...🅷 🅴 🅻 🅴 🅽...
Prólogo 🍀
A vida nos obriga a fazer escolhas que despedaçam a gente por dentro. E naquela noite, enquanto arrumava minhas coisas em silêncio, eu sabia que estava prestes a cometer o pior erro da minha vida.
A chuva tamborilava nas janelas do pequeno apartamento que eu dividia com Daniel. Estava dobrando minhas roupas, e as colocando rapidamente dentro da minha mala.
Meu telefone vibrou em cima da cômoda. Eu já sabia o que era. O médico. Outra internação, outra conta impossível de pagar. Minha mãe precisava de mim, e eu não podia fazer nada.
Foi então que ela apareceu. A mãe dele. Aquela mulher sempre fria, Impiedosa e que não gostava de mim nenhum pouco. Ela queria alguém melhor para o filho, alguém rica e com classe.
Ela me ofereceu a salvação que eu tanto precisava — um cheque. Uma quantia absurda de dinheiro. Dinheiro suficiente para pagar a clínica, os tratamentos, dar dignidade à minha mãe.
Mas o preço era alto demais: eu precisava deixar Daniel. Sumir da vida dele sem explicações, sem despedidas. Deixá-lo acreditar que eu nunca o amei.
Aceitei.
Aceitei porque amava minha mãe. Aceitei porque amava Daniel o bastante para não arrastá-lo ainda mais para o buraco comigo. Aceitei porque não vi outra saída.
Fechei a mala com as mãos trêmulas, o coração latejando dentro do peito como se fosse explodir a qualquer segundo.
Foi então que ouvi a porta se abrir. Meu corpo inteiro congelou.
Daniel entrou, trazendo um buquê de flores na mão e um sorriso tímido no rosto. O cheiro adocicado das flores invadiu o ambiente. Eu não consegui me mover. Apenas o observei, como se estivesse fora do meu próprio corpo.
Na outra mão uma caixa de veludo preto.
"Hel, amor..." — ele disse, se aproximando.
Seu sorriso era tão sincero, tão cheio de esperança que meu peito se apertou de dor.
— "Eu sei que a gente não tem muita coisa. Eu sei que é difícil. Mas eu quero passar o resto da vida tentando fazer você feliz."
Antes que eu pudesse reagir, ele se ajoelhou na minha frente, e meu mundo desabou.
Daniel abriu a caixinha, revelando um anel simples, mas tão cheio de amor que eu senti minhas pernas fraquejarem.
— "Quer casar comigo?" — ele perguntou, a voz embargada de emoção. — Bom, eu não tenho um lugar melhor, não tenho dinheiro bastante para dar o que você merece. Não no momento, mas prometo que estou cuidando disso, eu juro que darei tudo a você.
Fechei os olhos por um segundo, tentando conter o choro que ameaçava me trair. Era agora. Eu tinha que ser cruel, eu tinha que feri-lo. Era a única maneira de deixá-lo livre.
Respirei fundo. Fingi uma segurança que eu não sentia.
— "Eu jamais me casaria com um pobretão como você, Daniel." — As palavras saíram cortantes, frias, me dilacerando por dentro. — Olha pra você. Não tem nada, nunca vai ter nada. Eu não vou afundar minha vida me amarrando a um pobre coitado, que não pode me dar nada.
O sorriso dele morreu ali mesmo, diante dos meus olhos. A esperança desapareceu, como uma vela sendo apagada pelo vento.
— "Helen... não faz isso — ele sussurrou, os olhos marejados pelas lágrimas — Eu vou conseguir, eu estou fazendo de tudo meu amor, para te dar uma vida melhor, eu ...
Eu ri. Uma risada vazia, amarga, que soou horrível até para mim.
— "Você é patético, Daniel. Eu mereço mais, eu vou conseguir, mas sem você.
Ele continuou ajoelhado, imóvel, como se ainda esperasse que aquilo fosse uma piada de mau gosto. Mas eu não podia hesitar.
Peguei minha mala e passei por ele sem olhar para trás. Se eu olhasse... eu nunca conseguiria ir embora.
Quando a porta se fechou atrás de mim, eu senti como se meu coração tivesse ficado lá dentro, preso para sempre. As lágrimas vieram com força assim que desci as escadas. Mas eu continuei andando.
Vi, pelo canto dos olhos, quando ele abriu a porta, desceu as escadas e veio atrás de mim.
— "HELEN!" — ele gritou — "Helen, por favor!"
Meus passos aceleraram.
Não podia parar. Se eu olhasse para ele agora, tudo estaria perdido.
— "Helen, me diz o que eu fiz de errado! Me diz.... Eu te amo!" — ele insistia, a voz quebrando no meio do choro.
Cada palavra dele era como uma lâmina rasgando minha pele. Mas eu continuei andando, lutando contra a vontade desesperada de voltar, de abraçá-lo, de dizer toda a verdade. Mas eu não podia.
Tirei o celular do bolso e disquei um número que eu conhecia de cor.
— Leon, pode vir me buscar. Estou aqui na frente do café 42, lembra? — minha voz saiu baixa, sufocada.
Leon era o único amigo que eu ainda mantinha desde a época da faculdade. Sempre foi uma presença leal na minha vida, mesmo quando todo o resto desmoronava. Hoje, ele tinha uma empresa de semi-joias muito respeitada na cidade. Um homem bem-sucedido, gentil, e mais importante: alguém em quem eu podia confiar.
Minutos depois, o carro de Leon encostou na calçada. Ele saltou rapidamente, abriu a porta do passageiro e estendeu a mão para mim.
Sem dizer uma palavra, apenas balancei a cabeça em agradecimento e entrei no carro.
O olhar de Leon era compreensivo, mas também carregado de perguntas não feitas.
Quando a porta se fechou, olhei pelo retrovisor e vi Daniel parado no meio da rua, perdido, chorando como uma criança, enquanto suas mãos estavam em seu peito.
O carro arrancou.
E eu vi, pela última vez naquela noite, o homem que eu amava ficando para trás, vendo-me partir sem entender o motivo. E foi assim que eu quebrei o coração de Daniel... e o meu também.
🅿🅴🆁🆂🅾🅽🅰🅶🅴🅽🆂
...𝐷 𝐴 𝑁 𝐼 𝐸 𝐿...
...𝐻 𝐸 𝐿 𝐸 𝑁...
Cinco anos haviam se passado desde aquela noite que mudou tudo na minha vida.
Cinco anos desde que eu descobri o que era ser deixado para trás, abandonado no chão, sem entender por quê.
Às vezes, o tempo parecia acelerar e desacelerar dentro da minha cabeça. Algumas lembranças vinham nítidas como fotografias, outras pareciam distantes, embaçadas, como se pertencessem a outra vida. Mas o que Helen fez, isso nunca desbotou. Estava cravado em mim, como uma tatuagem que eu não escolhi.
Mas eu aprendi. Aprendi que o amor não enche a barriga, não paga contas, não compra respeito.
Aprendi que o mundo não tem pena de quem fica ajoelhado. E aprendi que a dor, por mais sufocante que seja, pode ser usada como combustível.
Hoje, sentado atrás da minha mesa de mogno polido, no último andar do prédio da Moreau’s Jewels, olhando para a cidade através da parede de vidro, eu sabia: eu venci. Venci com dignidade e dei uma vida melhor a mim e a minha mãe, Elizabeth.
Meu nome era pronunciado com respeito nos corredores empresariais, temido nas reuniões de negócios, invejado em manchetes de revistas.
De Daniel Azevedo, um homem sem futuro, eu me tornei Daniel Moreau, o CEO que ergueu um império a partir da humilhação.
Adotei o sobrenome do meu avô francês, resgatando o sangue nobre que corria nas veias e que, durante muito tempo, eu neguei por vergonha.
Não mais. Hoje, esse nome estampava contratos milionários, desfiles de joias exclusivas e capas de revistas.
De um homem pobre e quebrado, virei um dos empresários mais respeitados do mercado de luxo, conhecido em todos os cantos onde a riqueza dita as regras. Mas no fundo, a verdade era crua: tudo que construí, construí para provar que ela estava errada. Que eu não era um pobretão, que eu era capaz.
Me inclinei para frente, apoiando os antebraços sobre a mesa de mogno que mandara fazer sob medida. Cada canto daquela sala era um lembrete do caminho que percorri. As paredes de vidro ofereciam uma visão privilegiada de Nova York, a cidade que nunca dormia, mas que ajoelhava diante de quem sabia vencer.
Sobre a mesa, uma pilha de currículos esperava pela minha decisão. Dez candidatas para a vaga de designer de joias. O projeto era especial. A nova coleção que marcaria os dez anos da Moreau's Jewels precisava de peças que carregassem não apenas beleza, mas história e alma.
Peguei o primeiro currículo e comecei a folhear.
Experiência mediana. Trabalhos corretos, mas sem brilho. Deixei-o de lado com indiferença.
O segundo, o terceiro... Mais do mesmo.
Passei o quarto currículo, sem entusiasmo. Apenas outra profissional que fazia o básico para sobreviver. O quinto, técnico, frio, sem alma.
Estava começando a me irritar. O tempo que eu tinha era precioso demais para ser desperdiçado com mediocridade. Então, o sexto currículo caiu nas minhas mãos. Eu ia folheá-lo como os outros, sem qualquer expectativa, quando vi o nome.
Helen Dupont.
Por um momento, minhas mãos congelaram no ar.
Meu peito deu um salto, um soco inesperado que me tirou o fôlego. Levantei o olhar, encarando o horizonte dourado da cidade, tentando entender se era apenas uma coincidência cruel ou mais uma brincadeira suja do destino.
Voltei a olhar para o papel. E lá estava. A foto anexada no canto da folha, discreta, quase tímida.
Mas eu reconheceria aquele rosto em qualquer lugar do mundo. Helen.
O mesmo cabelo castanho, agora mais curto, talvez para parecer mais forte. Os mesmos olhos grandes, que já foram faróis nos meus dias escuros. A mesma boca, que um dia prometeu amor eterno, e depois cuspiu veneno.
O currículo tremia levemente nas minhas mãos, mas eu não permiti que a emoção tomasse conta.
Não mais.
Ela estava ali. Candidatando-se para trabalhar na minha empresa, sem ideia de quem estava do outro lado.
Minhas mãos fecharam o currículo com firmeza, como se pudesse esmagar o passado com a força dos dedos.
Um sorriso amargo e frio curvou meus lábios.
— Muito bem — murmurei para mim mesmo, sentindo o sangue pulsar forte nas têmporas. — Parece que o destino ainda sabe brincar comigo.
Peguei o telefone, apertando o botão que ligava diretamente para minha assistente pessoal, Clara.
— Senhor Moreau? — ela atendeu imediatamente, sempre eficiente.
— A candidata Helen Dupont. Contratada — ordenei, sem espaço para questionamentos. Minha voz saiu firme, controlada, como se não carregasse o peso dos anos. — Quero que informe a ela que foi escolhida pela diretoria para um projeto especial. Nada de entrevistas. Quero ela aqui amanhã, às nove da manhã.
— Perfeitamente, senhor.
Fechei os olhos por um instante, respirando fundo. O sabor da vingança era quente e amargo na boca.
Mas eu ainda não tinha terminado.
— Diga também que ela deve criar três modelos exclusivos de alianças de casamento. Peças únicas, criativas. As mais bonitas que ela puder conceber. É para o meu casamento, por isso preciso que seja o mais bonito possível. Certifique-se de dizer isso a ela. — Fiz uma pausa. — E as peças devem ser apresentadas pessoalmente na reunião geral com a diretoria — acrescentei. — Quero vê-la se apresentando. Explicando cada curva, cada detalhe. Direto para mim.
— Sim, senhor — Clara respondeu, profissional como sempre.
Desliguei sem esperar mais.
Fiquei ali, em silêncio, olhando para a cidade, através da grande janela de vidro.
Ela achou que tinha acabado comigo. Que podia me jogar fora como um pedaço de papel usado e seguir em frente. Mas agora ela voltaria para mim. Sem nem ao menos saber.
E quando estivesse diante de mim, apresentando as alianças que representariam a união de duas almas — a minha e a de outra mulher —, talvez ela entendesse. Talvez, finalmente, sentisse na pele o gosto amargo da perda.
O celular vibrou sobre a mesa, interrompendo meus pensamentos.
Uma mensagem.
Isadora: "Estou ansiosa para o jantar de hoje, meu amor. Mal posso esperar para te ver. Fui na casa de sua mãe hoje, e levei um chárzinho, já que ela não estava bem."
Sorri para o aparelho, mas o sorriso não alcançou meus olhos.
Isadora era linda, elegante, tudo que qualquer homem poderia desejar. E, ainda assim, uma parte de mim continuava presa a um passado que eu jurava ter deixado para trás.
Guardei o celular no bolso do paletó e me levantei, ajeitando o terno escuro no corpo.
Amanhã, Helen daria o primeiro passo para dentro do meu mundo. Um mundo que eu construí sem ela. E dessa vez, seria ela quem sentiria o gosto amargo de ser deixada para trás.
Cinco anos.
Cento e oitenta e dois domingos olhando para a mesma parede, tentando entender como a vida podia mudar tanto de uma hora para outra.
Quando deixei Daniel naquela noite, meu mundo desabou junto com o dele. Ele só não sabia que, enquanto eu o deixava de pé no meio da estrada, eu mesma desmoronava por dentro.
Durante todos esses anos, a dor nunca me deixou completamente. Mas eu não tive o luxo de me permitir fraquejar.
Minha mãe precisava de mim. Ela ainda precisa.
O câncer, silencioso e cruel, não deu trégua.
Depois da primeira cirurgia, vieram os tratamentos intermináveis, os altos e baixos, os momentos de esperança misturados com medo. As contas médicas se acumulavam como tijolos construindo uma muralha intransponível.
O dinheiro que recebi da mãe do Daniel, embora sujo de culpa, salvou a vida dela naquela época. E eu carreguei sozinha o peso de cada centavo.
Me vi obrigada a abrir mão de sonhos, de estabilidade, até mesmo de dignidade em certos momentos.
Trabalhei como vendedora, atendente de cafeteria, assistente de loja de departamento... tudo para pagar a clínica onde minha mãe ainda luta com uma força que me inspira e me parte ao meio todos os dias.
Mas no meio desse caos, uma parte de mim se recusou a morrer.
O amor por desenhar sempre esteve comigo, desde pequena, quando rabiscava cadernos escolares com anéis, brincos e colares que eu inventava. Era meu refúgio. Meu esconderijo secreto quando o mundo lá fora parecia grande demais.
Com o tempo — nas poucas horas livres que tinha entre um emprego e outro — comecei a estudar.
Fiz cursos online gratuitos de design de joias, assisti a vídeos, li livros emprestados de bibliotecas públicas. Treinava até tarde da noite, caindo de sono sobre esboços inacabados.
E foi assim, no meio de noites e dias exaustivos, que me tornei designer de joias.
Nada renomado, nada que me colocasse nas vitrines da fama. Mas suficiente para ter orgulho de cada linha traçada, de cada metal imaginado, de cada pedra lapidada no papel.
Quando senti que estava pronta, montei meu portfólio com muito cuidado. Escolhi os melhores desenhos, criei apresentações simples, mas feitas com paixão. E comecei a enviar currículos. Um a um. Empresa por empresa. Cidade por cidade.
Na maioria das vezes, nem resposta eu recebia. Em outras, um breve e polido "agradecemos seu interesse, mas no momento escolhemos outro candidato".
A esperança foi se tornando pequena, frágil, como uma chama ameaçada pelo vento. Mas eu continuei tentando. Porque, se havia algo que eu aprendera nesses anos, era que desistir nunca seria uma opção.
Até que, numa tarde qualquer, enquanto terminava de alimentar a minha mãe no quarto da clínica, o telefone tocou. Peguei o aparelho com uma mão, equilibrando tudo com dificuldade.
— Alô?
— Senhorita Dupont? — a voz era firme, profissional.
— Sim, sou eu.
— Falo da Moreau's Jewels. Informamos que seu currículo foi selecionado para um projeto especial. Sua presença é requerida na sede principal amanhã às nove horas. Mais detalhes serão fornecidos pelo seu e-mail.
Fiquei muda por alguns segundos, tentando absorver aquelas palavras. A Moreau’s Jewels. Uma das maiores empresas de joias do mundo.
Eu quase deixei o telefone cair.
Consegui balbuciar um "muito obrigada" e desliguei com a mão trêmula.
Sentei na beira da cama da minha mãe, o telefone ainda apertado contra o peito.
— Conseguimos, mamãe — sussurrei, os olhos marejando. — Conseguimos...
Ela sorriu fraco para mim, com aquele olhar cansado, mas cheio de orgulho, que me fazia querer vencer o mundo inteiro.
...🌸🌸🌸🌸🌸🌸...
Agora, sentada na pequena mesa improvisada do meu apartamento — um estúdio simples, com paredes descascadas e um cheiro constante de mofo —, eu trabalhava nos três modelos de alianças de casamento que a empresa solicitou por e-mail.
Três. Três oportunidades para mostrar do que era capaz.
Espalhei meus lápis, papéis e amostras ao redor.
Olhava para a folha em branco e tentava imaginar a história de quem usaria aquelas alianças.
Diziam que eram para o CEO da empresa.
Um casamento importante. Um símbolo eterno.
Queria que minhas peças carregassem mais do que beleza. Queria que tivessem alma.
A primeira aliança desenhei pensando na força. Linhas marcantes, ousadas, com detalhes geométricos gravados no ouro branco.
Era uma aliança que dizia: "Somos fortes juntos. Somos inquebráveis."
A segunda, mais delicada, desenhei para o amor. Ouro rosa, detalhes sutis de pequenos diamantes lapidados como gotas de chuva ao redor da peça.
Queria que ela sussurrasse promessas em silêncio. Que representasse a ternura escondida sob a dureza da vida.
A terceira... A terceira fiz para a eternidade.
Um anel de platina pura, simples e ao mesmo tempo imponente. Sem pedras, sem brilhos exagerados. Apenas a pureza do metal perfeito, eterno.
Enquanto traçava as últimas linhas, senti algo estranho no peito. Como se, de alguma forma, cada uma daquelas alianças carregasse também a história que eu nunca vivi. A história que sonhei um dia. De casar com Daniel, de construir uma vida ao lado dele, de ser feliz sem medo. Mas os sonhos, como as joias, exigem sacrifícios para serem lapidados. E o meu se desfez antes mesmo de começar.
Olhei para o relógio. Já passava da meia-noite. Fechei os olhos por um momento, deixando o silêncio do quarto me envolver.
Amanhã eu entregaria aqueles desenhos.
Amanhã, uma nova chance se abriria.
Amanhã, quem sabe, a vida começasse a mudar.
Não sabia quem era o CEO que se casaria.
Não sabia para quem eu desenhava. Mas sabia que, dessa vez, não ia falhar.
Peguei os esboços prontos, revisei cada traço com olhos atentos. Meu coração batia forte, misturando ansiedade, medo e esperança. Guardei tudo com cuidado na pasta preta, coloquei o material dentro da mochila e me levantei.
Caminhei até a pequena foto emoldurada da minha mãe sorrindo, ainda jovem e cheia de vida, e beijei a imagem.
— Por você, mamãe. Sempre.
Apaguei a luz do quarto, respirando fundo antes de me deitar.
O restaurante escolhido por Isadora era um dos mais sofisticados de Manhattan.
Uma sala reservada no último andar, com paredes de vidro que permitiam ver toda a cidade iluminada como um tapete de estrelas. A música ambiente era baixa, elegante, o tipo de trilha sonora que não perturbava, mas marca presença.
Garçons em trajes impecáveis deslizavam de mesa em mesa, servindo vinhos caros e pratos de nomes tão refinados que até soavam ridículos para quem sabia o que era passar fome.
Sentei-me à mesa pontualmente às oito, como combinado.
Meu terno sob medida parecia fazer parte de mim agora. O relógio de ouro discreto no pulso brilhava sob a luz suave do salão. Tudo em mim gritava poder e controle.
Vi Isadora entrando.
Ela estava linda. Vestia um vestido preto longo que se moldava perfeitamente ao corpo esguio. Cabelos presos em um coque elegante, maquiagem sutil que realçava a beleza natural.
Ela caminhou até mim com a graça de quem sempre soube pertencer a lugares assim.
Sorri, o sorriso treinado que eu sabia dar nessas ocasiões, e me levantei para beijar sua bochecha.
— Está deslumbrante — disse, puxando a cadeira para ela.
— E você, como sempre, irresistível — respondeu Isadora, piscando de forma encantadora. — Um namorado perfeito.
Sentamo-nos. Um garçom se aproximou para anotar os pedidos, e logo tínhamos duas taças de vinho tinto diante de nós.
Isadora era boa companhia. Conversava com inteligência, sabia os assuntos certos, fazia as perguntas corretas. Falou sobre a nova galeria de arte que estava ajudando a inaugurar, sobre a viagem que planejava para o sul da França no verão, sobre amigos em comum do círculo social que agora fazíamos parte.
Eu a ouvia, participava da conversa, mas parte de mim parecia sempre distante.
Era estranho.
Ela tinha tudo o que qualquer homem desejaria. Beleza, educação, ambição. Era o tipo de mulher que eu precisava ao meu lado. A parceira perfeita para eventos, para construir uma imagem impecável. Mas não tocava a parte de mim que, secretamente, permanecia intocada.
Brindei com ela quando o vinho chegou, e sorri para suas histórias engraçadas, seus comentários afiados sobre o mundo das aparências.
O jantar chegou.
Pedi um filé alto, malpassado, o mesmo de sempre. Isadora optou por uma massa artesanal com frutos do mar.
A conversa continuou fluindo naturalmente.
Ela comentou sobre nosso casamento.
— Estive pensando — disse, girando a taça de vinho entre os dedos finos —, talvez em nosso casamento, pudéssemos fazer algo mais discreto. Nada muito chamativo. Apenas algo elegante, para amigos e familiares próximos. O que acha? Falei com sua mãe essa manhã, e ela concordou, ela disse que nos apoia em tudo, você sabe, ela me adora.
A palavra "casamento" pareceu ecoar dentro da minha cabeça, como um sino distante.
Assenti com calma.
— Me parece perfeito.
Mentira.
Nada parecia perfeito.
Nada parecia certo.
Mas o que mais havia para fazer?
Eu não era mais um homem para correr atrás de sonhos tolos. O mundo real exigia decisões práticas. Um casamento com Isadora consolidaria ainda mais minha posição. Seríamos o casal perfeito nos olhos da sociedade.
Ela sorriu satisfeita com minha resposta e esticou a mão sobre a mesa, tocando a minha. O toque era cálido, macio. Eu o aceitei.
Durante o jantar, por um breve momento, me peguei pensando em Helen.
Me perguntei se ela já tinha se casado com aquele cara, que ela havia ido embora. Se ele segurava a mão dela em noites como essa, se ela sorria para ele como sorria para mim, quando ainda acreditávamos que o amor podia ser suficiente.
Afasto esses pensamentos como se fossem mosquitos irritantes.
Helen era passado.
Isadora era o presente.
E o futuro? Bem... o futuro seria construído com escolhas conscientes, não com impulsos.
Enquanto cortava meu filé, ouvi Isadora comentando sobre o anel de noivado.
— Estive pensando também sobre o anel — disse ela, casualmente. — Sei que você tem toda uma rede de designers maravilhosos na Moreau’s. Talvez devêssemos pedir que criassem algo único para nós.
Sorri de leve.
— Já está providenciado.
E estava.
Helen estava desenhando os modelos naquele exato momento, sem ter a menor ideia para quem eram. A ironia disso era quase poética. O mesmo amor que ela desprezou... agora seria celebrado em alianças criadas pelas próprias mãos dela. Meu estômago revirou discretamente com o pensamento, mas mantive a expressão inalterada.
— Nossa amor, você é maravilhoso. Pensa em tudo e resolve com rapidez. — disse ela, com um sorriso tranquilo.
— Sempre!
A sobremesa foi servida.
Isadora escolheu um crème brûlée, eu preferi apenas um café forte.
Conversamos mais um pouco sobre viagens, sobre os negócios, sobre a recepção que planejaríamos. Cada palavra, cada sorriso, cada gesto... tudo tão impecável que parecia ensaiado.
Quando terminamos, paguei a conta e depois levantei-me para puxar a cadeira dela. Acompanhei-a até o elevador particular que nos levaria ao saguão.
No caminho, ela entrelaçou seu braço no meu.
— Estou feliz — sussurrou. — Muito feliz. E sei que faremos grandes coisas juntos.
Olhei para ela.
Tão segura.
Tão certa de nós.
Destribui um beijo leve em sua testa.
— Também estou, Isadora — minto.
E uma parte de mim queria acreditar nisso, de verdade.
Entramos no carro que nos aguardava.
Durante o trajeto, Isadora recostou a cabeça no meu ombro e adormeceu suavemente.
Fiquei olhando pela janela.
As luzes da cidade passavam depressa, como borrões dourados. Pensei em tudo que havia conquistado. Pensei no homem ajoelhado com uma caixinha de alianças nas mãos. Pensei no homem frio que eu havia me tornado.
Quando chegamos, ajudei Isadora a sair do carro, acompanhei-a até a porta de seu prédio, e me despedi com um beijo breve na bochecha. Estamos juntos há um ano, e em nenhum momento tive coragem de tocá-la intimamente.
— Te ligo amanhã — prometi.
Ela sorriu, meio sonolenta.
— Vou esperar. Boa noite! — entrou.
Fiquei parado por um momento, encarando a porta fechada.
Depois me virei e entrei novamente no carro.
— Para casa, senhor Moreau? — perguntou o motorista.
— Para casa — confirmei.
O carro arrancou, silencioso.
Encostei a cabeça no banco de couro e fechei os olhos.
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