O Fim e o Recomeço
A chuva caía pesada, como se o céu lamentasse pelo destino de Kael. O som dos carros, dos gritos e das sirenes se tornava cada vez mais distante, como se o mundo estivesse se apagando pouco a pouco. Ele sentia o frio do asfalto, o gosto metálico do sangue em sua boca e, com os olhos entreabertos, observava as luzes da cidade desaparecerem.
"É assim que termina?" pensou. "Sem aviso, sem despedida..."
Kael Noctharion, 17 anos, estudante comum do ensino médio. Nenhum talento especial, nenhuma grande ambição. Um jovem qualquer em meio à multidão. Sua vida foi interrompida de forma trágica ao tentar salvar uma criança que corria para a rua. Um ato de coragem… ou de loucura.
A dor desapareceu de repente. O frio também. Tudo ficou escuro. Mas não era o fim.
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Kael acordou com um susto, ofegante. A primeira coisa que notou foi o teto — alto, ornamentado, com entalhes dourados e símbolos que ele nunca tinha visto antes. Havia cortinas vermelhas pesadas ao redor de uma cama enorme, tão macia que parecia engolir seu corpo.
"Eu… estou vivo?"
Ele olhou para suas mãos. Estavam menores, mais pálidas. Seu corpo… não era o mesmo. Levantou-se cambaleando e foi até o espelho ao lado da lareira. O reflexo o encarou com olhos cinzentos intensos e cabelo preto como a noite. O rosto era nobre, elegante… e completamente desconhecido.
Antes que pudesse processar, uma batida suave na porta o interrompeu.
— Jovem mestre Kael, está acordado? — perguntou uma voz feminina.
"Mestre Kael…?"
A porta se abriu lentamente, revelando uma mulher de vestes formais. Seus olhos brilharam de alívio ao vê-lo de pé.
— Graças aos deuses… o herdeiro da Casa Noctharion está salvo!
Kael ainda tentava entender. A mulher aproximou-se, trouxe uma bandeja com chá e o ajudou a sentar. Enquanto isso, ele observava ao redor. Os móveis eram feitos de madeira escura e decorados com prata. Tudo ali exalava luxo, mas também um ar antigo, sombrio e solene.
— Onde estou? — murmurou.
— Nos domínios da Casa Noctharion, meu jovem. No castelo de sua família, em Thalgror.
Thalgror. Um nome que ele jamais ouvira antes. E, ainda assim, algo dentro de si sussurrou… familiar.
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Aos poucos, Kael começou a entender a situação. Por algum motivo inexplicável, havia reencarnado. Seu novo corpo era o de Kael Noctharion, único filho de Lorde Alaric Noctharion e Lady Seraphine. Uma família antiga, envolta em lendas e mistérios, que governava uma vasta região nas terras sombrias do Norte.
Os Noctharion não eram apenas nobres. Eram temidos.
Reverenciados por sua linhagem ancestral, diziam que o sangue da família carregava uma herança mágica esquecida: a necromancia. Por séculos, a Casa Noctharion viveu à sombra do Império de Eldros, mantendo distância da capital, acumulando conhecimento proibido e selando pactos antigos. Enquanto outras casas buscavam glória em batalhas, os Noctharion buscavam poder na morte.
Lorde Alaric era um homem severo e imponente. Pouco se sabia sobre seus feitos, mas rumores o cercavam como neblina: que ele havia ressuscitado soldados em guerras antigas; que sua presença fazia os mortos sussurrarem nos cemitérios; que ele conversava com entidades esquecidas da própria morte. Lady Seraphine, por sua vez, era vista raramente. Diziam que sua beleza era etérea e sua mente afiada como lâmina de prata.
Kael, agora ocupando o corpo do filho desse casal enigmático, sentia uma pressão esmagadora. Não apenas precisava entender o novo mundo, mas também corresponder às expectativas de um nome carregado de peso e segredos.
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Nos dias que se seguiram, Kael passou a ser instruído por tutores. Ele fingia compreender as lições, embora tudo fosse estranho. História de guerras entre reinos, magias elementares, artefatos perdidos e... necromancia. Sempre que o assunto surgia, os professores ficavam tensos, como se estivessem pisando em gelo fino. Era proibido falar abertamente sobre isso, mesmo dentro do castelo.
Mas Kael sentia. À noite, em seus sonhos, ele ouvia vozes. Sussurros vindos do além. Ecos de algo que ele não conseguia entender completamente. Havia memórias enterradas em seu corpo. Sentimentos que não eram seus, mas agora faziam parte dele.
Em uma dessas noites, levantou-se da cama, guiado por uma presença invisível. Cruzou os corredores silenciosos do castelo, passou por tapeçarias antigas e desceu até o santuário da família — uma cripta sob a biblioteca.
Ali, entre túmulos de pedra, ele viu inscrições em uma língua esquecida. Quando tocou em uma delas, uma onda de energia percorreu seu braço. Os olhos brilharam brevemente em azul pálido. E então, uma voz ecoou dentro de sua mente:
"O herdeiro despertou. O legado das sombras chama por ti."
Kael recuou, ofegante. Seus dedos tremiam. Mas no fundo… ele sabia. Isso era apenas o começo.
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No dia seguinte, Lorde Alaric convocou o filho para um encontro no salão principal. Era a primeira vez que Kael o veria de perto.
O salão era imenso, com vitrais coloridos projetando luzes fantasmagóricas sobre o chão de mármore negro. Alaric estava sentado no trono da casa, envolto em um manto negro com detalhes prateados. Sua presença era sufocante.
— Acordou, finalmente — disse ele, com voz grave. — Por um momento achei que os deuses haviam decidido levar você de volta.
Kael engoliu em seco. Algo nele dizia para manter a calma.
— Estou bem… pai.
Alaric estreitou os olhos. Levantou-se lentamente e desceu os degraus do trono, parando diante do filho. Seus olhos eram como abismos.
— Há um fogo novo em seu olhar. Diferente do que me lembro. — Ele inclinou a cabeça. — Seja como for, você retornou. E agora… terá que se preparar. O mundo lá fora está prestes a mudar, e os Noctharion não ficarão para trás.
Kael assentiu, mesmo sem entender completamente. Sentia que havia algo maior em jogo. Uma profecia, talvez. Ou um destino entrelaçado com forças que escapavam da compreensão humana.
Naquela noite, ao observar o céu estrelado do alto da torre do castelo, Kael fez uma promessa silenciosa.
Se ele havia recebido uma nova chance… então usaria cada fragmento de poder, cada sussurro das sombras, para se tornar alguém que o mundo jamais esqueceria.
Necromante ou não, ele escreveria seu próprio legado.
O legado de Kael Noctharion — o Herdeiro das Sombras.
E isso… era apenas o início.
O Sétimo Filho
Os primeiros raios do amanhecer se infiltravam pelas janelas do castelo Noctharion, tingindo as paredes de pedra com uma luz suave, quase tímida. Kael acordou cedo, atormentado por sonhos estranhos. Ecos de vozes que não reconhecia, olhos que o observavam nas sombras, e um nome sussurrado com reverência: "Sétimo".
Sentou-se na cama, esfregando o rosto. Ainda se acostumava com o novo corpo, com a vida em um mundo onde magia, morte e poder estavam entrelaçados. Levantou-se e vestiu-se com as roupas que a criada havia deixado: uma túnica escura, com o emblema prateado da família bordado no peito — uma caveira envolta por chamas negras.
Quando desceu para o café da manhã, a atmosfera estava diferente. Os criados cochichavam entre si e olhavam para Kael com mais cautela do que o normal. No grande salão, uma longa mesa de carvalho estava posta com frutas, pães, carnes e uma jarra de vinho. Mas o que chamou sua atenção foi a presença de Lorde Alaric, que o aguardava sentado à cabeceira.
— Sente-se, Kael — disse ele, sem emoção na voz. — Hoje é um dia importante.
Kael obedeceu. Havia aprendido a não questionar diretamente seu pai. Sentou-se ao lado direito dele, onde um prato já o aguardava.
— Já faz uma semana desde que voltou — continuou Alaric, cortando uma fatia de carne. — Seu corpo se recuperou. Sua mente… ainda está se ajustando. Mas há algo que precisa saber agora.
Kael ergueu os olhos, atento.
— Você não é filho único. Nunca foi.
Por um momento, o tempo pareceu parar. O silêncio foi rompido apenas pelo som dos talheres de prata tocando o prato de Alaric.
— Eu… tenho irmãos? — murmurou Kael, surpreso.
— Seis. Três irmãos e três irmãs. Cada um com um dom diferente, forjados nas sombras desta casa. — Ele tomou um gole de vinho e olhou nos olhos do filho. — E você é o sétimo. O último.
Kael recostou-se na cadeira, sentindo o peso da revelação.
— Por que ninguém me contou antes?
— Porque estavam afastados — respondeu uma voz feminina.
Kael virou-se, surpreso, e viu uma mulher entrando no salão. Alta, com cabelos negros trançados e olhos da mesma tonalidade dos dele. Usava uma armadura leve sob um manto escarlate. Sua presença era marcante.
— Selaria Noctharion — disse ela, aproximando-se. — Sua irmã mais velha.
Ela parou diante dele e o observou como se analisasse uma arma nova. Em seguida, inclinou levemente a cabeça.
— Seja bem-vindo de volta, Kael.
Atrás dela, outros passos ecoaram. Um a um, os irmãos surgiram, como sombras se materializando:
— Dareth Noctharion, o segundo mais velho. Alto, forte, com o olhar calculista de um guerreiro veterano. Carregava uma espada longa nas costas e cicatrizes nos braços.
— Elira Noctharion, uma mulher de beleza fria, cabelos brancos e olhos prateados. A mais misteriosa de todos.
— Malrik Noctharion, magro, de aparência sombria e olhos fundos. Sussurros o seguiam como se ele conversasse com os mortos.
— Valeska Noctharion, impulsiva, com cabelos vermelhos como brasas e uma energia que fazia os candelabros tremerem.
— E por fim, Lioran Noctharion, o mais novo antes de Kael. Silencioso, mas com uma aura densa, quase sufocante.
Todos se alinharam diante dele. Kael sentia a tensão no ar, como se estivesse diante de juízes antigos. Cada um deles carregava um pedaço da escuridão da família. E agora, ele era parte desse todo.
Selaria tomou a dianteira.
— Fomos separados por ordens de nosso pai. Cada um enviado a um domínio, a uma missão. Crescemos no silêncio e na sombra. Você era o único mantido aqui… até o dia do acidente.
— Acidente? — perguntou Kael.
Alaric se levantou.
— Seu corpo anterior... foi corrompido. Houve um ritual que saiu do controle. Os detalhes não importam agora. O que importa é que você voltou. Mas o sangue que corre em você é o mesmo que em nós. E isso significa que carrega o fardo e a promessa da Casa Noctharion.
Kael engoliu em seco. Estava em choque. Em vida, fora filho único, sem família próxima. Agora, tinha seis irmãos — todos poderosos, temidos e diferentes.
— Por que me revelar isso agora?
— Porque hoje você será testado — respondeu Dareth, cruzando os braços. — Todos nós fomos. E só quem sobrevive ao Teste dos Ancestrais é digno de herdar o legado.
Elira sorriu, mas era um sorriso frio.
— A cripta se abre ao sétimo filho. É a profecia. O filho das sombras. Aquele que herdará o Trono da Morte.
Kael franziu o cenho.
— Profecia…?
Alaric assentiu.
— Há séculos, nossos antepassados ouviram um chamado das profundezas. Uma voz além da vida. Ela anunciou que um dia, o sétimo filho da linhagem Noctharion despertaria o verdadeiro poder da necromancia. Um poder que foi selado por medo… e inveja.
Kael olhou para os irmãos. Alguns pareciam céticos. Outros, desconfiados. Mas nenhum o olhava com desprezo. Era como se todos estivessem esperando… por ele.
— E se eu falhar nesse teste? — perguntou.
— Então será consumido — respondeu Malrik, sorrindo pela primeira vez. — E seu corpo alimentará os ossos da cripta.
— Encantador — murmurou Kael.
Valeska deu uma risada breve.
— Pelo menos tem senso de humor. Isso ajuda quando as almas tentam arrancar seu espírito pela garganta.
— Chega de palavras — disse Alaric, com autoridade. — Hoje à noite, Kael enfrentará o Teste dos Ancestrais. E todos vocês… irão observá-lo. Ninguém deve interferir.
Os irmãos assentiram. Selaria tocou o ombro de Kael.
— Prepare-se, irmão. A morte vai olhar nos seus olhos esta noite. E você precisa encará-la sem piscar.
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As horas que se seguiram passaram como um borrão. Kael foi conduzido até os aposentos antigos de estudos, onde velhos livros, símbolos rúnicos e pergaminhos descreviam os testes enfrentados por cada geração de Noctharion. Nenhum era igual ao outro. Cada um revelava as fraquezas do iniciado e o forçava a confrontar a própria alma.
Ao entardecer, Selaria trouxe-lhe um manto cerimonial. Preto como breu, com uma gola de ossos ornamentais e um cinto cravejado de pedras de obsidiana. Kael vestiu-se em silêncio, sentindo o peso do destino que agora carregava.
À meia-noite, a cripta foi aberta. Os sete filhos Noctharion desceram juntos, iluminados por tochas encantadas. As paredes estavam cobertas de ossos e inscrições em línguas esquecidas.
No centro da câmara, um círculo mágico pulsava com luz azulada. Dentro dele, uma fenda escura parecia levar a um abismo sem fim.
— Entre — disse Alaric. — E prove que é o herdeiro.
Kael respirou fundo. Um último olhar para os irmãos. Um último pensamento para a vida que deixara para trás.
E então, entrou na fenda.
A escuridão o engoliu, e o Teste dos Ancestrais… começou.
O Teste Abismal
As palavras do Patriarca ainda ecoavam na mente de Kael quando os portões do Salão dos Ancestrais se abriram, revelando uma escadaria íngreme mergulhada em sombras e chamas azuladas. Os olhos dourados do jovem brilhavam com intensidade, embora em seu íntimo um nó de incerteza começasse a se formar. O Teste dos Ancestrais não era apenas uma tradição—era um julgamento cruel, reservado aos filhos da linhagem Noctharion.
Acompanhado por dois guardas silenciosos e encapuzados, Kael desceu os degraus. A temperatura caía a cada passo, como se o próprio mundo rejeitasse sua presença ali. No final da escadaria, uma câmara circular se revelava. No centro, um altar de pedra negra pulsava com uma energia estranha, e atrás dele, uma fenda no tecido da realidade vibrava como uma ferida aberta no tempo.
Um ancião surgiu das sombras. Sua pele era marcada por cicatrizes e símbolos arcanos.
— Kael Noctharion, sétimo herdeiro. Diante do sangue dos seus, você enfrentará a Fenda do Abismo. Se sobreviver, será reconhecido. Se falhar... será esquecido.
Kael assentiu. Respirou fundo, sentindo a pressão em seus pulmões. Em seguida, deu o primeiro passo em direção à fenda.
Assim que atravessou o portal, tudo mudou. O mundo virou caos. Céu e terra deixaram de existir. Um redemoinho de trevas e relâmpagos púrpuras girava ao redor, e no centro, pairando com uma imponência aterradora, uma criatura colossal o observava.
Era o demônio abismal.
Com chifres que se curvavam como espirais negras, olhos vermelhos como brasas e um corpo feito de fumaça e ossos, a criatura soltou um rugido que fez o espaço tremer. Kael mal teve tempo de reagir. O monstro avançou.
A batalha foi brutal.
Kael rolou para o lado, desviando de uma garra monstruosa. Evocou as chamas negras herdadas da linhagem, mas elas foram dissipadas pelo hálito pútrido da criatura. O chão rachava a cada golpe, e Kael sentia suas forças se esvaindo. Sangue escorria de sua boca, de seus braços, de um ferimento profundo na coxa.
Por minutos que pareceram eternidades, Kael lutou com tudo o que tinha. Mas era claro—ele estava em desvantagem. O demônio parecia brincar com ele, testá-lo.
Então, em meio à luta, Kael gritou. Não de dor, mas de fúria. Algo dentro dele se rompeu.
Um pulso sombrio emergiu de seu peito. O demônio, que estava prestes a desferir o golpe final, recuou abruptamente. Seus olhos vermelhos se arregalaram por um breve instante. Um silêncio estranho caiu sobre o campo da batalha. O ar ficou denso, quase sagrado.
Kael, cambaleante, olhou para a criatura.
— O que... está esperando? — murmurou.
O demônio soltou um rosnado gutural. Em vez de atacar, voltou para as sombras e desapareceu dentro da própria fenda. A escuridão se dissipou, e Kael foi jogado de volta à realidade, caindo de joelhos no centro da câmara ancestral.
Guardas o rodearam, surpresos. O ancião retornou, franzindo o cenho.
— Ele... sobreviveu? — sussurrou um dos irmãos.
— Sim, mas mal conseguiu arranhar a criatura — respondeu outro.
A notícia se espalhou como fogo em palha seca. Kael Noctharion havia sobrevivido ao Teste dos Ancestrais, mas saído dele quase destruído. Os murmúrios começaram: "O mais fraco da linhagem", diziam. "Um fracasso envergonhado".
Seus irmãos o olhavam com desprezo contido. Suas irmãs, com pena.
Mas Kael, mesmo ferido, ergueu-se. Aquele momento não era de derrota. Era de silêncio. Pois dentro dele, algo havia despertado. Algo que nem ele compreendia totalmente.
Sozinho em seus aposentos naquela noite, Kael se deitou em sua cama. O olhar perdido no teto.
“Ele teve medo de mim...”, murmurou.
E pela primeira vez, Kael sorriu.
Aquele não era o fim.
Era apenas o início.
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