CHOI JI-HOON, tinha 28 anos, mas o rosto pouco denunciava a juventude. Os cabelos escuros, da mesma cor dos olhos, estavam presos atrás pela touca cirúrgica. A postura era ereta, quase demasiado rígida, como se carregasse uma couraça invisível. A estatura de um metro e oitenta somada à presença silenciosa, fazia-o parecer sempre um passo à frente de todos na sala, mesmo quando nada dizia. Terminava mais uma cirurgia na sexta-feira à noite. Retirou as luvas cirúrgicas com precisão quase militar. O som seco do látex a desprender-se da pele ecoou pela sala como uma vírgula num parágrafo demasiado longo.
— Finalizado. Terminem o resto. — afastou da maca sem desviar o olhar.
A equipe continuava a sutura final sob a luz branca e implacável do bloco operatório. Lavou as mãos em silêncio, o olhar fixo no vórtice da água a escorrer. No vestiário, olhou o celular. Uma chamada não atendida. Número desconhecido.
Ele vestiu o casaco escuro, passou pelos corredores iluminados e saiu pela porta lateral. Respirou fundo ao entrar em outro setor, onde encontrava a sua mãe.
Abriu a porta sem fazer ruído. A mãe estava deitada, ligada às máquinas que pareciam sussurrar em vez de apitar. O monitor cardíaco pulsava devagar, regular, como um bater de asas cansado.
Aproximou-se e sentou-se ao lado da cama. Observou-lhe o rosto. Metade dele já não lhe respondia, uma paralisia que lhe roubava expressões, mas não a presença.
Segurou a mão. Pequena. Frágil. A pele gasta pelo tempo e pelas batalhas de uma vida inteira.
— Estou aqui. — murmurou. — Ainda estou aqui.
Não sabia por quanto tempo mais poderia dizer. E foi então que o telefone vibrou de novo. Outra chamada. O mesmo número desconhecido. Não atendeu. Olhou para o rosto da mãe e suspirou profundamente. Choi Na-Ri, era o nome dela. Mulher de hábitos simples, mas de uma força que poucos conseguiam compreender. Criou-o sozinha, entre turnos de enfermagem e noites em claro. Nunca reclamou. Apenas vivia. Com dignidade. Com doçura. Com silêncio.
Choi Ji-Hoon, ou apenas Ji, para os mais próximos, tinha herdado dela o nome e o olhar. A descendência coreana fazia dele uma figura que se destacava discretamente nos corredores do hospital. Mas, mais do que a aparência, era o silêncio que herdara. Um silêncio firme, como o da mãe. E talvez, também, como o do pai. Sabia pouco sobre ele. Um policial, diziam. Trabalhava noutra cidade, aparecia esporadicamente, como um vulto na infância que vinha e ia com promessas nunca cumpridas. Lembrava-se vagamente do cheiro do uniforme, do som metálico de um porta-chaves, do frio que vinha sempre depois de cada visita.
O pai nunca teve presença constante. E Ji aprendeu cedo que esperar por quem parte é uma forma lenta de morrer por dentro. Ainda assim, parte dele nunca deixou de se perguntar: porquê agora? Por que razão, depois de anos de silêncio, surgia aquela chamada? E por que é que a simples vibração do telefone fazia o coração acelerar mais do que uma cirurgia à beira do fracasso? Levantou-se devagar, pousou a mão sobre a testa da mãe.
— Amanhã volto. — sussurrou.
Saiu do quarto com passos pesados e o coração dividido entre o medo e uma estranha sensação de inevitabilidade.
Durante o caminho, encontrou com a diretora.
— Doutor, que bom que encontrei com você. — falou com o tom urgente de quem vinha a segurar aquelas palavras há algum tempo.
Ji parou imediatamente.
— Aconteceu algo?
Ela hesitou por um segundo, como quem mede cada palavra antes de lançar a ferida.
— Sim, preciso falar com você. É sobre a sua mãe.
Ji sentiu o estômago afundar.
— O que houve?
— Eu fiz tudo o que pude. Entrei em contato com algumas pessoas e consegui algo raro. Uma clínica de reabilitação especializada em casos como o dela. — Pausou, e depois baixou um pouco o tom. — Entretanto, é um lugar bastante disputado e naturalmente, caro. Muito caro.
Ele assentiu devagar, tentando manter a expressão neutra.
— Quanto?
Ela disse o valor. Ji ficou em silêncio. O número ecoou-lhe na mente como um bisturi a cortar um tecido delicado. Era mais do que tinha. Mais do que conseguiria com plantões extras. Mais do que o hospital poderia cobrir.
— Eu sei que não é fácil. Mas é o melhor lugar para ela. E o tempo... o tempo é um fator crítico. — completou a diretora.
— De alguma forma, darei um jeito de pagar. Poderia me enviar o local, por favor.
Ji agradeceu com um aceno contido e afastou-se, o som dos saltos da diretora a desaparecer atrás de si.
Ao chegar ao carro, sentou-se ao volante, mas não ligou o motor. Apoiou a cabeça no encosto e fechou os olhos por um instante.
Muita gente dizia que um médico vivia bem. Que ganhava bem. Que tinha tudo controlado. Mas nem sempre era assim. Depende do hospital, da cidade, dos turnos, da especialidade. Depende de mil fatores invisíveis que ninguém via quando ele colocava o estetoscópio ao pescoço.
Antigamente, ser médico era sinónimo de prestígio, de estabilidade, até de riqueza. Hoje, era sobrevivência. E, para alguns, como ele, sacrifício atrás de sacrifício.
Os plantões em Braga não pagavam o suficiente para manter a mãe numa clínica de topo. Os empréstimos já estavam no limite. As contas empilhavam-se como dossiês esquecidos num gabinete. E o tempo corria.
Abriu os olhos e encarou o reflexo do próprio rosto no vidro do carro. As olheiras marcadas, a expressão dura. Um rosto que começava a perder a juventude, mesmo com apenas vinte e oito anos.
Desviou o olhar para o dispositivol e pegou no dispositivo. Queria verificar a hora. Mas, sem querer, clicou numa notificação.
Uma propaganda abriu-se automaticamente, levando-o para um canal de YouTube com milhões de inscritos. Um homem sorridente falava sobre investimentos, viagens e "liberdade financeira antes dos 30".
Ji soltou um riso breve, seco. Quase um suspiro.
— Esse tipo deve ganhar muito bem… — murmurou, apoiando o celular no colo.
Ficou a observar o vídeo por alguns segundos. O youtuber estava numa praia de águas cristalinas, falando sobre "viver de rendimentos" enquanto bebia algo caro com uma palhinha de bambu.
— Deveria parar de ser médico e ser youtuber?
— perguntou a si mesmo, com sarcasmo. Suspirou pesado, passando a mão pelos cabelos escuros. — Talvez fosse menos cansativo. Menos cruel.
Mas sabia que era só um pensamento de fuga. Um lampejo de cansaço entre um fardo e outro. A vida real não se fazia com thumbnails coloridas e títulos em caixa alta.
Fechou o vídeo, bloqueou o ecrã e encarou o silêncio de novo. Ali, no escuro, havia apenas ele, a noite, e uma escolha à espera.
O número desconhecido tocou novamente. A vibração do telemóvel quebrou o silêncio do carro como uma sirene distante. Ji olhou o visor. Pela terceira vez, aquele mesmo número.
Dessa vez, atendeu.
— Alô? Olhe, acho que está a ligar para o número errado e também... — começou, já preparado para desligar.
Mas foi interrompido.
— Sou eu, filho.
A voz era grave, pausada, com uma rouquidão que Ji não ouvia há anos. O silêncio que se seguiu foi mais ensurdecedor do que qualquer discussão que pudessem ter tido.
Ji ficou paralisado por um segundo. A mão apertou o celular com mais força.
— O quê...? — sussurrou, quase sem voz. — Pai?
Do outro lado da linha, silêncio. Mas não o silêncio vazio de antes. Era um silêncio carregado. De coisas que não foram ditas. De presenças ausentes. De uma história inacabada.
— Preciso de falar contigo. Amanhã. Rua da Liberdade, número trinta e um. Às dez.
— Porquê agora? — disparou, a voz trémula entre a raiva e o espanto. — Passaram-se tantos anos.
— Porque agora é a tua vez de escolher. — respondeu simplesmente.
A chamada terminou.
Ji ficou com o telefone na mão, o ecrã escuro. Como o céu. Como o passado. Como tudo o que tinha deixado em suspenso.
O nome que nunca dissera em voz alta. O homem que era metade de quem ele era. Estava de volta.
E ele sabia, no fundo, sempre soube, que esse dia ia chegar.
— É bem cara dele fazer esse tipo de coisa!
No dia seguinte, Ji acordou antes do despertador tocar. Passou a madrugada a ouvir o tique-taque invisível da ansiedade. Não dormiu, apenas fechou os olhos, por momentos, tentando convencer-se de que aquilo era uma má ideia. E, ainda assim, vestiu-se, pegou nas chaves, e saiu.
Foi ao encontro com um pé atrás. Um mundo inteiro de pés atrás.
A Rua da Liberdade ficava no centro antigo da cidade. Prédios baixos, fachadas restauradas, cafés ainda fechados a essa hora da manhã. O número 31 era uma antiga casa convertida em escritório. Portas altas, madeira escura, um intercomunicador antigo com botões gastos. Ji parou diante da entrada. Respirou fundo. Tocou à campainha. A porta destrancou com um estalido seco. Entrou.
O cheiro era o mesmo de outros tempos, uma mistura de tabaco velho, couro e café frio. Como se o tempo ali dentro tivesse parado à espera dele. E então, lá estava ele.
Sentado num cadeirão junto à janela, com um casaco de cabedal escuro e os olhos fixos em Ji, como se já o tivesse visto entrar mil vezes em sonhos que nunca contou a ninguém.
O mesmo rosto de traços duros. Cabelos grisalhos nas têmporas. Rugas vincadas como mapas de uma vida sem descanso.
— Você veio. — falou, sem se levantar.
Ji manteve-se de pé, sem saber se estava a sentir raiva, desconforto ou apenas cansaço.
— Disse que vinha. — respondeu, curto.
O pai assentiu.
— Preciso da tua ajuda. E tu precisas da minha.
Ji cerrou os dentes.
— E só por isso decide lembrar que tens um filho?
O silêncio entre eles foi denso.
O pai levantou-se devagar. Caminhou até uma mesa baixa e abriu uma pasta.
De lá, retirou um envelope grosso e uma folha de papel.
— Isto vai pagar a clínica da tua mãe. — pousou o envelope sobre a mesa. — Mas tem um preço. E um nome.
Ji olhou o envelope. Depois, os olhos do pai.
— Que nome?
O pai empurrou-lhe o papel.
Uma palavra escrita em letras grandes e pretas.
SALVATORE.
Ji não tocou no envelope. Os dedos ficaram tensos ao lado do corpo, como se bastasse um gesto para tudo explodir.
Olhou fixamente para o homem à sua frente, aquele que um dia chamara de pai, e que agora mais parecia um estranho com um plano.
— Não confio em você. — falou, a voz firme, embora baixa. — Por que ajudaria de repente? Depois de anos sem aparecer, sem perguntar nada sobre mim, sobre ela?
O pai manteve-se imóvel por um momento. Depois, respirou fundo, afastando um pouco a cadeira para o lado.
— Porque estou a tentar consertar o que posso antes que seja tarde. — respondeu, com um olhar que não desviava. — E porque esta situação... — apontou para o papel com o nome “Salvatore” — Pode servir os dois.
Ji deu um passo em frente, quase sem perceber.
— E quem é esse Salvatore? Por que está me metendo nisso?
O pai passou a mão pelo rosto, como quem carrega o peso de várias décadas nas pálpebras.
— Salvatore é um homem perigoso. Não aparece em lado nenhum, mas comanda mais do que se imagina. Tem uma filha doente. Precisa de um médico. Um que saiba calar a boca e fazer o que lhe mandam. — Fez uma pausa. — E eu preciso de alguém lá dentro. De alguém de confiança.
— Confiança? — Ji riu sem humor. — Ainda sabes o que isso significa?
— Sei. E por isso escolhi você. Porque sei que não és como eu.
O silêncio ficou entre os dois, pesado e amargo.
— O que queres de mim… é ilegal? — perguntou Ji, já conhecendo a resposta.
O pai não respondeu de imediato.
— O que quero de ti é simples: cuida da filha dele. Ganha o acesso. E quando te pedirem para confiar... confia em mim, uma vez na vida.
Ji olhou para o envelope. Dentro, o preço da dignidade. Ou talvez o valor da vida da mãe.
Ji mantinha o olhar fixo, como se quisesse furar a couraça daquele homem com os olhos. As palavras saíram duras, mas contidas.
— Por que eu? — deu um passo em frente, a voz carregada de raiva e incredulidade. — Você não é policial? Por que não envia um dos seus? Por que mete o seu próprio filho em algo tão perigoso?
O pai não se mexeu. O silêncio antes da resposta foi quase ofensivo.
— Porque nenhum dos meus tem acesso como tu.
— respondeu. — É um médico. Um bom médico. Discreto. Impecável. Consegues entrar onde nenhum agente entraria vivo.
Ji riu, mas era um riso curto, vazio.
— Então é isso? Me usar como isca? Como infiltrado?
— Usar você como solução. — respondeu, com frieza. — A única pessoa que Salvatore aceita dentro daquela casa… é alguém que ele próprio escolha. E ele pediu referências. Alguém de confiança, mas sem passado criminal. Alguém com cara limpa.
Ji sentiu o sangue a pulsar nas têmporas. A cabeça cheia. O coração dividido.
— E se eu disser que não?
O pai assentiu, lento.
— Leva a tua mãe para casa. Pagas o que conseguir. E ver ela definhar, dia após dia, até não reconhecer mais ninguém.
Ji fechou os olhos por um instante. Lá estava o peso da escolha. O tipo de escolha que nunca é justa, porque já vem envenenada de origem.
Quando voltou a abrir os olhos, a expressão tinha mudado.
— Uma condição. — falou.
O pai ergueu o sobrolho.
— Fala.
— Depois disto... desaparece da minha vida. De vez.
O pai encarou-o com olhos cinzentos, cansados, mas não respondeu.
Apenas estendeu o envelope e E Ji pegou nele.
— O que tenho que fazer e quanto vou ganhar?
Ji segurava o envelope, mas ainda não o tinha aberto. Olhou-o por um segundo, depois ergueu os olhos para o pai. A voz saiu fria e prática.
— O que tenho que fazer e quanto vou ganhar?
O pai não hesitou.
— Vai para Tróia. Será o médico particular da filha de Salvatore. Uma adolescente. Ninguém sabe exatamente o que ela tem e ninguém quer fazer demasiadas perguntas. Vai tratá-la, acompanhá-la, garantir que não morre e ficar calado.
Ji franziu ligeiramente a testa.
— Só isso?
— À superfície, sim. — o pai recostou-se na cadeira. — Mas vai observar. Ouvir. Anotar. E quando for preciso, vai me passar informações. Apenas o que for essencial.
— Informações? — Ji apertou o envelope com mais força. — Isto é espionagem, não medicina.
O pai ignorou a provocação.
— Não quero que faça perguntas. Só quero que sobreviva. Tu e ela. E que a tua mãe tenha a melhor hipótese possível.
Ji inspirou fundo, a mente a girar com tudo o que aquilo implicava.
— E quanto?
O pai deu um número.
Ji não respondeu de imediato. Era muito. Mais do que alguma vez ganhara num ano inteiro. Dinheiro suficiente para pagar a clínica e ainda ter margem para emergências.
Mas naquele instante, o valor parecia tão sujo quanto necessário.
— Quando parto?
— Amanhã. Às oito. Um carro vai buscar. Usa nome falso. Nada de documentos pessoais. É apenas o "doutor" agora.
Ji olhou para a pasta sobre a mesa. Depois, para o pai.
— E se eu morrer lá dentro?
O pai não hesitou.
— Então a tua mãe morre aqui. Se ganhar a confiança desse homem para ser o médico particular da filha dele, já conseguirá o dinheiro. Essa é a primeira meta. Assim que chegar, eles vão testar. Não vão dizer que é uma entrevista, mas é. — Fez uma pausa e apontou-lhe com o queixo. — Já começa com uma vantagem.
Ji franziu o sobrolho.
— Que vantagem?
— Você é asiático. — falou, sem rodeios. — De cara, vai chamar atenção. A filha dele… bem, dizem que ela não fala com ninguém. Mas interessou por você só pelas fotos que mostrámos. Isso já te dá entrada. O resto depende da tua capacidade de ficar calado e parecer confiável.
Ji baixou os olhos. A ideia de estar a ser usado como peça de xadrez fazia o estômago revirar.
— Já mostraram a minha cara a eles? — perguntou, com frieza.
— Claro. — respondeu o pai, como se fosse óbvio. — Tinha que parecer um profissional legítimo. E tu és. Só está a ser colocado onde podes fazer o que sabes e ajudar alguém no processo.
Ji respirou fundo, tentando manter a compostura.
— E se me perguntarem quem me indicou?
— Diz que foi recomendado por um intermediário. Que não conheces o nome. Que te ofereceram bem. E que aceitaste pelo dinheiro.
Ji ficou em silêncio por um longo momento. Depois, com voz controlada.
— Eu vou. Mas o que está a pedir de mim… Tem um preço mais alto do que esse envelope. Só espero que esteja preparado para pagá-lo.
O pai não respondeu. Apenas assentiu.
O carro chegou pontualmente às oito da manhã. Pretamente polido, vidros escurecidos, nenhum símbolo de marca visível. O motorista não disse uma palavra, apenas abriu a porta para Ji entrar. Dentro, o silêncio era absoluto, o ar-condicionado num frio cirúrgico.
Durante o caminho, Ji tentou não pensar demasiado. A estrada serpenteava ao longo da costa até que a paisagem começou a mudar. Areia branca, pinheiros altos, mar ao fundo. Tróia era um lugar de contrastes, paraíso para alguns, prisão dourada para outros. Ao longe, apareceu a propriedade.
Portões de ferro, com câmaras de vigilância em cada canto. Um código foi inserido e a estrutura abriu-se devagar, como se o próprio tempo estivesse a controlar o acesso. O carro avançou por um caminho ladeado de ciprestes, até parar diante de uma casa moderna, de linhas retas e materiais frios, betão, vidro, aço.
Ji saiu do carro com o coração acelerado, mas o rosto neutro. O olhar atento. Um homem esperava por ele à entrada: alto, vestia de preto, olhos escondidos por óculos escuros.
— Doutor? — perguntou, com sotaque indefinido.
Ji assentiu.
— Siga-me.
O interior da casa era ainda mais imponente. Minimalista, silencioso, com móveis que pareciam peças de museu. Câmaras nos cantos. Nenhuma fotografia nas paredes. Nenhuma memória visível.
Caminharam até uma sala ampla, onde uma mulher o esperava.
Cabelo castanho claro, preso num coque apertado. Postura rígida. Rosto sem expressão.
— Bem-vindo. Vai ser avaliado antes de qualquer contato com a paciente. Esta casa é protegida, e o senhor Salvatore exige discrição absoluta.
Ji manteve-se firme.
— O que implica essa avaliação?
— Nada físico. — respondeu ela. — Só queremos saber se consegue manter um segredo e sobreviver ao peso dele.
Ela sorriu de leve. Mas não era um sorriso acolhedor.
— Prepare-se. Estão à sua espera.
E foi levado para uma porta ao fundo do corredor. Por trás dela, tudo ia começar.
Foi levado até uma sala ampla, de paredes em tom de pedra fria, iluminada por luz natural que entrava por uma claraboia alta. O chão de mármore refletia discretamente as figuras ali presentes. Ao chegar, Ji parou por instinto.
Havia outros médicos. Cinco, no total. Todos de pé, lado a lado, como numa fileira militar. Homens e mulheres de várias idades, roupas discretas, rostos fechados. O silêncio entre eles era denso, desconfortável, ninguém ali queria fazer amigos.
Ji posicionou-se no fim da linha. Observou de relance os outros. Um tinha sotaque do Leste, percebia-se pelas feições. Outro, parecia já ter passado dos cinquenta, com postura impecável. A mulher mais à esquerda tinha um olhar clínico e uma pasta apertada ao peito como se contivesse mais que currículos.
Poucos minutos depois, a porta do fundo abriu-se.
Entraram dois homens. Um deles era o mesmo que o recebera, olhos cobertos por óculos escuros. O outro era diferente. Traje mais formal. Voz seca.
— Obrigado por virem. Esta não é uma entrevista tradicional. Aqui, não procuramos apenas competência. Procuramos lealdade. E silêncio.
Pausou, encarando cada um.
— Serão avaliados durante as próximas horas. Observaremos comportamentos, reações, decisões éticas e emocionais. Apenas um será escolhido para assumir a função. Os restantes... regressarão como chegaram.
Ji não disse nada. Apenas fixou o olhar à frente. Sabia que, ali, cada gesto seria interpretado.
O homem voltou-se para os guardas e fez um sinal. As portas abriram-se novamente.
— Sigam-nos.
E assim começou a primeira fase da seleção. Ji sentia o suor frio nas costas, o batimento do coração ritmado como um bisturi prestes a cortar.
Sabia que não podia falhar porque desta vez, o doente era a própria vida da mãe.
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