A lua cheia pairava sobre a floresta como um olho silencioso, observando tudo sem piscar. O vento soprava fraco entre as árvores, fazendo as folhas sussurrarem segredos antigos. Era uma noite comum, ou pelo menos parecia.
Jennie caminhava distraída pela trilha estreita que dava nos fundos de sua casa, um velho costume quando queria pensar. Sua mente fervia. Dois meses haviam passado desde aquela noite, mas as lembranças ainda queimavam na pele como brasas vivas. O rosto de Gabriel, os gritos, o cheiro de terra molhada misturado ao sangue… tudo ainda estava ali, grudado nela.
Mas naquela noite, algo a incomodava mais que a saudade.
Ela ouviu.
Um som seco, agudo, algo entre o estalo de um galho e o arranhar de algo contra a árvore. Ela parou. Olhou em volta, apertando os olhos na escuridão. Não havia ninguém. Só o balançar das copas das árvores e o farfalhar constante do mato rasteiro.
— Alce, talvez. Ou um guaxinim — disse a si mesma, tentando acreditar.
Deu meia-volta para ir embora, mas então, o som veio de novo. Mais alto. Mais próximo. E desta vez, veio acompanhado de algo que gelou sua espinha.
— Vai embora de novo? Vai me abandonar… como fez antes?
A voz foi sussurrada, como se fosse parte do vento, mas estava clara, viva, e falava direto no seu ouvido, mesmo sem ninguém ali.
Jennie girou o corpo, o coração batendo como se fosse arrebentar sua caixa torácica. — Quem tá aí?! — gritou, a voz mais alta do que pretendia.
Nada respondeu.
Ela deu um passo para trás. Depois outro. E então virou-se para correr, mas seus pés pareciam afundar no solo. As árvores pareciam mais próximas, mais altas, como se quisessem se fechar ao seu redor.
— Isso não pode estar acontecendo de novo — sussurrou para si mesma.
As vozes voltaram, agora mais distantes, em diferentes tons, como um coral de almas perdidas. Algumas choravam. Outras riam. Mas uma se destacava, repetindo o mesmo lamento, a mesma acusação.
— Me deixou... Me deixou...
Jennie correu. Passos apressados, tropeçando nas raízes, ignorando os galhos que cortavam sua pele. A floresta parecia não ter fim, mesmo sendo tão próxima de casa. Ela já conhecia aquele caminho. Mas naquela noite, tudo parecia diferente. Vivo. Maldito.
O sussurro seguiu com ela. Às vezes ao lado, às vezes atrás. Uma presença constante, grudada à sua sombra.
Ela só parou quando viu as luzes da estrada. A civilização. A segurança.
Arfando, com o rosto molhado de suor e lágrimas, caiu de joelhos na grama do acostamento. Carros passavam ao longe, indiferentes ao inferno que existia a poucos metros da estrada.
Jennie olhou para trás. A floresta estava ali, quieta. Escura. Mas viva.
— Eu preciso acabar com isso — disse entre dentes.
Mas como se acaba com algo que não tem corpo, que não dorme, que só vive no abandono?
Ela sabia que não conseguiria respostas sozinha.
Foi até a delegacia da cidade. As paredes frias, a iluminação forte, os sons dos rádios e dos passos apressados a ancoraram no presente. Mas nada ali parecia real. Ela já estivera ali antes. Naquela mesma cadeira. Com as mesmas mãos trêmulas. Contando uma história que ninguém acreditava.
— Senhora Jennie, já dissemos, não encontramos nada naquela floresta. Nenhum vestígio. Nenhuma prova. — o oficial Menezes disse com um olhar cansado.
— Eu ouvi ele de novo. Hoje. Ele falou comigo — disse Jennie, encarando o policial. — E não era só ele... havia outros.
Menezes respirou fundo, tentando manter a compostura. Ele a via como uma vítima traumatizada. Nada mais. Mas ela sabia o que viu.
— A floresta está viva — ela sussurrou, mais para si do que para ele. — Ela tem fome.
O oficial não respondeu. Apenas anotou em seu caderno e a mandou para casa. Mais uma vez.
Mas Jennie não voltou para casa. Não naquela noite.
Ela pegou uma lanterna, seu casaco mais grosso e voltou à floresta.
Algo dentro dela havia mudado. O medo ainda existia, sim, mas era outro tipo de medo — um medo transformado em necessidade. Como uma febre que te obriga a ir até o fim, mesmo sabendo que pode morrer no processo.
Na entrada da trilha, ela acendeu a lanterna. A luz cortou a escuridão como uma lâmina, mas não a suficiente. O breu parecia engolir tudo à sua volta.
Deu o primeiro passo.
Cada folha que pisava parecia gritar. Cada galho estalado era um aviso. E a floresta, indiferente, a aceitava de volta como se esperasse por ela desde o início.
Jennie andou por longos minutos, talvez horas, até que o som voltou. Agora não era mais um sussurro distante. Era uma respiração. Funda. Irregular. Atrás dela.
Ela se virou. Nada.
Mas quando olhou novamente para a frente… viu.
Do outro lado da luz fraca da lanterna, uma silhueta humana. Parada. Olhando.
— Gabriel? — sussurrou.
A figura não respondeu. Deu apenas um passo à frente.
E Jennie, em vez de fugir… sorriu. Com lágrimas escorrendo.
— Eu sabia que você estava aqui…
A figura sorriu de volta, mas não era um sorriso humano. Era algo mais... ancestral. Como se a coisa que usava o rosto de Gabriel nem soubesse o que era sorrir, mas estivesse imitando.
O sussurro voltou. Não como palavras, mas como presença.
Jennie apagou a lanterna.
A floresta, então, se fechou ao seu redor.
E o verdadeiro fim… começou.
O céu estava limpo naquela tarde de outono, e o cheiro de folhas secas se misturava ao ar fresco da floresta. Jennie sorria ao lado de Gabriel, enquanto os dois caminhavam por uma trilha quase esquecida, guiados apenas pela memória e pela promessa de uma noite especial. Era o aniversário de dois anos de namoro — e, como tradição, decidiram acampar no mesmo local onde haviam passado seu primeiro verão juntos.
— Ainda tem certeza de que lembra o caminho? — Jennie perguntou, rindo ao ver Gabriel dar uma olhada hesitante ao redor.
— Confia em mim, eu sei onde é. A barraca ficava perto daquele pinheiro torto ali, lembra? — respondeu ele, apontando para uma árvore de aparência irregular que parecia curvada pela idade ou pelo peso dos segredos que guardava.
Chegaram à clareira pouco depois. Era um espaço aberto no meio das árvores, cercado por pedras e galhos, com o chão coberto de musgo e folhas secas. Um lugar calmo, quase mágico. O sol passava por entre os galhos altos, pintando o chão com manchas douradas que se moviam com o vento.
Armaram a barraca com risos, algumas discussões e muitas tentativas falhas. Depois de montar tudo, sentaram à beira da fogueira que Gabriel acendeu com dificuldade, assaram marshmallows e brindaram com refrigerante morno.
— A gente devia vir aqui todo ano. — Jennie disse, deitada sobre o cobertor estendido na grama, olhando o céu escurecer.
— Talvez a gente devesse morar aqui. Construir uma cabana. Largar tudo. Viver da terra. — Gabriel respondeu com um sorriso bobo.
— Você não sobreviveria um dia sem wi-fi — ela provocou, rindo.
Os dois se beijaram. Era paz. Era amor.
Mas então, como um corte no tecido da noite, o som veio. Um barulho estranho, agudo, como um lamento distante. Um choro abafado... algo entre dor e desespero. Os dois se entreolharam.
— O que foi isso? — Jennie perguntou, se sentando.
— Não sei… parece alguém... chorando? — Gabriel respondeu, franzindo a testa.
— Você acha que é um animal?
— Não sei. Mas parece... humano.
O som ecoou novamente, mais forte. Algo naquela voz os chamava. Não como um pedido de socorro, mas como uma convocação. Contra o bom senso, Gabriel pegou uma lanterna, e os dois seguiram o som.
A floresta parecia mais escura do que antes. As árvores, mais próximas. A terra, mais úmida. O choro se tornava mais alto, mais gutural, mais... errado.
— Gabriel, acho melhor voltarmos... — Jennie disse, hesitante.
— Só mais um pouco. Se for alguém ferido, a gente precisa ajudar.
Então, do nada, o som cessou. Por um momento, havia apenas silêncio. Um silêncio absoluto, pesado. Até que uma figura emergiu da escuridão.
Era humanoide... mas não era humano.
A pele era pálida, quase translúcida. Os olhos, negros como breu. Os movimentos, distorcidos. E sua boca... aberta em um grito que não fazia som, apenas dor.
E então, de repente, o som veio com força total.
— AHHHHHHHHH! — a criatura gritou, correndo em direção a eles com uma velocidade impossível.
— CORRE, JENNIE! — gritou Gabriel, puxando sua mão.
Eles correram pela floresta em desespero. As árvores se tornavam borrões. O ar parecia faltar. Mas a coisa estava atrás deles. Seus gritos faziam o mundo tremer.
Foi então que Jennie tropeçou. Um tropeço seco, pesado.
Ela caiu de joelhos. Gabriel iluminou o chão com a lanterna — e o que viu fez o sangue gelar.
Era um corpo.
Meio enterrado, podre, com o rosto contorcido num último suspiro. Olhos abertos, sem alma. Braços quebrados em ângulos impossíveis.
— LEVANTA, JENNIE! — Gabriel gritou, puxando-a à força.
Mas a criatura já estava perto. Muito perto.
Ele se colocou entre ela e a coisa. Tentou segurá-la, impedi-la, enfrentá-la — mas foi jogado longe como um boneco de pano. Jennie gritou, correu, chorando, sem olhar para trás.
— GABRIEL! — seu grito ecoou pela floresta.
Mas não houve resposta.
Ela correu até ver o asfalto. Caiu na estrada, exausta, coberta de lama e sangue.
Pouco tempo depois, chegou à delegacia da cidade. Tremia, soluçava, as palavras se atropelavam.
— Eu... a gente... estávamos na floresta... alguma coisa nos atacou...
O policial tentou acalmá-la, mas seus olhos revelavam o que ele não dizia: não acreditava. Mesmo assim, uma patrulha foi enviada. Vasculharam o local indicado, mas nada encontraram. Nem Gabriel. Nem a barraca. Nem sinais de ataque. Apenas folhas, galhos e o silêncio.
— Senhora, a senhora passou por um trauma. Talvez tenha imaginado... — foi tudo o que disseram.
Na manhã seguinte, Jennie voltou sozinha. A clareira estava vazia. Nada restava. Nenhum sinal de que alguém estivera ali.
Mas ela sabia o que viu. O que ouviu. O que perdeu.
E naquela noite, sozinha em casa, ela ouviu de novo.
O choro.
O mesmo som vindo da floresta. Toda noite, à mesma hora.
E ela sabia: Gabriel ainda estava lá.
Mas não como antes.
Jennie não dormia mais. Não de verdade. Quando conseguia fechar os olhos, era por minutos interrompidos por gritos. Sempre os mesmos. Sempre dele. O rosto de Gabriel surgia na escuridão com olhos vazios e mãos estendidas, pedindo ajuda, implorando para que ela voltasse. Mas quando ela tentava alcançá-lo, tudo se desfazia em gritos e sangue.
Dois meses haviam passado desde aquela noite. Dois meses desde que ela correu da floresta e o deixou para trás. E ainda assim, nada. Nenhuma pista. Nenhuma resposta. A polícia fez buscas, chamou voluntários, usou cães farejadores — e depois de uma semana, desistiram. “Desaparecido. Presumivelmente morto”, foi o que colocaram no relatório.
Mas Jennie sabia que ele não estava morto. Pelo menos, não como as pessoas imaginavam.
Todas as noites, à mesma hora, os gritos voltavam. E às vezes, sussurros. Vozes que falavam seu nome em tons diferentes. Alguns suplicavam. Outros acusavam.
“Você o abandonou.”
“Ele te esperava.”
“Agora é tarde.”
Jennie tentou seguir a vida. Tentou ignorar. Foi à terapia, aos cultos, às reuniões familiares. Mas nada silenciava os sons da floresta. Eles não vinham apenas da memória. Eram reais. A cada noite, mais claros. Mais próximos.
No início, achava que estava enlouquecendo. Mas então, começaram as coincidências.
As luzes piscavam sempre à mesma hora em que os sussurros apareciam. Objetos se moviam sozinhos. A moldura com a foto de Gabriel caía do mesmo lugar toda madrugada. O rádio ligava sozinho e tocava estática. E sempre que ela abria a janela, via a névoa cobrindo o quintal como se a floresta estivesse tentando se aproximar.
Foi quando ela decidiu voltar.
Não contou a ninguém. Sabia que todos achavam que ela precisava de descanso, não de mais floresta. Mas algo a puxava para lá. Uma parte dela ainda acreditava que Gabriel podia ser salvo. Ou ao menos que a verdade podia ser encontrada.
Ela saiu ao entardecer, com uma lanterna, uma mochila leve e o colar que Gabriel havia lhe dado no último aniversário. O céu estava cinza, pesado, e o vento soprava mais frio do que o normal. Quando colocou os pés na trilha, sentiu a pressão do lugar. Como se a própria floresta respirasse — lenta, densa, esperando.
A cada passo, os sons da cidade iam desaparecendo. A civilização se apagava atrás dela. E logo, restava apenas o som dos galhos, do mato, e da própria respiração.
Ela reconheceu os caminhos, mesmo sem nunca ter voltado desde a noite do ataque. Seu corpo lembrava. Cada árvore parecia conhecida, cada curva, uma cicatriz na memória.
Quando chegou à clareira onde haviam montado a barraca, o coração disparou.
Estava vazia.
Mas o chão… o chão parecia revirado, como se algo tivesse sido enterrado… ou desenterrado.
Jennie ajoelhou-se e tocou o solo. Estava úmido, mole, como carne viva. Um cheiro azedo subia da terra, e então ela ouviu.
— Jennie…
Era a voz dele.
Baixa. Fraca. Mas inconfundível.
Ela girou a lanterna, procurando em volta. Não havia ninguém.
— Gabriel? — ela sussurrou, com a voz embargada.
— Por que você me deixou…?
A voz agora vinha de todos os lados. E então, as sombras começaram a se mover.
Entre as árvores, figuras surgiam. Silhuetas. Algumas humanas. Outras… distorcidas. Nenhuma delas se aproximava. Apenas olhavam.
Jennie recuou, tremendo.
— Eu voltei. Eu voltei por você!
Uma figura surgiu no meio da clareira. Seus passos eram lentos, o corpo oscilava como se os ossos não estivessem firmes. Quando a luz da lanterna alcançou o rosto, ela gritou.
Era Gabriel.
Ou algo que usava o corpo dele.
A pele estava esbranquiçada, como se nunca mais tivesse visto sol. Os olhos, negros, sem reflexo. E o sorriso… torto, quebrado, como se tivesse sido costurado ali.
— Agora... você pode ficar comigo — ele disse, estendendo a mão.
Jennie deu um passo para trás. Mas as sombras atrás dela fecharam o caminho. A floresta não a deixaria sair de novo.
— Você me prometeu. Disse que nunca me deixaria.
Ela caiu de joelhos, chorando.
— Eu não sabia... Eu tentei voltar...
— Mas você não voltou — ele respondeu.
Gabriel se ajoelhou diante dela. A pele dele parecia vibrar, como se algo dentro quisesse sair. O colar em sua mão brilhou por um instante.
— Só existe uma saída agora — ele murmurou.
A floresta inteira pareceu prender o fôlego.
Jennie ergueu o olhar. Sabia o que precisava fazer.
E então, lentamente… ela apagou a lanterna.
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