse, com a voz trêmula:

— Você voltou… mas não devia.

Elisa não respondeu. Correu dali como se o próprio inferno estivesse à espreita.

Naquela noite, ao tomar banho, notou algo estranho no espelho embaçado. Ao limpá-lo, por um instante, o reflexo não a acompanhou. O rosto ainda era o dela, mas o olhar… era de outra pessoa. Mais velho, carregado de tristeza e culpa.

No centro de sua nuca, uma pequena marca começou a surgir. Um círculo com três linhas internas, como um selo queimado sob a pele.

Tentando entender o que acontecia, decidiu procurar por histórias de pessoas com experiências semelhantes. Em um fórum obscuro da internet, encontrou o relato de uma jovem chamada Mariana, que descrevia sonhos idênticos, com os mesmos símbolos, e a sensação de estar sendo “puxada para outra existência”. O post tinha anos, e o perfil da jovem estava inativo desde então.

Elisa copiou o nome completo da garota e iniciou uma busca. Encontrou uma única notícia: "Mariana Rodrigues, 23 anos, desaparecida após relatar fenômenos paranormais."

As coincidências tornavam-se impossíveis de ignorar. Algo ancestral e obscuro estava sendo despertado.

Na madrugada seguinte, Elisa sonhou com um ritual. Viu-se cercada por cinco pessoas encapuzadas, que entoavam cânticos antigos em uma língua que não conhecia, mas compreendia. Estava presa ao chão por correntes feitas de símbolos. À sua frente, o mesmo círculo brilhava em brasas vivas. Um homem se aproximou e retirou o capuz. Era o mesmo que ela vira em outros sonhos, o homem que ela apunhalara.

— Você me condenou à morte — disse ele, olhando em seus olhos. — E agora, pagará o preço.

Ela acordou gritando. O símbolo estava queimado no chão de madeira ao lado de sua cama.

Capítulo 2 Rostos na Névoa

Rostos na Névoa

O símbolo queimado no chão não desapareceu ao amanhecer. Elisa observava a marca com o coração apertado, sem coragem de tocá-la. Estava ali como uma cicatriz viva, gravada em madeira antiga por um fogo que não queimava. Parecia pulsar sob a superfície, como se estivesse viva.

Ela pegou o celular para fotografar, mas a imagem capturada mostrava apenas o piso limpo, como se o símbolo fosse invisível às lentes digitais. Tentou de novo, com outra câmera. Nada. Na imagem, o quarto parecia comum, banal. Mas seus olhos continuavam vendo as linhas escuras, as bordas vermelhas e a leve fumaça que escapava por entre os traços. Aquilo não era um sonho. Era um aviso.

Durante o café da manhã, mal conseguiu engolir o primeiro gole. O gosto estava amargo, e a náusea veio como uma onda. Jogou o líquido na pia e sentiu a vertigem se aproximar. O mundo ao seu redor parecia distorcido, como se o tempo tivesse começado a escorrer mais devagar.

Quando saiu de casa naquela manhã, o céu estava encoberto e um vento gelado cortava as ruas. Elisa caminhava sem destino certo, apenas querendo sair de perto daquele quarto. Cada passo parecia conduzi-la por caminhos que não escolheria, como se fosse guiada por mãos invisíveis. Passou por uma praça antiga, onde crianças brincavam sob os olhares cansados dos avós. Ali, ao lado de uma estátua de bronze coberta de musgo, algo chamou sua atenção.

Uma mulher idosa, sentada sozinha em um banco, a observava fixamente. O rosto era marcado por rugas profundas, mas os olhos — de um azul vívido — pareciam perfurar sua alma. Elisa tentou desviar o olhar, mas não conseguiu. Havia algo naquela mulher que a impedia de continuar andando.

— Elisa... — disse a senhora, antes mesmo que ela pudesse falar qualquer coisa.

Ela congelou.

— Como sabe meu nome?

A mulher sorriu levemente, sem responder de imediato. Seus dedos tremiam levemente, mas ela apontou para a estátua à sua frente.

— Nós nos encontramos aqui, muitos anos atrás. Eu ainda era jovem. E você também. Estávamos vivos em outras peles, com outros nomes.

Elisa deu um passo para trás.

— Isso é alguma piada?

A idosa negou com a cabeça.

— Você ainda não se lembra de mim. Mas eu me lembro de você. Da noite do incêndio. Da traição. Você me deixou lá para morrer... e ainda assim, estou aqui.

O frio aumentou. A brisa parecia cortar sua pele como lâminas finas.

— Eu não sei do que você está falando. Não lembro de nada disso.

A senhora olhou para o céu.

— Ainda não. Mas vai lembrar. Todos sempre lembram.

E então, com um suspiro longo, ela se levantou e caminhou para longe, mancando levemente, sem olhar para trás. Elisa sentiu as pernas tremerem. Não havia como aquela mulher saber seu nome. Não havia como ela descrever algo tão específico… a não ser que…

Naquela tarde, Elisa decidiu voltar à biblioteca da cidade, em busca de qualquer pista. Subiu para a seção histórica, onde quase ninguém ia, e mergulhou em jornais antigos, registros da cidade, obituários esquecidos. A poeira impregnava as páginas como um véu silencioso do tempo.

Foi então que encontrou algo perturbador.

Um artigo amarelado, datado de 1937, com o título: “Incêndio no Teatro Municipal deixa sete mortos”. A matéria descrevia um evento trágico durante uma peça, onde o cenário pegou fogo e muitos ficaram presos. Havia uma lista de nomes — e entre eles, o de uma mulher chamada Isadora Leclerc.

Elisa sentiu um nó na garganta. A foto anexada à matéria mostrava a jovem atriz principal da peça, vestida com um figurino antigo e uma expressão intensa. Os olhos… eram exatamente como os dela. Não parecidos — iguais.

Virou a página com as mãos trêmulas. A peça encenada naquela noite foi uma tragédia grega chamada "O Círculo das Almas". Um enredo sobre amores fadados ao fracasso e almas presas em ciclos de vingança.

Ao fechar o livro, notou que alguém a observava do final do corredor entre as prateleiras. Um homem, alto, com expressão grave, vestindo um casaco escuro. Seus olhos estavam semicerrados, como se analisassem cada detalhe dela. Elisa piscou, surpresa — e ele desapareceu, como se nunca estivesse ali.

Levantou-se e correu até o corredor, mas não havia ninguém. As luzes piscaram por um breve momento, e um leve cheiro de fumaça invadiu o ar.

A caminho de casa, a mente de Elisa fervilhava. Vidas passadas? Vinganças antigas? Era difícil aceitar, mas cada novo acontecimento empurrava sua lógica para um abismo desconhecido.

Ao chegar em casa, encontrou a porta entreaberta. O coração acelerou. Empurrou a madeira lentamente, pronta para gritar ou correr. Mas não havia ninguém. Tudo estava no lugar — exceto um detalhe: no espelho da sala, estava escrita uma frase com letras trêmulas, como se desenhassem com um dedo embaçado:

“Você o matou. E ele voltou.”

Elisa cambaleou para trás. A frase começou a desaparecer lentamente, como se evaporasse com o ar.

Naquela noite, não ousou dormir. Sentou-se no chão, de costas para a parede, com todas as luzes acesas. Passou horas olhando para a porta, esperando que algo ou alguém surgisse. Nada aconteceu.

Mas no limiar da madrugada, entre a vigília e o cansaço, ouviu novamente a voz do sonho. Mais nítida. Mais próxima.

“Você quebrou o ciclo. Agora ele quer que você o complete.”

Elisa fechou os olhos. E quando os abriu de novo, estava em outro lugar.

Estava no teatro de 1937.

Capítulo 3 Palco Queimado

Palco Queimado

A madeira sob seus pés rangia como se reclamasse a presença de um intruso esquecido pelo tempo. Elisa olhou ao redor, desorientada. Estava no centro de um palco antigo, cercado por fileiras de cadeiras vazias cobertas por poeira. Cortinas vermelhas desbotadas balançavam suavemente com uma brisa inexistente. Tudo ali parecia suspenso, como um teatro congelado no instante antes da tragédia.

Ela não sabia como chegar até ali. Um instante estava em sua sala, o outro… dentro do cenário de uma lembrança que não era sua. O teatro estava em silêncio absoluto. A respiração de Elisa ecoava, e cada passo reverberava como um trovão contido entre as paredes.

O cheiro era uma mistura de madeira queimada e mofo antigo. Não havia sinal de fogo recente, mas as marcas estavam por toda parte: manchas escuras nas paredes, pedaços de teto caídos, e colunas rachadas como se o próprio tempo tivesse desmoronado.

Caminhou até a beira do palco. O salão se estendia à sua frente como um abismo escuro, mas não vazio. Silhuetas se formavam nos assentos, como vultos presos na penumbra. Estavam sentados, imóveis, como se aguardassem o próximo ato de uma peça que nunca terminou.

— Você voltou, Isadora — disse uma voz masculina, firme e carregada de mágoa.

Elisa se virou bruscamente.

Um homem alto surgia das sombras do palco. Vestia roupas da década de 30: camisa branca, colete escuro, calças bem ajustadas. Os cabelos estavam penteados para trás, e seus olhos carregavam um tom âmbar incandescente, como brasas sob cinzas. Ela deu um passo para trás, sentindo um frio inóspito correr pela espinha.

— Meu nome não é Isadora — disse, tentando firmar a voz. — Sou Elisa.

Ele sorriu de forma melancólica.

— Todos mudamos de nomes, mas a alma não esquece. Você me deixou ali, entre as chamas. Pedi ajuda… e você virou as costas.

Ela sacudiu a cabeça, confusa.

— Eu não lembro de nada disso. Nunca vi você antes.

O homem se aproximou, lentamente, sem fazer sombra. Estendeu a mão com a palma virada para cima.

— Quer que eu mostre?

A dúvida rasgava o peito de Elisa. Cada instinto dizia para correr, mas havia algo em seus olhos que implorava por redenção. Contra sua própria vontade, aproximou-se e encostou os dedos nos dele.

O teatro desapareceu.

Ela foi arremessada dentro de um turbilhão de imagens, sons e sensações. Viu-se vestida com roupas antigas, correndo pelos bastidores de um palco em chamas. Alguém gritava seu nome: Isadora. Ela se virou por um instante, viu o homem sendo esmagado por uma viga em chamas e hesitou. Mas ao invés de ajudá-lo, fugiu. Os olhos dele estavam cheios de desespero e dor. A visão sumiu num clarão.

De volta ao palco, Elisa caiu de joelhos, arfando.

— Isso… isso não sou eu — disse, com lágrimas nos olhos. — Não pode ser verdade.

O homem observava-a com tristeza.

— O passado não pede permissão para voltar. Ele apenas retorna.

— Por que está me mostrando isso?

— Porque o ciclo precisa ser fechado. E para isso, você precisa se lembrar de tudo.

As luzes do teatro começaram a piscar. Os vultos nas cadeiras se levantaram ao mesmo tempo. As sombras ganharam contornos, formas humanas e rostos apagados. Um sussurro coletivo ecoou por todos os cantos:

“O Círculo não se quebra. Ele se completa.”

Elisa gritou e correu pelo palco, mas não havia saída. As cortinas fecharam com força atrás dela. O homem desapareceu, como se nunca estivesse ali.

De repente, o chão sob seus pés começou a rachar. Luzes brancas emergiram das frestas, e a madeira parecia se dissolver. Antes que pudesse pensar em qualquer reação, sentiu-se cair em queda livre.

Acordou com um sobressalto em sua cama.

Estava encharcada de suor, os lençóis amassados como se tivesse lutado contra monstros invisíveis durante a noite. O relógio marcava três da manhã. Tudo estava escuro, silencioso demais.

Quando olhou para o espelho, quase gritou.

Seu reflexo estava diferente. O rosto era o mesmo, mas os olhos… tinham a mesma cor âmbar do homem do teatro. Por um segundo, era como se ele estivesse dentro dela, observando do outro lado.

Acendeu todas as luzes da casa. Precisava entender o que estava acontecendo. Correu até o armário e puxou a caixa com documentos antigos que pertenciam à sua avó. Lembrava-se vagamente de histórias contadas quando era criança, sobre uma atriz misteriosa na família, envolvida em um escândalo no passado.

No fundo da caixa, encontrou uma fotografia. Uma jovem em trajes de época, com um colar em forma de círculo com runas. Ao virar a foto, uma caligrafia antiga lia-se: Isadora Leclerc – 1937.

Debaixo da imagem, havia um diário em couro gasto, com as iniciais I.L. na capa. As mãos de Elisa tremiam ao abrir. As páginas falavam de ensaios, amores secretos, medo de alguém chamado Victor, e a obsessão dele com o poder do “Círculo das Almas”. Em uma das últimas entradas, lia-se:

"Ele acredita que pode aprisionar almas. Que, ao morrer, voltará com mais força. Eu tentei fugir, mas ele disse que se eu o traísse… me encontraria em qualquer vida."

Elisa caiu sentada no chão, com o diário sobre o colo. A cada palavra, o passado parecia se entrelaçar com o presente, como raízes se agarrando a um solo fértil de lembranças esquecidas.

Ela já não podia negar.

Estava presa em algo maior, antigo, e terrivelmente vivo.

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