A vida universitária, segundo Melissa, se sustentava em três pilares: café ruim, boletos vencidos e crises existenciais disfarçadas de piadas no grupo da turma. Naquela manhã de segunda-feira, os três estavam firmemente presentes. O café da cantina estava intragável, o boleto da xerox ainda assombrava sua memória, e ela já tinha feito duas piadas autodepreciativas antes mesmo de chegar à sala.
— Me desejem sorte, guerreiros — murmurou, segurando o copo de isopor como se fosse uma poção mágica, antes de empurrar a porta da sala 203 com o quadril.
Estava cinco minutos atrasada para Teoria da Comunicação. Nada fora do padrão. A novidade, porém, estava em frente ao quadro: um homem escrevia seu nome com uma caligrafia absurdamente bonita, equilibrando um sorriso tranquilo e uma presença que exalava autoridade serena.
Professor Miguel Duarte.
Melissa parou no meio da fileira, paralisada, com a porta ainda aberta e o café vacilando na mão. O olhar dele cruzou com o dela. Por um segundo. Mas parecia ter durado cinco. Ela sentiu um arrepio percorrer a nuca e uma vontade urgente de reaprender o alfabeto, caso isso a ajudasse a impressioná-lo.
— Pode entrar, sem pressa — disse ele, com uma voz grave e calma, como se ela não estivesse congelada ali no meio da sala feito uma estátua.
— Desculpa... café... trânsito... vida — murmurou, encolhendo-se enquanto caminhava até o fundo da sala, onde suas amigas já riam baixinho.
— Que entrada triunfal, hein — sussurrou Carol, sua melhor amiga e parceira oficial de todas as enrascadas acadêmicas.
— Cala a boca. Você viu o professor? Isso é crime. Assédio visual. Prisão perpétua pra ele.
Melissa afundou o rosto no copo de café, mesmo que ele já estivesse frio. E sem açúcar.
Miguel retomou a aula com naturalidade, mas o estrago estava feito. Melissa não absorveu metade do conteúdo. Ou talvez tenha absorvido, mas em outra frequência. Enquanto ele explicava signos e significados, ela só conseguia prestar atenção nas mãos dele. Longos dedos, unhas impecáveis. E aquele relógio de couro no pulso... Era quase indecente alguém conseguir explicar Barthes com tamanha sensualidade.
— Você babou na mesa — disse Carol, quando a aula terminou.
— Mentira.
— Verdade. Você está apaixonada.
— Tô é com calor — Melissa respondeu, abanando a blusa. — Aquela aula devia vir com ventilador individual.
Elas seguiam pelo corredor em direção à cantina quando Miguel saiu da sala, passando por elas. Melissa tentou parecer indiferente. Falhou espetacularmente.
— Até quarta-feira, meninas — disse ele, com um aceno leve. O “meninas” veio com um sorriso na voz que arrepiou o braço de Melissa.
— Até, professor — respondeu Carol, toda simpática.
— Hm. — Melissa apenas emitiu um som inclassificável.
Assim que ele virou a esquina, ela encostou na parede como se tivesse levado um tiro. Um tiro de tensão sexual.
— Você está lascada — disse Carol, rindo.
— Eu vou fazer Teoria da Comunicação em todas as turmas. De manhã, de tarde, de noite...
— Não se apaixona pelo professor, Melissa.
— Tarde demais. Meu cérebro já mandou flores e bombons.
Na quarta-feira, Melissa chegou dez minutos mais cedo, penteou o cabelo duas vezes no espelho do banheiro e escolheu uma blusa que deixava os ombros à mostra — por causa do calor, claro. Coincidência.
Miguel entrou pontualmente, com uma pasta de couro sob o braço e uma caneca com a frase “Pense, logo insisto”.
— Alguém aqui gosta de cinema? — ele perguntou, alguns minutos após iniciar a aula.
Melissa levantou a mão.
— Depende. Se for filme cabeça que termina em silêncio e lágrimas, eu prefiro passar.
— E se for um que te deixa pensando por dias?
— Aí eu passo também. Já penso demais por conta própria — respondeu, arrancando risadas da turma.
Miguel sorriu, levemente inclinado.
— Pelo visto, vou ter trabalho com você.
Ela engoliu seco. Aquilo foi... uma provocação?
No final da aula, enquanto os alunos se dispersavam, ele chamou:
— Melissa?
Ela parou no corredor. Voltou, tentando parecer casual.
— Oi?
— Seu comentário foi engraçado. Mas não subestime o poder de um bom filme reflexivo. Estou preparando uma lista para a próxima aula. Se quiser contribuir com algum título, aceito sugestões.
— Você quer... minha opinião?
— Claro. Você tem algo interessante a dizer. Mesmo quando foge um pouco do tema.
O sorriso que ele deu era inocente o bastante para parecer seguro, e perigoso o suficiente para deixá-la em combustão interna.
Melissa saiu da sala flutuando. Ou pegando fogo. Difícil saber.
Grupo das amigas, à noite:
Carol: “E aí, a aula foi boa ou ele te olhou de novo como se soubesse que você sonhou com ele ontem?”
Melissa: “Ele me chamou no final. Falamos sobre filmes. Ele disse que eu tenho algo interessante a dizer. Alguém me amarra.”
Camila: “Melissa... cuidado. Isso é território perigoso.”
Melissa: “Território quente, você quis dizer.”
Na semana seguinte, Melissa começou a prestar mais atenção nas aulas. E não apenas porque Miguel usava camisas sociais com as mangas dobradas até os cotovelos. Embora isso ajudasse consideravelmente.
Era o jeito como ele fazia os assuntos parecerem vivos. Como provocava os alunos com perguntas afiadas, como escutava as respostas com interesse genuíno. E, principalmente, como olhava para ela quando ela falava. Aquilo não era comum. Nem neutro.
Numa noite qualquer, enquanto revisava os slides para o trabalho, Melissa se pegou sorrindo para o notebook. Absurdo. Mas totalmente inevitável.
Ela estava mesmo gostando dele.
O primeiro toque aconteceu quase por acaso.
Na sexta, ela ficou depois da aula para tirar uma dúvida sobre a apresentação do grupo. Miguel se aproximou para olhar o notebook, e ao pegar o mouse, sua mão encostou na dela. Por um segundo. Mas foi o suficiente para os pelos do braço se arrepiarem.
Ele não recuou. Nem ela.
Depois de um breve silêncio, ele disse com um tom mais baixo, quase íntimo:
— Você é brilhante, Melissa. Só precisa confiar mais em você.
Ela sentiu o coração tropeçar.
— Obrigada... professor.
E saiu da sala antes que cometesse alguma loucura. Tipo beijá-lo ali mesmo, entre uma citação de Habermas e outra.
Naquela noite, deitada na cama, ela se perguntou:
Será que ele sente o mesmo? Ou é só a minha imaginação romanticamente desesperada?
Porque uma coisa era certa:
Ela estava em apuros.
E amando cada segundo disso.
Melissa sempre soube que tinha uma queda por caras inteligentes. Só não sabia que sua fraqueza incluía frases sobre semiótica ditas com voz grave e olhos castanhos intensos. Desde que Miguel começara a lecionar, ela vivia em um estado constante de alerta: ou estava se apaixonando, ou precisava urgentemente de um detox de hormônios.
Na segunda-feira, chegou cedo. Cedo mesmo. O tipo de cedo que faz você ajudar o monitor a apagar o quadro. Carol olhou com desconfiança ao vê-la sentada, organizando as canetas coloridas em fila militar.
— Você virou CDF desde quando?
— Desde que o professor mais gato da faculdade resolveu pedir minha opinião sobre filmes.
— Hmm. Ainda no modo “Delírios & Desejos”?
— No modo “Não consigo parar de pensar nele nem quando passo manteiga no pão.” — Melissa suspirou, olhando para a porta.
Quando Miguel entrou, Melissa disfarçou. Mal. Mas disfarçou. Ele estava de camisa azul-clara, mangas dobradas como sempre, e segurava a caneca com o mesmo ar despreocupado que fazia as alunas esquecerem até o próprio nome.
— Bom dia, turma. Vamos começar?
A aula transcorreu normalmente — pelo menos para quem não estava ocupada analisando cada detalhe do professor. Melissa não ouvia metade do conteúdo, mas anotava tudo. Em parte porque queria entender, em parte porque era o pretexto perfeito para olhar para ele sem parecer obcecada.
Em um momento, ele passou pelas fileiras, comentando os trabalhos em grupo. Ao parar ao lado de Melissa, inclinou-se um pouco e olhou a tela do notebook dela.
— Interessante esse ponto de vista que você colocou aqui.
— Obrigada — disse ela, com a voz quase firme.
— Você consegue conectar isso com o texto do Castells?
— Consigo... acho. Quer dizer, talvez. Posso tentar. — Ela sorriu.
Ele retribuiu. Um sorriso pequeno, mas cheio de intenções escondidas.
— Tenta. Você tem uma visão única das coisas.
E foi embora, como se não tivesse acabado de jogar uma bomba emocional sobre ela.
Na biblioteca, horas depois, Melissa ainda revivia a frase.
— “Você tem uma visão única das coisas”, ele disse.
— Tradução: “Estou completamente encantado por você, me beija agora”? — sugeriu Carol, dramatizando.
— Não sei. Pode ser só “você é uma boa aluna”.
— Ou pode ser: “Se eu não fosse seu professor, já estaria te levando pra tomar vinho e conversar sobre o impacto da linguagem nos relacionamentos humanos.”
— Isso foi muito específico.
— Eu vejo filmes demais — respondeu Carol, dando de ombros.
Na quarta-feira, Miguel chegou com uma pasta nova e um humor mais descontraído. Iniciou a aula com uma pergunta aleatória:
— Se você só pudesse se comunicar com uma pessoa por mensagens durante um ano, o que diria?
A turma riu. Alguns responderam com piadas, outros com respostas poéticas. Melissa ficou em silêncio. Mas ele notou.
— E você, Melissa? — perguntou, olhando diretamente para ela.
Ela engoliu seco.
— Eu perguntaria se vale a pena sentir tanto por alguém que talvez nunca vá saber.
— Profundo — respondeu ele, com um olhar fixo. — Talvez... algumas pessoas saibam mais do que demonstram.
A sala ficou em silêncio por um segundo. Ou talvez só ela tivesse sentido isso. Aquele momento entre os dois parecia um fio invisível esticado demais, prestes a romper.
Depois da aula, ela ficou mais uma vez. Sozinha. De novo. Miguel recolhia os materiais quando ela se aproximou.
— Professor, sobre o trabalho... eu pensei em mudar o enfoque. Pode?
— Claro. Do que se trata? — perguntou ele, voltando toda a atenção para ela.
— Quero falar sobre como a comunicação não verbal pode ser mais poderosa do que qualquer texto — disse, encarando-o.
Miguel se aproximou com um passo. Pequeno, mas perceptível.
— Você acredita nisso?
— Às vezes, um olhar diz mais do que uma redação inteira. — Melissa não desviou os olhos. Ela estava provocando. Sabia disso.
Ele também sabia.
— Cuidado com o que você quer provar, Melissa. Esse tipo de comunicação... é arriscado.
— Os melhores estudos são.
O silêncio entre eles era carregado. Não era só silêncio. Era eletricidade. Ele piscou devagar, como se controlasse cada milímetro do que queria dizer.
— Você é brilhante. Mas não brinque com fogo se não está disposta a se queimar.
Ela respirou fundo. Não estava. Mas talvez quisesse.
Mais tarde, no grupo das amigas:
Melissa: "Ele disse que meu trabalho é arriscado. E que eu sou brilhante."
Carol: "Meu Deus, ele tá praticamente dizendo: ‘vamos marcar um café e falar de Lacan entre beijos’."
Camila: "Não cai nessa, amiga. Vai da ruim."
Melissa: "Eu não tô caindo. Tô despencando com um sorrisinho no rosto."
Na sexta-feira, Miguel anunciou:
— Semana que vem teremos apresentações. Grupos prontos?
A sala reclamou em coro.
Melissa levantou a mão.
— Posso apresentar sozinha?
— Se o conteúdo for consistente, sim. Está confiante?
Ela sorriu, atrevida.
— Mais do que deveria.
Ele sorriu de volta.
— Gosto disso.
Na saída da aula, Carol virou para ela:
— Melissa... você tem que prometer uma coisa.
— O quê?
— Se você for presa por seduzir seu professor, me deixa escolher a sua foto na matéria.
— Eu ia dizer que você podia cuidar do meu gato, mas tudo bem também.
As duas riram.
Mas dentro de Melissa, a coisa era séria. O sentimento estava crescendo. A tensão, também. E ela sabia: a apresentação da próxima semana podia mudar tudo.
Melissa passou o fim de semana inteiro reescrevendo sua apresentação. Não porque duvidasse do conteúdo — ela sabia exatamente o que queria dizer. Mas havia algo mais. Algo que surgia entre cada slide escolhido, cada exemplo pensado, cada frase cuidadosamente ensaiada.
Porque, no fundo, aquilo não era apenas um trabalho sobre comunicação não verbal.
Era sobre eles.
Na segunda-feira, ela entrou na sala com um vestido simples, mas impossível de ignorar. Azul-marinho, mangas curtas, levemente ajustado à cintura. Nada extravagante — mas dizia tudo. Dizia: estou segura de mim, e sei que você vai notar.
Carol a olhou de cima a baixo, com um sorriso de quem já sabia demais.
— Vai apresentar ou conquistar o coração do professor?
— As duas coisas, se der — respondeu Melissa, colocando os fones como quem se arma para uma batalha.
Miguel estava sentado à ponta da mesa, revisando anotações. Quando ela entrou, ergueu os olhos — e ficou. Por um instante, longo o suficiente para prender o ar nos pulmões dela, ele a encarou com uma intensidade que pesava mais do que palavras.
Melissa sentiu o calor subir pela nuca.
— Boa tarde, turma. Vamos começar as apresentações. Melissa, por favor?
Ela assentiu com firmeza. Levantou-se, pegou o pen drive, conectou ao projetor. O título surgiu na tela:
“O Que Não Dizemos: Comunicação Silenciosa e Desejo”
Um leve murmúrio percorreu a sala. Miguel cruzou os braços, interessado.
Melissa começou.
— A comunicação não verbal representa mais de 60% das nossas interações. Postura, olhar, respiração, distância... tudo fala. Mesmo quando o outro não está pronto pra ouvir.
Ela caminhava devagar, a voz calma, o tom seguro. Sedutor sem esforço. A cada exemplo, ela lançava um olhar direto para ele — que a acompanhava com atenção absoluta. A sala parecia ter desaparecido. Eram só eles dois, travando um jogo perigoso com palavras e silêncios.
— Às vezes, o corpo responde antes da mente permitir. Um passo mais próximo. Um toque que dura meio segundo além. Um olhar insistente. Uma respiração que falha. Tudo isso... comunica.
Um breve silêncio caiu, carregado.
— E há momentos em que a comunicação se transforma em segredo. Um pacto silencioso. Porque o que não é dito... é exatamente o que precisa ser sentido.
A última frase pousou no ar como uma confissão sussurrada.
Miguel não piscava.
— Obrigada — disse Melissa, encerrando. O coração, descompassado. O olhar dele, ainda nela.
A sala aplaudiu. Comentários elogiosos ecoaram. Mas ela só ouvia seu próprio peito acelerado — e o silêncio denso de Miguel.
Quando a aula terminou, ele chamou por ela.
— Melissa.
Ela se virou.
— Sim, professor?
Ele hesitou. Meio segundo.
— Pode me acompanhar até a coordenação? Preciso deixar um material lá. E... queria conversar sobre sua apresentação.
— Claro.
Caminharam lado a lado pelo corredor quase vazio. Nenhuma palavra entre eles. Só quando chegaram à escada de emergência — um canto mais isolado do prédio — ele parou.
— O que você fez hoje... foi ousado.
Melissa ergueu os olhos para ele, sem recuar.
— Funcionou?
— Funcionou bem demais. — A voz dele saiu mais baixa, rouca. — Talvez até demais.
— Eu só falei sobre comunicação não verbal. — Ela sorriu, inocente. — Foi um trabalho acadêmico, professor.
— Você sabe que não foi só isso.
— E você também sabe.
O silêncio caiu novamente, denso, como se palavras fossem perigosas demais para aquele instante. Miguel deu um passo à frente. Os olhos fixos nos dela. Os dedos roçaram de leve seu braço — um toque quase imperceptível, mas elétrico.
— Isso é um erro — ele murmurou, perto demais.
— Talvez — sussurrou Melissa. — Mas é o único erro que venho querendo cometer há semanas.
As mãos se encontraram, primeiro num toque incerto. A tensão entre os dois era quase tangível, como se o ar em volta tremesse.
— Me diz pra parar, Melissa — ele pediu, a voz falha.
— Eu não posso. Porque quero tanto quanto você.
E ali, no refúgio silencioso daquele corredor esquecido, Miguel se aproximou de verdade. Seus lábios tocaram os dela com uma delicadeza perigosa — como quem cruza uma linha da qual não se volta. O beijo foi lento, cuidadoso. Depois, mais intenso, mais desesperado. Como se quisessem compensar cada segundo perdido entre olhares contidos e frases que escondiam desejo.
Quando se afastaram, ainda ofegantes, os olhos diziam mais que qualquer palavra.
— A gente precisa ser discreto — ele disse.
— Eu sei.
— Isso não pode atrapalhar sua vida acadêmica.
— Nem seu emprego.
— Mas se você quiser continuar...
— Eu quero — respondeu Melissa, sem titubear.
Naquela noite, deitada na cama, os lábios ainda quentes, ela revivia cada segundo. O olhar dele. O toque. O beijo. A última frase.
Estava acontecendo.
E, pela primeira vez em muito tempo, Melissa não se sentia perdida.
Sentia-se exatamente onde deveria estar.
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