Ah, morro da Glória... terra onde o sol bate mais forte, o samba vem da laje, e o corre nunca para. Lugar de gente que rala, sonha e sobrevive com a cara e a coragem. Mas também é onde, nas sombras, se esconde a verdadeira dona do jogo. E não, meu bem, não é figura de linguagem. É real. Tem nome, corpo, cérebro e tudo mais. Só que ninguém sabe — ou finge que não sabe.
Agora segura essa: em plena segunda-feira, num calor que dava pra fritar ovo no capô do carro, quem é que aparece subindo o morro todo bonitão, com cara de perdido e um celular na mão igual GPS quebrado? Ele mesmo. Davi. Camisa polo colada no braço, tênis limpo demais pra realidade, mochila nas costas e aquele olhar de quem não sabe se pede informação ou se volta correndo pro asfalto.
Primeira coisa que pensei? “Ih, esse aí vai ser engolido vivo.” Mas o moço é persistente. Subiu degrau por degrau como quem não tem nada a perder. Olhava pros lados meio desconfiado, meio encantado, tipo quem nunca viu criança jogando bola descalça na rua, ou a tia da laje gritando “pega a roupa que vai chover!”
A missão dele? Infiltrar. Se enfiar no meio do sistema, descobrir quem comanda o tráfico do morro. Porque, veja bem, a Arlequina — essa chefona invisível que a polícia tanto quer pegar — nunca foi vista, fotografada ou tocada. É tipo entidade. Todo mundo jura que ela existe, mas ninguém sabe dizer de onde ela vem ou pra onde vai. Só que tudo ali... tudo mesmo... passa por ela.
E Davi, com esse jeito certinho, esse sorrisinho de canto e esse papo de técnico de informática, veio jurando que ia descobrir. Mal sabia o tamanho do buraco que tava entrando.
Enquanto isso, a Camila — ah, Camila... — tava do jeitinho dela. Sentada na porta do brechózinho, uma cadeira de plástico meio torta, copo de mate gelado na mão e um livro aberto só pra fazer média. Nem lia nada, tava ali só na observação. Porque se tem uma coisa que a Camila faz bem, é olhar.
Na quebrada, ninguém desconfia dela. Educada, calma, doce até demais. Faz café pras véia, empresta roupa pra vizinha, vende camisa de time no crediário. Mas por trás desse rostinho de princesa de subúrbio, tem um cérebro de estrategista. Ela não grita, não aparece, não se mistura. Manda sem levantar a voz. E quando manda, o morro treme.
Mas vamos por parte. Porque hoje, ela ainda nem sabe quem é o Davi. Ela só percebeu o seguinte: o cara é novo por ali. E isso, no morro, já é suficiente pra levantar antena. Ainda mais com aquele jeito de “moço criado pela avó”. Educado demais, roupa passada demais, andar medido demais. No morro, quem é cria não se preocupa em andar bonito. Anda no ritmo da vida.
Camila viu ele subindo. Fingiu que não viu. Deu uma espiada por cima do livro e pensou: “Humm... turista ou problema?”. Mas ficou na dela. Porque Arlequina não age por impulso. Observa, escuta, junta peça. Só depois que joga.
Davi, por outro lado, já se sentiu meio fora de lugar. Passou por dois moleques jogando dominó que só faltaram rir da cara dele. Uma senhora o encarou de cima a baixo como se tivesse pesando as intenções. Mas ele fingiu costume. Foi subindo até achar o ponto que tinha no mapa — uma viela apertada, com três gatos, dois varais e um portão com a fechadura remendada com arame.
A missão dele era simples: se instalar ali, começar o disfarce e ir se aproximando do pessoal. Montar a fachada de técnico de manutenção, oferecer conserto de celular, instalar wi-fi de caixinha, essas paradas. O que ele não sabia é que, ali, fachada só funciona pra quem tem indicação. E ele? Tinha cara de cartaz novo. Ninguém conhecia.
Enquanto isso, Camila tava ali, pensando se devia chamar o Peixão pra dar uma olhada no novato. Mas resolveu esperar. Porque tinha algo curioso naquele homem. Ele não era igual aos outros que vinham pro morro achando que iam dominar. Ele parecia... sei lá... meio deslocado, mas focado. E bonito. Isso aí a gente tem que admitir: bonito ele era. Daqueles que parece que saíram de comercial de perfume — só que com suor de verdade escorrendo da testa.
E foi ali, entre uma espiada e outra, que os olhos deles se cruzaram pela primeira vez. Sem palavras. Só um olhar rápido. Ele acenou, meio tímido. Ela respondeu com um sorrisinho de canto, tipo “bem-vindo ao labirinto, otário”.
E pronto. Nesse instante, sem saber, os dois deram o primeiro passo pro que viria ser o jogo mais perigoso da vida deles.
Davi seguiu caminho, ainda achando que podia manter o foco. Mal sabia ele que a armadilha mais mortal do morro não era o tráfico, nem os homens armados. Era o charme silencioso da Camila. E essa aí... joga bonito. Joga com o olhar, com a palavra, com o toque. Mas principalmente, com a cabeça.
E Camila? Nem imagina que aquele novo técnico de internet, que parece gente boa e educado, é na real o policial que jurou derrubar tudo o que ela construiu. Ela ainda vai brincar com fogo achando que é brisa.
Mas até lá? Tem chão, tem história, tem tiro, beijo, confusão e muito, mas muito jogo de cena.
Porque aqui, no morro da Glória, ninguém entra impune. E no fim das contas, meu bem... só sobrevive quem entende que o amor, às vezes, é a armadilha mais bem montada do crime.
Camila tava de short jeans rasgado, camiseta velha do Flamengo e um coque malfeito que nem tentava ser bonito. Mas mesmo assim, tinha uma aura que gritava: “eu sou o problema que você vai querer resolver”.
A rua principal do morro tava num calor infernal, daquele que derrete até pensamento ruim. E Davi, com a maleta de ferramentas na mão e a testa suando como quem tá no meio do Saara, tentou manter o foco. Só que foco era uma palavra que evaporava toda vez que ela passava perto.
— Vai mexer no poste ou tá esperando a luz divina cair do céu? — Camila perguntou, apoiada na grade da própria varanda, com um copo de suco na mão e um sorrisinho de canto.
Davi olhou pra cima, depois pra ela. Teve que rir.
— Se cair do céu, melhor ainda. Menos serviço pra mim.
— Hmm… desconfio que cê dá mais trabalho do que resolve — ela retrucou, cruzando os braços e encarando ele como se lesse pensamentos.
Ele se virou de volta pro poste, fingindo que tava conferindo os cabos. Mas por dentro, tava tentando entender por que o coração acelerava desse jeito por uma desconhecida com cara de quem manda prender e soltar com um olhar.
Camila desceu da varanda. Pé descalço, andar tranquilo, olhar atento. Se aproximou como quem não queria nada.
— Tu é novo aqui, né? Nunca te vi nesse pedaço.
— É... tô fazendo uns trabalhos aqui no morro. Técnico, manutenção de rede, essas coisas. — Ele falou sem enrolar muito, mas também sem se entregar demais.
Ela deu uma risada curta, debochada.
— Técnico? Só isso?
— Ué, o que mais seria?
— Vai saber… nesse morro ninguém é só o que parece. Uns dizem que vendem DVD, mas andam de Land Rover. Outros dizem que tão de passagem e somem com três da facção rival.
Davi deu um sorriso amarelo. Tava achando o papo leve, mas também sabia que aquilo ali era um teste. Camila jogava verde pra colher informação. E ele? Jogava humildade pra disfarçar a farda.
— Relaxa, moça. Eu só tô aqui pra ligar o Wi-Fi da galera.
Ela riu alto dessa vez. Gargalhada livre, sem vergonha de ser escandalosa.
— Eita, então tu é o salvador da internet! Faz milagre, é?
— Faço. Por uma taxa de boa vontade e um copo d’água — ele disse, encarando ela com uma ousadia que nem sabia que tinha.
— Copo d’água eu tenho. Boa vontade… depende da tua cara.
Camila se aproximou mais. Davi sentiu o cheiro de sabonete barato misturado com perfume doce. Aquela combinação real, humana, que grudava na memória.
— Já que cê é o técnico, vê se consegue consertar meu sinal. Tá uma porcaria — ela disse, entregando o celular na mão dele como quem entrega uma arma.
— Posso tentar. Mas tem que me levar até onde tá o roteador.
— Claro, vem comigo. Só não repara na bagunça. A casa tá do jeito que a vida me deixou.
Davi seguiu. A casa era simples, mas tinha cor, tinha cheiro de café e tinha fotos nas paredes. Foto da mãe, de uma criança pequena com ela no colo — devia ser sobrinho, ou talvez irmão — e uma imagem de São Jorge ao lado de uma vela derretida.
Ela apontou o roteador, e ele se ajoelhou pra conferir os cabos.
— Tá com sinal fraco porque tá escondido atrás da geladeira — ele explicou, meio rindo. — O Wi-Fi precisa respirar, sabia?
— Ah, então o segredo é deixar ele solto? Tipo homem?
— Depende. Tem homem que, se respirar demais, vira problema.
— E tem mulher que, se tu tentar prender, vira furacão.
Os dois riram. Era como se já se conhecessem há anos. Mas por dentro, os dois tavam armados até os dentes. Ele, com um passado que não podia contar. Ela, com um presente que era melhor esconder.
— Tá funcionando agora — ele disse, se levantando. — Vai lá, testa.
Camila pegou o celular, entrou no Instagram, deu um scroll rápido.
— Tá voando. Merece até café por esse milagre.
— Não recuso.
Ela foi até a cozinha e voltou com duas xícaras. Sentaram na varanda, como dois desconhecidos que já sabiam que o outro ia mudar a vida deles — só não sabiam como ainda.
— E aí, técnico, tem nome?
— Davi.
— Nome de santo. Será que combina?
— E você?
— Camila. Mas aqui todo mundo me chama de Mila.
Mentira. Ali todo mundo chamava de “Dona Mila”, “Patroa”, “Rainha”, “Arlequina do Morro”. Mas Davi não precisava saber disso ainda.
— Camila... bonito. — Ele encarou ela com mais coragem dessa vez.
— Tu já disse isso pra quantas, hein?
— Pra nenhuma que estivesse com a camisa do Flamengo e cara de que pode me derrubar com um olhar.
Ela gargalhou de novo.
— Tá se achando, hein?
— Tô só sendo sincero.
Camila levantou, bateu na própria coxa duas vezes, como quem dá sinal pro cachorro vir.
— Então vamo ver se tu aguenta essa sinceridade quando descobrir onde tá pisando.
— Eu não tenho medo fácil, Mila.
Ela olhou por cima do ombro, sorriso quase desafiador.
— Não tem medo... ainda.
Davi ficou parado ali, encarando a xícara vazia e o coração acelerado. Não sabia se tinha consertado um roteador ou se tinha acabado de entrar numa rede onde o sinal era fraco, mas o perigo... esse tava forte demais.
Autora narrando, e ó… presta atenção que agora o caldo começa a esquentar.
O morro tem dessas coisas: parece calmo, mas vive sussurrando perigo nas frestas das janelas. É tipo coração partido — finge que tá de boa, mas pulsa com revolta. E Davi, o novo técnico, tava achando que tava se misturando bem.
Mal sabia ele que no morro, quem sorri demais é anotado. Quem pergunta muito é marcado. E quem acha que tá no controle… tá só jogando no modo fácil de um jogo que nunca é justo.
Ele continuava fazendo o papel certinho: ajeitava antena, desarmava criança chorando com sorriso, carregava galão d’água pra véia do 23. Tudo pra parecer o bom samaritano do alto da favela.
Mas o morro… o morro tem olhos. E língua solta.
— Tá ligado que tão dizendo que vai dar merda, né? — cochichou Jefinho pro comparsa, enquanto olhavam Davi do outro lado da quadra.
— Por quê?
— Porque tem gente estranha demais por aqui. E quando começa assim, sempre tem dedo do governo.
— Ih… será que é aquele papo de policial infiltrado?
Jefinho deu de ombros.
— Só sei que a Arlequina precisa saber.
Agora, segura esse nome: Arlequina.
Ninguém sabe quem é. Só sabe o que ela faz. E o que ela faz, meu amigo… é mandar. Manda em tudo, mas sem aparecer. Sem mostrar a cara, sem subir o tom. E ainda assim, nego obedece.
Davi ouviu o nome pela primeira vez na boca de um moleque com o chinelo virado:
— A Arlequina resolve, fi. Quando o bagulho fica doido, ela manda o papo. E todo mundo abaixa a cabeça.
— Quem é ela? — Davi perguntou, com o olhar meio curioso, meio cínico.
— Ninguém sabe. Dizem que é bonita. Inteligente. Fria. Tipo uma sombra, tá ligado? Quando tu vê… já foi.
Davi deu risada, achando graça. “Mais um mito do morro”, ele pensou. O povo adora criar vilã bonita pra dar emoção pro corre.
Enquanto isso, em outra laje da vida, Camila tava esticada numa rede, de shortinho e camiseta velha, tomando uma Coca gelada. O celular vibrando sem parar no peito.
— Chegou mais um relato. Tão dizendo que tem alguém perguntando demais sobre você — avisou a mensagem codificada.
Ela sorriu, mas foi aquele sorriso que tem veneno no canto da boca.
— Engraçado… justo agora que chegou o moço do Wi-Fi.
E antes que você ache que ela ligou os pontos, calma. Camila era sagaz demais pra acusar sem prova. Mas desconfiar? Ah, isso ela fazia com classe. Tava jogando a dela, igual dama de copas num baralho cheio de ladrão.
Ela nem imaginava que Davi tava ali por ela. Ele nem cogitava que ela era ela.
Era tipo novela das nove, mas sem trilha sonora: dois personagens se encarando sem saber que a história toda girava em torno deles.
Na cabeça de Davi, Camila era só uma moradora marrenta, cheia de charme e língua afiada. Alguém que fazia o coração dele acelerar mais do que devia. Ele até comentou com um colega da “missão” num ponto cego do morro:
— Se a Arlequina for metade do que falam, não tem nada a ver com a Camila. Aquela mulher ali tem mais cara de poesia do que de pistola.
E a gente ri, né? Porque ele não faz ideia da verdade.
Mas Camila… Camila sentia no osso quando o perigo tava chegando. E Davi, com aquele sorrisinho sem malícia e o jeitinho prestativo, era bom demais pra ser só técnico.
— Ele é educado, bonito e anda com postura. Vai ver que é casado — comentou Lívia, uma das poucas amigas da Camila, enquanto penteava o cabelo.
— Ou é espião — Camila respondeu, rindo debochada.
— Ai, Camila, tu é doida.
— Sou nada. Só jogo xadrez enquanto geral brinca de dama.
E jogava mesmo. Porque naquela noite, depois de muito pensar, ela mandou chamar um dos meninos de confiança. O tipo que atravessava a favela com o corpo mole e os olhos vivos.
— Segue o cara do Wi-Fi. Quero saber onde dorme, com quem fala e se o relógio dele é original.
O menino deu risada, achando exagero.
— Tá apaixonada, é?
— Tô atenta, que é pior.
E com essa frase, ela selava o início da perseguição mais perigosa e romântica que o morro já viu.
Davi, por sua vez, tava deitado em seu colchão fino, encarando o teto com o barulho de tiro ao longe. Tinha ouvido falar da tal Arlequina, tinha visto Camila de short jeans e sorriso torto, e agora a mente tava misturando os dois como quem faz receita errada.
— Arlequina… deve ser nome inventado de alguma bandida maluca — murmurou, fechando os olhos.
Se ele soubesse.
Se ele soubesse que a tal mulher fria, calculista, que mandava e desmandava… era a mesma que tinha deixado ele sem fala com um olhar de canto de olho.
Mas por enquanto, o jogo tava bem jogado. Cada um com sua peça no tabuleiro. Davi tentando não se apaixonar. Camila tentando não confiar.
E o morro… ah, o morro só observava, rindo pelas frestas e sussurrando:
— O nome dela é perigo. Mas ele ainda não sabe.
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