A chuva caía fina lá fora, como se o céu também lamentasse o que ela ainda não sabia.
Aurora observava pela janela do quarto escuro, os dedos enrolando distraidamente a aliança em seu dedo. A casa estava em silêncio, o tipo de silêncio que pesa no peito. O tipo de silêncio que grita.
Há semanas, ela sentia o afastamento. Os olhares desviados. As desculpas vazias. Os toques cada vez mais raros.
Mas ela se recusava a acreditar. Dez anos ao lado de Gustavo não podiam terminar assim… num pressentimento.
Talvez fosse só o estresse.
Talvez a gravidez tivesse mudado sua sensibilidade.
Talvez…
Mas aquela noite, algo dentro dela gritava. Uma voz que ela tentou calar por tempo demais.
Ela desceu as escadas com passos leves, uma mão sobre o ventre. O bebê chutara naquela tarde — um sinal de vida, de futuro.
Mas o que ela veria naquele instante apagaria qualquer esperança.
A porta do escritório entreaberta.
Sussurros. Risos abafados.
E então, a voz dele. A voz que costumava acalmá-la.
— Ela não desconfia de nada… está ocupada demais sendo a esposa perfeita.
Aurora parou. O coração disparou.
A cada passo em direção à porta, sentia o mundo vacilar sob seus pés. Quando empurrou a madeira com força, a cena congelou diante de seus olhos:
Gustavo.
Com outra mulher.
Sabrina.
Aquela que ela considerava amiga.
As roupas meio desfeitas. O beijo ainda recente.
O choque deles ao vê-la ali era quase tão grande quanto o dela.
— Aurora… — ele tentou dizer algo, mas não havia o que dizer.
Ela não gritou. Não chorou. Apenas ficou ali, parada, com os olhos marejados e a alma em ruínas.
— Você… — sua voz falhou. — Você me destruiu.
Ela virou as costas, subiu as escadas como se seus pés não tocassem mais o chão. O peito doía, o bebê se remexia, e tudo ao redor parecia uma ilusão quebrada.
Naquela noite, ela decidiu ir embora. Mas não teve chance.
Horas depois, já com malas prontas e coragem em mãos, Aurora desceu uma última vez.
E foi ali, na sala onde tantas vezes sorriu, que sua vida acabou.
A primeira dor veio nas costas. A segunda no ventre. A terceira… no coração.
Ela caiu, sufocada pelo próprio sangue, encarando o rosto do homem que um dia amou e da mulher que ajudou a criar a farsa.
O mundo escureceu.
Mas sua consciência não.
No instante em que o último suspiro escapou de seus lábios, uma promessa silenciosa se formou em algum lugar entre a dor e a morte:
“Se eu pudesse voltar…”
O sangue formava uma poça ao redor de seu corpo. Aurora não sentia mais dor, apenas um cansaço profundo… como se estivesse se afundando num mar escuro e silencioso.
As vozes de Gustavo e Sabrina se tornavam distantes, irreais.
— Temos que nos livrar dela — sussurrou Sabrina, em pânico.
— Cala a boca! Vai dar tudo certo — respondeu Gustavo, a voz trêmula de raiva e medo.
Mas nada daquilo importava mais para Aurora. Ela não os ouvia. Não os via.
O tempo desacelerou. O som da chuva lá fora se misturava com um zumbido insistente. E então, o mundo simplesmente… sumiu.
Por um instante, havia apenas escuridão.
E então… uma luz.
Suave, dourada, distante. Como um sussurro chamando seu nome.
Aurora abriu os olhos.
O quarto estava claro, iluminado pela luz suave da manhã. O ar tinha cheiro de lavanda e maquiagem recém-passada.
Ela estava deitada na antiga cama do quarto dos pais. Reconheceu cada detalhe — os quadros na parede, o abajur com a cúpula torta, o espelho com as bordas descascadas.
Ela se sentou bruscamente, o coração acelerado. Levou as mãos ao ventre. Estava ali — pequeno ainda, mas protegido.
Assustada, virou-se para o lado. No criado-mudo, o celular vibrava com uma notificação:
“Hoje é o grande dia! Pronta pra ser a noiva mais linda? Estamos indo te buscar! ❤️ — Sabrina”
O coração de Aurora congelou. A mensagem parecia um soco.
Sabrina.
Viva. Inocente. Ainda fingindo ser sua amiga.
Aurora levantou-se e correu até o espelho. Seu reflexo… era o de anos atrás. Pele sem marcas, olhos mais brilhantes, cabelos ainda longos como usava antes de cortar.
Ela estava de volta.
De volta ao dia do casamento.
Um arrepio percorreu sua espinha.
Tudo ainda ia acontecer: a cerimônia, a traição, a gravidez, a morte.
Mas agora… ela sabia.
Aurora tocou a aliança ainda no dedo. Olhou-a com desprezo.
E num gesto firme, arrancou-a e a jogou com força contra o chão.
Dessa vez, não.
Dessa vez, ela não diria “sim”.
O vestido estava pendurado na porta, exatamente como ela se lembrava. Branco, delicado, com renda nas mangas e botões de pérola nas costas — o vestido que Aurora escolhera com tanto carinho. Mas agora, ele parecia um símbolo de tudo que ela queria esquecer.
Ela não conseguia tirar os olhos dele.
De repente, casar com Gustavo não era apenas um erro… era uma sentença de morte.
Bateram à porta.
— Aurora? — era a voz doce e animada de Sabrina. — Abre, amiga! Trouxe café e um docinho pra acalmar os nervos!
Aurora fechou os olhos. Por dentro, seu estômago revirava.
A mulher que a mataria horas depois estava ali, sorrindo do outro lado da porta.
Inspirou fundo e respirou devagar. Ela precisava ser cuidadosa. Ainda não era o momento de confrontar ninguém. Precisava observar, entender, planejar.
Abriu a porta com um sorriso forçado.
— Que bom que você veio — disse, mantendo o tom neutro.
Sabrina entrou com seu jeito leve de sempre, equilibrando uma bandeja com xícaras e pãezinhos.
— Está nervosa? É hoje, Aurora! Vai finalmente virar esposa oficial do Gustavo! — disse, com aquele falso entusiasmo que Aurora agora via com tanta clareza.
Ela não respondeu de imediato. Apenas observou a "amiga", estudando cada movimento, cada expressão.
Quantas vezes ela havia confiado em Sabrina? Quantos segredos divididos? Quantas risadas cúmplices que agora pareciam veneno?
— Você parece estranha — comentou Sabrina, franzindo a testa. — Dormiu bem?
Aurora sorriu, mas seus olhos estavam frios.
— Tive um sonho… tão real que parece que vivi tudo de novo.
— Sonho com o casamento?
Ela olhou firme para ela.
— Sonho com traição.
Sabrina congelou por um segundo. A expressão confusa, forçada. Depois, soltou uma risada.
— Cruz credo, que pesado! Deve ser o nervosismo.
Aurora apenas assentiu, mas por dentro sentia a raiva crescendo como brasas.
Mais tarde, enquanto os cabelos eram penteados e a maquiagem feita, Aurora observava tudo em silêncio. As amigas falavam, riam, tiravam fotos. O salão estava cheio de flores, tudo perfeitamente ensaiado.
E então ele entrou.
Gustavo.
Vestido com um terno escuro impecável, sorriso ensaiado, aquele charme que a conquistara dez anos antes.
Ao vê-lo, Aurora sentiu um misto de nojo e tristeza.
— Posso falar com ela um minutinho? — pediu ele às maquiadoras.
Quando ficaram sozinhos, ele se aproximou, pegando em suas mãos.
— Você está linda — disse, encarando seus olhos.
Ela segurou as lágrimas. Não de emoção… mas de lembrança. Lembrança do sangue, da dor, da frieza com que ele a matou.
— Gustavo — ela sussurrou, séria. — Você me ama?
Ele riu, sem notar a gravidade da pergunta.
— Claro que amo. É o dia mais importante da nossa vida.
Ela o encarou, profundamente. Pela primeira vez, viu nele o que antes ignorava: a mentira nos olhos, a dissimulação no tom de voz.
E foi nesse momento que Aurora soube.
Ela não diria "sim".
Ela não choraria de novo.
Ela não morreria por ele.
Ela ia destruí-lo.
Aurora ficou em silêncio por um tempo, ainda olhando para Gustavo. Por dentro, as memórias da morte invadiam sua mente como lâminas — a dor nas costas, o chão frio, a última imagem: ele, parado, indiferente, vendo sua vida escorrer como se fosse nada.
— Preciso de um momento sozinha — disse, puxando a mão com firmeza.
— Amor, o que foi? Está pálida. Tá tudo bem?
Ela fingiu um sorriso.
— Está sim. Só preciso respirar.
Gustavo hesitou, mas assentiu.
Assim que ele saiu, Aurora caminhou até o espelho. Observou seu próprio reflexo. Tão jovem. Tão viva. Tão enganada.
Mas agora ela sabia. Sabia de tudo.
O tempo voltou, e com ele, a chance de mudar o fim.
Os minutos seguintes pareciam ensaiados por outra pessoa. A mãe entrou no quarto com lágrimas nos olhos, arrumando o véu, elogiando o buquê, orgulhosa por ver a filha se casando.
Aurora escutava, mas era como se estivesse atrás de um vidro. Aquela mulher que sua mãe via — submissa, apaixonada, vulnerável — já não existia.
A marcha nupcial começou.
As portas se abriram. Todos os olhos se voltaram para ela.
O salão estava cheio. Convidados emocionados, celulares gravando, sorrisos esperando o conto de fadas começar.
Mas dentro de Aurora, o que existia era só uma certeza.
Ela caminhou até o altar com passos firmes. Gustavo a esperava com um olhar apaixonado, ensaiado. Sabrina estava ali ao lado, sorrindo como quem vencia uma competição que ainda não sabiam estar perdida.
O padre começou a falar. As palavras passavam por Aurora como vento. Nenhuma delas importava.
— Aurora… você aceita Gustavo como seu legítimo esposo, para amá-lo, honrá-lo e respeitá-lo, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até que a morte os separe?
O salão silenciou.
Aurora encarou Gustavo por um longo segundo. Ele esperava o “sim”.
Mas ela deu um passo atrás.
— Não.
A voz dela saiu firme, clara.
— Eu não aceito.
Um burburinho tomou conta do lugar. O choque se espalhou como uma onda. Gustavo a olhava sem entender. Sabrina congelou.
— Aurora… — ele murmurou, tentando segurar sua mão.
Ela recuou.
— Não me toque.
— O que está fazendo?! — Sabrina se adiantou, fingindo preocupação.
Aurora a encarou.
— Devolvendo a mim mesma o que vocês tiraram: a minha dignidade.
Ela tirou o véu, arrancou o buquê das mãos e o jogou sobre o altar.
— Este casamento nunca deveria acontecer.
E, com a cabeça erguida, ela virou as costas e saiu.
Sozinha.
Forte.
Renascida.
Do lado de fora, a luz do fim da tarde a envolvia. Pela primeira vez em muito tempo, Aurora respirou fundo sem dor no peito. A mulher que morreu já não existia.
Agora, havia apenas a que voltou.
O salto do sapato afundava na terra molhada a cada passo. Aurora caminhava com firmeza, apesar do vestido pesado e do coração ainda acelerado. Lá dentro, na igreja, o caos reinava: convidados murmurando, Sabrina fingindo preocupação, Gustavo provavelmente em pânico tentando entender por que a noiva perfeita o deixara no altar.
Ela não olhou para trás.
Parou na calçada, tirou o celular de um bolso escondido costurado por precaução — uma pequena rebeldia que a Aurora de antes jamais teria — e chamou um táxi.
— Me leve pra longe — foi tudo o que disse.
Horas depois, Aurora se viu diante de outro espelho, num quarto simples de hotel. A cama era dura, as paredes impessoais, mas aquilo era liberdade.
Longe da casa dos pais. Longe da máscara de noiva feliz. Longe da armadilha da qual quase não escapou.
Ela arrancou o vestido com raiva. As rendas se rasgaram, as pérolas caíram pelo chão.
O banho foi longo, como se pudesse lavar os anos de submissão, a ingenuidade, e o gosto da morte que ainda morava em sua memória.
Vestiu-se com o que pôde comprar numa loja de beira de estrada: uma calça jeans larga, uma blusa cinza e um casaco velho.
Sentou-se na beirada da cama e pegou um caderno do criado-mudo. Precisava escrever. Pensar com clareza. A adrenalina estava passando, e agora vinha o frio, o medo, mas também a determinação.
Ela tinha voltado por um motivo.
Escreveu no topo da página, com letras firmes:
"O QUE EU PRECISO FAZER."
E começou a listar:
1. Descobrir quando começou a traição entre Gustavo e Sabrina.
2. Coletar provas — mensagens\, ligações\, registros de encontros.
3. Descobrir se alguém mais estava envolvido.
4. Arruinar a imagem pública de Gustavo\, lentamente.
5. Expor Sabrina — da forma mais dolorosa possível.
6. Reconquistar sua liberdade e sua vida.
7. Descobrir quem me salvou.
Ela sublinhou o item sete.
Porque agora ela lembrava.
Nos momentos finais da outra vida, quando tudo escurecia, ela achou ter visto um vulto, alguém… uma mão quente segurando a sua.
Durante muito tempo acreditou que fosse Gustavo. Que ele tivesse se arrependido e chamado ajuda.
Mas agora ela sabia a verdade: Gustavo não salvou ninguém. Ele foi quem a matou.
Então… quem foi?
Quem a encontrou sangrando e a levou ao hospital? Quem cuidou dela nos últimos instantes? Quem garantiu que ela tivesse uma segunda chance?
Essa resposta podia mudar tudo.
Talvez ela tivesse um aliado que jamais conheceu. Talvez o único que enxergou sua dor — antes mesmo dela.
Aurora encostou a cabeça no travesseiro, mas não dormiu.
Pegou o celular, abriu a conversa com Sabrina. A tela mostrava meses de mensagens falsas, fotos, risadas… todas elas agora um teatro patético.
Digitou, sem pensar muito:
Aurora:
“Você lembra quem me encontrou naquele dia?”
Visualizado.
Nenhuma resposta.
Depois de alguns segundos, ela digitou outra coisa:
Aurora:
“Tudo o que estava escondido… vai começar a aparecer.”
A mensagem foi lida.
Sabrina não respondeu.
Mas Aurora sabia: naquela noite, não seria ela quem perderia o sono.
Ela fechou o caderno com um estalo.
A partir de agora, ela não correria mais de nada.
Ela voltara do inferno. E não sairia desse mundo em silêncio de novo.
O céu amanhecia devagar, tingindo a janela do quarto com tons acinzentados. Aurora não havia dormido. A ansiedade vinha em ondas silenciosas, mas não era mais paralisante. Agora, ela era útil. Era o fogo que alimentava sua lucidez.
Ao sair do hotel, enrolou os cabelos num coque simples, colocou um óculos escuro e se escondeu dentro de si mesma. Precisava desaparecer por fora para aparecer por dentro — onde o plano já começava a tomar forma.
A primeira parada foi no hospital mais próximo à antiga casa onde ela morreu.
Mesmo com o tempo voltando, a lembrança da dor era viva demais para ignorar. Sabia exatamente onde caiu, onde sentiu o sangue se espalhar, onde o frio começou a tomar conta. E lembrava — como um vulto embaçado — da voz que sussurrou: “Vai ficar tudo bem.” Não era a voz de Gustavo.
Ela precisava confirmar o que só agora ousava acreditar: alguém a encontrou. Alguém a socorreu. Alguém foi contra a sentença de morte assinada pelo homem que ela amava.
No balcão do hospital, ela se aproximou com cautela.
— Bom dia. Preciso de informações sobre uma entrada no pronto-socorro, há cerca de dois anos. Um caso de agressão grave… uma mulher em estado crítico. Não tenho certeza se era eu mesma. Estava sem documentos, dizem.
A recepcionista a olhou com estranheza.
— Você era a vítima?
Aurora assentiu, devagar.
— E está tudo bem com você agora?
Ela forçou um sorriso.
— Agora estou.
A moça hesitou, mas se levantou.
— Espere um pouco. Vou chamar alguém da equipe de registros antigos.
Meia hora depois, um enfermeiro de jaleco branco surgiu. Tinha olhar gentil e um andar firme.
— Aurora Brandão?
Ela ficou tensa.
— Sim. Sou eu.
Ele se aproximou, com um tablet em mãos.
— Eu lembro de você.
Aurora engoliu em seco.
— Você… estava lá?
— Eu estava de plantão quando te trouxeram. Você chegou com o crânio fraturado, sangrando muito. Nenhum documento. Achei que não fosse sobreviver. Mas você lutou. E alguém insistiu pra que te atendessem antes de qualquer burocracia.
Aurora arregalou os olhos.
— Alguém… Quem te trouxe?
O enfermeiro hesitou.
— Um rapaz. Ele não disse o nome. Parecia nervoso. Deixou você na maca, pressionando o corte com as próprias mãos. Só disse: “Por favor, ajudem ela. Ela foi traída.” E sumiu.
A garganta de Aurora fechou.
— Você lembra como ele era?
— Jovem. Alto, moreno, olhos escuros. Usava um moletom. Ah… e mancava levemente de uma perna.
Aurora ficou muda. Nunca conhecera alguém com esse perfil entre os amigos de Gustavo.
E se não era conhecido… então por que aquele homem sabia da traição? E por que ajudaria uma mulher desconhecida?
— Você teria imagens das câmeras? Da entrada?
O enfermeiro balançou a cabeça.
— Isso já é com a administração. Mas posso te dar uma cópia do relatório de entrada e o horário exato. Talvez ajude a procurar.
Ele imprimiu o documento e entregou a ela com um olhar solidário.
— Seja lá o que aconteceu com você, parabéns por estar de pé. Poucos saem daquela sala vivos. Você foi sorte... e força.
Aurora pegou o papel com dedos trêmulos.
Força.
Sim. Ela tinha.
Mas agora queria algo a mais: respostas.
Saiu do hospital sentindo o peso dos anos se tornarem mais leves. Não estava mais presa no passado. Estava começando a remontar o quebra-cabeça da sua própria salvação.
E no fundo, uma pergunta latejava como um eco:
Quem era o homem do moletom… e por que ele a salvou?
Ela descobriria.
Nem que tivesse que revirar o mundo inteiro.
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