— Joyce?
— Sou eu, a própria — respondi, enquanto tirava um pedaço de bolacha do sutiã.
— Você foi aprovada. A localização está no link. O artista deseja descrição. Chegue amanhã. Tempo de estadia: indeterminado.
E foi isso. Sem nome. Sem foto. Sem nem um “traga casaco, faz frio”. Eu li aquela mensagem como quem lê um mapa do tesouro que pode ou não terminar com um rim a menos. Mas a promessa de pagamento alto... bom, essa parte me convenceu mais rápido do que eu gosto de admitir.
Fiz a mala em 15 minutos. Uma calça jeans, duas camisetas, três calcinhas, uma camisola com cara de "nem ligo pra você mas ligo sim", e meu vibrador carregado. Prioridades.
A van preta chegou antes do sol. E enquanto Seul ainda dormia, eu tava a caminho de um endereço afastado, escondido entre árvores e portões altos. E quer saber? Foi ali, no meio daquela estrada vazia, que bateu. Aquele sentimento. Aquele “talvez minha vida vá mudar hoje”. Ou talvez só minha paciência. Depende de quem tá do outro lado dessa porta.
Mas antes de chegar nela... deixa eu te contar um pouco de mim.
Eu nasci na merda. Literalmente. Em um hospital público, com luz piscando e uma médica que me chamou de “pirralha barulhenta” antes mesmo do meu primeiro choro. Meus pais sumiram antes mesmo que eu aprendesse a escrever “saudade”. Fui criada por rodízio — cada mês uma casa, cada casa uma regra, cada regra mais absurda que a anterior.
Descobri cedo que criança quieta some no canto. Então virei o centro. Barulhenta, dramática, exagerada. Era rir ou desaparecer. Escolhi rir. Às vezes, alto demais.
Fui expulsa de três escolas, duas igrejas e uma aula de pilates. Já trabalhei de babá, garçonete, modelo de pé (não recomendo), vendedora de lingerie e maquiadora de defunto. Sim. Eu sei deixar um cadáver digno de desfile. Cada um com seu talento.
Aos 26, peguei meu diploma de “foda-se” e decidi ir pra Coreia. Tinha uma amiga que já morava lá e me disse que brasileiros com disposição e bunda podiam se dar bem. Eu tinha as duas coisas. E mais: uma necessidade patológica de fugir da minha própria história.
Me reinventei. Me vendi como “house manager”. Um termo que soa chique, mas significa basicamente "moça que limpa, organiza e escuta drama de celebridade sem surtar". E, modéstia à parte, eu sou excelente nisso.
Até que veio essa mensagem. Essa proposta. Essa casa.
Quando o carro parou, eu quase ri. Uma mansão. Moderna. Isolada. Tão silenciosa que meu grito interior ecoou sozinho. Portão automático. Paisagismo de revista. E um caminho longo até a porta principal, como se a casa quisesse ter certeza de que você realmente queria entrar.
E eu queria? Talvez. Ou talvez eu só quisesse mais uma história pra contar.
Andei até a porta. O jardim era tão perfeito que dava vontade de deitar e esperar a vida melhorar sozinha. Mas eu tinha uma missão.
Levantei o queixo, ajeitei o top — que teimava em mostrar mais do que devia — e respirei fundo.
— Se der errado, pelo menos minha calcinha tá bonita — murmurei.
Levantei o dedo. Olhei para o céu. Suspirei.
E toquei a campainha.
Fim do capítulo.
Se quiser, posso seguir com o capítulo dois em seguida — onde Joyce finalmente conhece o morador da casa. Me avisa quando quiser!
Toquei a campainha com o dedo firme, daquele jeito que diz “cheguei e quero ser notada”. O botão era cromado, tão limpo que eu vi meu reflexo torto nele. Respirei fundo. Nada aconteceu por uns bons cinco segundos.
— Alô? — disse uma voz abafada. Era um interfone, camuflado numa daquelas colunas modernas que parecem coisa de filme futurista.
— Joyce. Nova funcionária. Vim pra arrumar a vida de alguém — falei, mastigando o “R” só pra parecer mais brasileira.
— Documento? — o segurança respondeu seco.
— Documento? Só se for minha identidade emocional instável. Brincadeira. Aqui está meu passaporte.
Esperei o barulho do portão automático. Ele abriu devagar, como se a casa ainda estivesse decidindo se queria me engolir ou não. E eu entrei, puxando minha mala de rodinhas que fazia um “toc toc toc” irritante na entrada de pedra polida.
A mansão era... cara. Aquele tipo de cara que não grita riqueza, mas sussurra com sotaque francês.
Vidros gigantes. Concreto escuro. Painéis de madeira que pareciam escovados à mão por monges silenciosos. Um jardim minimalista, com plantas que pareciam podadas com régua. E silêncio. Um silêncio tão sólido que dava vontade de pedir licença antes de tossir.
— É... chique — murmurei, tentando parecer blasé, mas por dentro eu tava pensando “eu nunca mais vou voltar pra kitnet”.
O segurança apareceu, um homem alto, de terno preto, cara de poucos amigos. Me mediu dos pés à cabeça com uma sobrancelha arqueada.
— Você que é a Joyce?
— Em carne, osso e cílios postiços. Muito prazer. — Estendi a mão com entusiasmo.
Ele não apertou. Só virou de costas.
— O patrão tá chegando. Vai te mostrar o quarto. Não mexe nas coisas até lá.
— Tudo bem, chefe. Só vou olhar. Com os olhos, juro.
Comecei a andar pela sala, absorvendo cada detalhe. À primeira vista, parecia impecável. Sofás em tons neutros. Mesa de centro com livros de arte que ninguém nunca abriu. Um perfume no ar — algo amadeirado, caro, quase arrogante.
Mas... aí meu olhar treinado entrou em ação.
Uma camada fina de poeira no canto do abajur. Fios soltos atrás do painel da TV, como intestinos expostos. A cortina da janela tinha um pequeno rasgo na costura.
— Aha! — sussurrei pra mim mesma. — Você finge que é perfeita, mas tá toda desorganizada por dentro. Igual eu.
— Você tá falando com a sala? — perguntou o segurança, seco.
— Tô. Ela começou primeiro. Mas tudo bem, já estamos fazendo amizade.
Ele bufou, claramente arrependido da existência de Joyce na casa dele.
— Você vai durar dois dias. Três se o chefe estiver ocupado demais pra notar você.
— Olha, se eu ganhasse uma moeda toda vez que alguém dissesse isso, eu já tinha comprado essa mansão.
E então, a porta se abriu.
O som dos passos ecoou pelo mármore. Lentos. Precisos. De quem não tem pressa porque o mundo espera.
E aí eu vi ele.
Yoongi.
Na primeira batida de olho, eu pensei: meu Deus, esse homem saiu direto de um romance dark academia com cheiro de whisky caro e solidão crônica.
Ele vestia preto. Tudo preto. Calça, camisa, casaco. Como se as cores tivessem medo dele. O cabelo escuro caía suavemente na testa. E os olhos… ah, os olhos. Frios, afiados, de quem calcula tudo e não gosta de ninguém.
Ele me olhou de cima a baixo. Eu senti. E se tivesse algo torto em mim, ele viu. Analisou minha roupa simples, meu sorriso largo, meu jeito de estar 100% deslocada naquele universo silencioso. Eu sorri ainda mais. Por desafio.
— Oi! Joyce. Nova funcionária. Vim salvar sua casa do caos oculto.
Ele não respondeu.
Apenas encarou.
— Ou… só limpar mesmo. Se preferir uma abordagem mais tradicional.
Nada.
Estendi a mão pra cumprimentá-lo. Ele hesitou. Eu lembrei.
— Ah! Aqui vocês abaixam a cabeça, né? — Abaixei a minha de um jeito todo torto, como quem bateu no próprio queixo tentando fazer reverência.
Ele ergueu uma sobrancelha. E finalmente disse algo.
— Você fala demais.
— É o que dizem. Mas também dizem que sou ótima com panos e dramas.
Silêncio.
Ele virou-se para o segurança.
— Mostre o quarto dela. Depois, o escritório. E não a deixe tocar em nada ainda.
E saiu. Assim, como se fosse fumaça fria.
Fiquei ali, com meu sorriso congelado, olhando pra ele sumir escada acima.
— Ele é sempre assim? — perguntei.
— Isso foi o mais simpático que ele foi em semanas — respondeu o segurança.
Suspirei.
— Vai ser uma longa temporada. Que Deus me ajude. E que minha calcinha continue bonita, só por precaução.
Puxei minha mala. Entrei de vez.
Cheguei em casa com aquela sensação incômoda no peito. O dia já tinha começado errado, e o trânsito só fez colocar mais lenha nessa fogueira invisível que insiste em arder nos dias em que eu só quero... silêncio.
Assim que atravessei o portão principal, percebi algo estranho. Tinha movimento demais pra uma casa que deveria estar vazia. Franzi a testa, as mãos enfiadas nos bolsos do sobretudo e o boné abaixado sobre os olhos. Preferia assim — menos gente, menos contato visual, menos conversa.
O segurança veio até mim com um semblante hesitante.
— Senhor Min... a nova funcionária chegou.
Parei no mesmo instante.
— Funcionária?
— A responsável pela limpeza. Foi contratada ontem pela agência, como solicitado. Ela chegou faz pouco. Está na sala principal.
Suspirei, irritado. Eu realmente tinha assinado esse contrato? Devia ter sido em algum momento de cansaço extremo. Provavelmente nem li direito. Tudo que eu queria era alguém que limpasse sem fazer barulho. Sem invadir meu espaço. Sem tentar puxar papo.
Subi os degraus da entrada sem pressa. A mansão — moderna, minimalista, sóbria — era o reflexo do que eu tentava manter dentro de mim: controle. Cada peça de arte no lugar. Tons neutros. Móveis retos. E, claro, tudo silencioso. Ou, pelo menos, era pra estar.
Assim que entrei, me deparei com ela.
Parada no meio da sala, como se já conhecesse cada canto do lugar. O cabelo preso de qualquer jeito, roupa casual, e um sorriso... grande demais.
Alto demais.
Vivo demais.
E isso já me incomodou.
Ela virou, e quando os olhos dela encontraram os meus, abriu um sorriso ainda maior.
— Meu Deus — murmurou, mais pra si. — Esse homem saiu direto de um livro de romance, só pode.
Revirei os olhos.
Ela veio até mim, rápida, estendendo a mão como se fosse me cumprimentar. Mas no meio do caminho, pareceu lembrar de algo e fez uma reverência desajeitada. Tentou misturar o cumprimento ocidental com o coreano e o resultado foi... um desastre. Só a encarei. Não estendi a mão. Não retribuí. Só deixei o silêncio falar por mim.
— Joyce — disse ela, sorrindo como se eu fosse uma velha amiga. — Sou a nova funcionária. Fui enviada pela agência pra cuidar da limpeza e organização. O senhor... você... quer dizer, eu já posso começar?
— Hm.
Virei as costas e subi as escadas.
— Seu quarto é o segundo à direita. Não mexe nas coisas do estúdio.
— Entendido, chefe.
A ironia no tom dela me fez cerrar os dentes. Que tipo de gente acha que é engraçada logo no primeiro contato? O pior: ela não parece saber quem eu sou. Quer dizer... ela mora na Coreia. Com certeza já ouviu falar de BTS. Mas aquele olhar despreocupado... não é comum.
Joguei o celular na cama e me sentei. Passei as mãos no rosto, tentando entender por que raios eu achei que contratar alguém assim seria uma boa ideia.
O celular vibrou.
Mensagem do Jin.
“E aí, vai dar pra passar aí mais tarde?”
Respondi sem rodeios.
“Tem uma funcionária nova aqui. Não é um bom momento.”
“Funcionária? Hummm. Ela é bonita?”
Suspirei.
“Ela é barulhenta.”
“Tipo você quando tenta cozinhar?”
Tive que conter um sorriso.
“Não confio nela. Parece estrangeira. Tem um jeito estranho. Muito falante. Muito viva.”
“Se ela for tão divertida assim quanto você descreveu, vou aí conhecer. Já tô curioso.”
Revirei os olhos e digitei com raiva.
“Nem invente.”
E desliguei o celular na cara dele.
Levantei e fui até a janela. O jardim estava mais bagunçado do que eu lembrava. Será que ela ia meter o bedelho ali também?
Fiquei observando por um tempo, pensando em tudo que eu tinha vivido nos últimos anos. Já tinham tentado me invadir. Já roubaram informação. Já fingiram ser quem não eram pra se aproximar. Quando você é artista, aprende a desconfiar até da sombra. Aprende a manter distância. Aprende a não dar abertura.
E ela? Ela entrou sorrindo. Falando. Bagunçando o ar da casa inteira com aquela energia descontrolada.
— No primeiro deslize — murmurei, encarando meu reflexo no vidro — eu deleto ela da minha casa.
A risada dela ecoou da sala, alta, clara, atravessando paredes como uma flecha certeira.
Fechei os olhos e respirei fundo.
— Isso vai ser um inferno.
Fim do capítulo.
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