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Sombria e Grave

sinopse....

Sinopse – narrada por Joyce

O avião cortou as nuvens como se tentasse abrir caminho entre mundos diferentes — e talvez fosse exatamente isso que eu estivesse fazendo. Deixando o meu mundo para trás. Ou fugindo dele. Sei lá. Já faz semanas que eu evito colocar um nome nesse impulso repentino que me fez empacotar minha vida em duas malas e embarcar sozinha para o outro lado do planeta.

Coreia do Sul. Um lugar que, até pouco tempo atrás, só existia no brilho das telas, nas letras que dançavam entre riffs de guitarra e nas vozes roucas dos artistas que eu escutava sozinha no meu quarto escuro. Agora, vai ser minha casa.

Não é como se alguém estivesse me esperando por lá. Não tem família, amigos ou qualquer laço real me esperando naquele país. Mas talvez isso seja o ponto. Eu cansei de tentar me encaixar num espaço que sempre pareceu pequeno demais pra mim. Sempre me disseram que eu era "demais" — intensa demais, calada demais, sincera demais, sombria demais. Como se o meu jeito de existir fosse um problema ambulante. Eu parei de tentar explicar. Só comecei a aceitar. E depois, a me calar.

Mas tem uma coisa que ninguém nunca conseguiu tirar de mim: minha música. A guitarra sempre falou quando minha voz falhava. Era ela quem gritava quando eu não podia. Quando eu subo num palco — mesmo que seja só um quarto vazio com as paredes rachadas de lembranças — eu me sinto inteira. É como se, por alguns minutos, o mundo não pudesse me tocar. Nem machucar. Nem exigir nada.

A verdade é que eu tô indo embora porque fiquei cansada de sobreviver. Cansada de fingir que estava tudo bem quando minha alma já estava em pedaços. Um contrato com um estúdio independente em Seul me deu a desculpa perfeita. E eu aceitei, claro. Assinei como quem assina um pacto. Talvez tenha sido.

Mas eu não vim atrás de fama. Eu vim atrás de mim mesma. Mesmo que isso signifique me perder primeiro.

É claro que nada é tão simples quanto a gente imagina. O estúdio é pequeno, quase escondido no subsolo de um prédio antigo, com paredes revestidas de histórias que não são minhas — ainda. Foi lá que eu o vi pela primeira vez. Silhueta encostada na porta. Como se fosse só uma sombra esperando o momento certo pra se aproximar. Ele não falou muito naquele primeiro dia. Só observou. Mas seus olhos disseram mais do que qualquer palavra.

Ele me viu. De verdade.

E isso me assustou mais do que tudo.

Porque eu vim pra Coreia pra desaparecer. E, de repente, alguém parecia disposto a me enxergar por inteiro.

Meu nome é Joyce. E essa é a história de como eu fui buscar silêncio, e encontrei alguém que ouviu até o que eu não disse.

Entre acordes sujos, noites insones e verdades enterradas, eu vou descobrir que fugir não apaga feridas. Mas, às vezes, é na escuridão que a gente encontra luz. Mesmo que seja uma luz tímida. Mesmo que seja só o brilho de um cigarro aceso no canto da sala... ou de olhos que escondem o caos com um silêncio ainda mais denso que o meu.

Eu não sei onde essa estrada termina.

Mas pela primeira vez, eu não tô com medo do que posso encontrar no caminho.

um adeus que veio tarde demais

Me diz uma coisa: quem foi que decidiu que família é sinônimo de amor? Porque, se for, a minha veio com defeito de fábrica. Não que eu esteja reclamando — não mais, pelo menos. Hoje é o dia em que eu finalmente dou o fora dessa casa. Um milagre disfarçado de e-mail internacional, com passagem só de ida pro outro lado do mundo. A Coreia do Sul pode nem saber o que a espera, mas eu tô indo assim mesmo. E vou sem olhar pra trás.

O zíper da minha mala grita quando fecho a última aba. Grita mais do que a Regina quando meu pai diz "não" pra ela — e isso, meu bem, é raro. Só que hoje, ela ouviu. Pela primeira vez em anos, ele olhou pra aquela mulher como se tivesse acordado de um coma. Eu quase bati palma.

Meu quarto é um mausoléu dos meus dias de resistência. As paredes ainda têm os pôsteres do Slipknot, Paramore, Evanescence, Pink Floyd… todos colados com fita adesiva, como se quisessem me manter viva quando tudo aqui dentro tentava me matar. A cadeira quebrada, o violão com corda estourada jogado no canto, o perfume velho da infância que eu escondi no fundo da gaveta... Tudo tem o peso de quem sobreviveu por mais de quinze anos sob o mesmo teto que uma víbora com salto alto e voz de santa de igreja evangélica.

Desde os dez anos eu aguento Regina Salles. A madrasta perfeita — no papel. Por trás da maquiagem cara e da fala doce, ela é o tipo de mulher que sorri enquanto envenena seu copo de suco. E o pior? Meu pai sempre soube. Sabia e não fazia nada. O velho era apaixonado, do tipo que aceitaria ser esfaqueado com um sorriso se fosse ela quem segurasse a faca. Amor demente, doente. Patético.

— Vai mesmo embora com essa gente que tu nem conhece? — a voz de Regina atravessa a porta entreaberta. Ela não bate. Nunca bateu. Ela invade.

— E tu vai mesmo continuar sendo amarga sozinha? — respondo sem virar o rosto. — Porque papai não vai aguentar isso por muito mais tempo.

Ela estufa o peito. Os olhos dela têm veneno. Mas eu tô imune.

— Isso é golpe. Golpe internacional. Tu vai acabar sem rim em algum beco de Seul.

— Pra tua tristeza, Regina, vão ter que trabalhar muito pra me pegar. E com essa língua aqui, eu boto qualquer sequestrador pra correr.

Ela vai embora pisando duro. Parece uma galinha de salto. Patética. Ela não me suporta porque nunca conseguiu engravidar. Tentou. Tentou tanto que quase virou experimento de laboratório. Mas nada. E na cabeça dela, o filho que ela nunca teve é o motivo do meu pai ainda me olhar com carinho. Como se eu fosse rival dela. Uma menina de dez anos. Dá pra acreditar? Freud faria festa com isso.

Meu pai me deu um abraço quando soube que eu ia embora. Um abraço que dizia: “desculpa por tudo que eu deixei acontecer contigo”. Não falou com palavras, porque ele nunca soube falar. Mas eu li no corpo dele. E foi o suficiente.

A BigHit mandou o contrato por e-mail. Dois cursos de música, especialização em produção instrumental, e eu finalmente fui notada. Eles precisam de alguém que entenda o som. E eu entendo. Porque eu sou o som. Eu respiro bateria, baixo, guitarra, distorção, pedal. Se amor não me fez viver, o rock fez. E agora é a minha chance.

— Tá levando tudo? — a voz do meu pai é baixa. Hesitante.

Me viro devagar. Ele tá na porta, com os olhos úmidos.

— Tô levando o que é meu. O que presta. O resto, eu deixo pra trás.

Ele engole seco. Não sabe o que dizer. Então diz a única coisa que me desmonta um pouco:

— Você sempre foi maior que isso aqui.

Eu abaixo o olhar. Trinta segundos de fraqueza. Só isso.

— Eu só quero respirar, pai. Só isso.

Ele assente. Eu vejo a dor nos olhos dele. Mas também vejo alívio.

Deito na cama uma última vez. O colchão afunda nos mesmos lugares de sempre. O ventilador de teto ainda faz aquele barulho de hélice solta. Nada mudou. Mas tudo está prestes a mudar.

“Se não der certo, eu volto”, penso. Mas é mentira. Se não der certo, eu invento um novo jeito de dar certo. Porque voltar não é uma opção. Não mais.

Regina tentou destruir minha identidade, mas tudo o que ela fez foi temperar o aço. Hoje eu sou navalha. Hoje eu sou Joyce.

E que o mundo se prepare.

não toca na minha guitarra

O carro da minha sogra estacionou como se fosse um enterro. Não de alguém morto. Mas de algo que precisava morrer. Tipo a minha paciência.

Ela não permitiu que meu pai me levasse ao aeroporto. Disse que se acontecesse alguma coisa comigo e com ele no mesmo dia, “nunca se perdoaria”. Ah, claro. A mulher que me chamava de peste desde os dez anos de idade agora queria bancar a sensível. Vai se ferrar.

— Vai com Deus, Joyce — disse ela, com aquela voz irritante de falsa cristã, mãos cruzadas no colo como se eu não soubesse quantos demônios habitavam ali.

— Deus deve estar ocupado tentando me salvar de ti, Regina — respondi, com meu típico sorrisinho torto. O mesmo que faz qualquer um pensar duas vezes antes de continuar uma conversa comigo.

A porta do carro bateu atrás de mim, alto. De propósito. Eu queria deixar minha última marca naquele banco de couro vagabundo que ela sempre esfregou na minha cara como se fosse realeza.

Meu pai... ah, meu pai. Ele me abraçou antes de sairmos de casa. Eu disse que não queria drama. Ele respeitou. Disse só:

— Você vai vencer, minha filha. E se der errado, sua cama vai estar aqui.

Abracei. Curto. Seco. Do meu jeito. Sem lágrima. Porque, honestamente, eu nem lembro mais como é chorar. Me ensinaram cedo que choro não resolve porra nenhuma.

Agora, arrastando minha mala pesada e meu case com minha guitarra sagrada, entrei no aeroporto como quem invade território inimigo. A galera na fila olhou como se eu fosse um ET — preta dos pés à cabeça, bota de couro, maquiagem escura, delineado cortando até a alma e um olhar de quem já matou um no café da manhã.

As rodas da mala emperraram e eu já senti que ia começar bem.

— Porra, só falta essa merda quebrar agora — resmunguei, chutando a lateral com raiva. A mala colaborou, tremendo como se tivesse medo de mim. Ótimo. Que aprendesse desde cedo.

No balcão, a funcionária sorria como se eu tivesse cara de quem aceita sorriso gratuito. Dei meu passaporte, bilhete, tudo que precisava. Ela piscou nervosa. Fiz questão de manter meu olhar fixo, sem piscar, até ela parar de sorrir. Funcionou.

Segui pra esteira de embarque. Aquele idiota responsável pelas bagagens se aproximou. Um moleque de uns vinte e poucos anos, cabelo mal pintado, usando uma luvinha que não escondia a falta de noção.

— Moça, deixa que eu levo.

— Toca na minha guitarra e eu enfio o cabo dela na tua goela.

Ele travou. Literalmente. As mãos congelaram no ar. A testa suou em tempo recorde. Se tivesse um termômetro emocional, ele tava em colapso.

— Eu... eu só queria ajudar.

— Ajuda é não encostar. E se tiver um arranhão nela, eu quebro o resto da esteira na sua cabeça.

Fiz questão de mostrar meu sorriso mais doce. Aquele que precede um apocalipse pessoal. Ele recuou dois passos. Senti a alma dele saindo pela sola do tênis. Foi delicioso.

Era isso que me protegia. O medo. O respeito forçado. A minha aura de quem já viu o inferno e mandou ele se foder com estilo.

Entreguei minha guitarra com os olhos. Tipo: “encosta e morre”. O cara pegou como se segurasse uma bomba. Boa escolha.

Na sala de embarque, sentei isolada. Um canto só meu. Tinha uns casais, umas famílias, gente demais. Fiquei com fone no ouvido, mas sem música. Só pra ninguém puxar assunto. Funcionou.

Quando chamaram meu voo, meu coração acelerou. Era isso. A porra da Coreia me esperava. A Big Hit tinha me chamado. Eles queriam minha cabeça musical, minhas mãos nos instrumentos, minhas ideias. Duas faculdades nas costas, anos de luta, noites em claro ouvindo Slipknot até explodir. Era a minha chance.

Olhei pra janela, o avião gigante parado na pista. E pela primeira vez em anos... eu senti vontade de chorar. De verdade. Mas não chorei. Porque eu não faço isso. Eu engulo. Eu sobrevivo.

— Que seja agora ou nunca — murmurei, pegando minha mochila.

Na fila de entrada, a aeromoça sorriu.

— Seja bem-vinda a bordo.

— Só não encosta, tá? Tô armada de ironia.

Ela riu sem graça. Passou o bip, deixei meu passaporte, sentei na cadeira e fechei os olhos.

“Senhor, se for pra roubarem meus órgãos, que deixem pelo menos meu cérebro intacto. Eu ainda preciso dele.”

Suspirei fundo. Senti o avião começar a andar. Não olhei pra trás. Não queria saber da cidade, da casa, da Regina. Já era. Se eu tivesse que voltar pra aquele lugar, eu juro que explodia tudo. Comigo dentro.

Mas agora, era só o céu.

E uma mulher com o passado queimando nas costas, tentando voar pela primeira vez.

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