Tudo o que Isadora queria era dormir. Só isso.
Depois de um dia estressante no trabalho — que incluiu um cliente surtado, um café derramado na blusa branca e uma discussão com a impressora da firma —, ela só queria o silêncio abençoado do novo apartamento. O primeiro lar só dela. Sem ex, sem mãe ligando pra cobrar netos, sem barulho.
Exceto que o barulho estava ali. E não era qualquer barulho. Era funk. Alto. Com batidas que vibravam nas paredes como se ela estivesse numa balada clandestina às três da manhã — e não em casa, às nove da noite de uma terça-feira.
Ela enfiou o travesseiro sobre a cabeça e tentou ignorar.
Dez segundos depois, arrancou o travesseiro e sentou-se na cama, bufando como uma chaleira prestes a explodir.
— Quem ouve isso a essa hora, meu Deus?
Determinada, ela se levantou, puxou o roupão e marchou até a parede. Bateu com os nós dos dedos.
Três batidas secas.
A música continuou.
Mais duas. Um pouco mais fortes.
A batida finalmente cessou. O silêncio invadiu o quarto como um bálsamo. Ela quase sorriu, voltando à cama.
Mas não durou.
A batida voltou — mais forte, mais grave, com uma mistura de batida eletrônica e letras tão absurdas que ela sentiu o cérebro derreter um pouco. E foi nesse momento que decidiu: aquele homem — porque com certeza só um homem seria tão desgraçadamente inconveniente — precisava de um choque de realidade.
Enfiou os pés em seus chinelos de coelho (fofos, porém nada intimidadores), ajeitou o coque alto com um lápis atravessado nele e saiu pelo corredor do prédio. O moletom surrado por cima da camisola dava o toque final no visual “vizinha brava, mas exausta”.
Parou em frente à porta do 203. Nome na plaquinha: Davi Costa.
Bateu.
Nada.
Mais uma vez, com força.
— TÁ ABERTA! — gritou uma voz masculina lá de dentro.
Ela hesitou. Tinha algo em sua voz. Um tom preguiçoso, despreocupado… e sexy. Sim, isso mesmo. Sexy. Mas ela ignorou esse detalhe irrelevante e empurrou a porta.
O cheiro de pizza recém-saída da caixa e cerveja foi o primeiro a atingi-la. O segundo impacto foi visual: um cara sentado no sofá, guitarra no colo, camisa preta grudada no peito, e um cabelo bagunçado que parecia moldado por mãos impacientes.
Ele levantou os olhos e sorriu. Um sorriso lento, quase preguiçoso, que revelava uma covinha sacana na bochecha esquerda.
— Posso ajudar?
Isadora tentou não olhar fixamente. Tentou não notar o abdômen insinuado sob o tecido. Tentou não cheirar o perfume amadeirado que flutuava no ar. E falhou miseravelmente em tudo.
— Dá pra baixar o som?
Ele se levantou, com movimentos lentos, quase deliberados.
— Dá. — respondeu com naturalidade.
Ela esperou. E nada aconteceu.
— Então?
— Ah… você queria que eu baixasse agora?
Ela piscou, incrédula.
— Você tá brincando comigo?
— Um pouco — ele disse, com um sorriso mais largo. — Mas também tô avaliando seu nível de irritação. Tá ali entre “vou te matar” e “vou te beijar só pra calar essa boca”.
Ela cruzou os braços.
— Escuta aqui, Davi. Se eu tiver que sair do meu apartamento outra vez por causa da sua maldita caixa de som, eu mesma vou jogá-la pela janela. Com você junto, se estiver colado nela.
Ele soltou uma risada curta.
— Gosto de mulher com atitude.
— Gosta de vizinha com um processo nas costas também?
Ele se aproximou um pouco. Estavam a menos de um metro. E era… perigoso.
— Você tem cheiro de lavanda. E essa camisola — ele olhou de cima a baixo com um ar de provocação mal disfarçada — não ajuda em nada meu foco.
— Que bom que sua caixa de som também não ajuda na minha paciência.
Ele deu mais um passo.
— Me diz uma coisa, vizinha… tá solteira?
Ela arqueou uma sobrancelha.
— Isso é uma cantada?
— Isso é uma análise de risco. Dependendo da resposta, posso continuar provocando ou... te convidar pra uma cerveja.
Ela bufou, virou-se nos calcanhares e já estava abrindo a porta para sair quando ouviu:
— Dorme com Deus, vizinha. Ou comigo, se quiser silêncio garantido.
A porta bateu. E do lado de dentro, Isadora recostou a testa contra a madeira.
“Senhor... me dá força. Ou me dá corda pra me enforcar direitinho nesse erro ambulante.”
**
Meia hora depois, já de volta ao seu quarto, o som havia finalmente cessado. E, para seu desespero, o silêncio só aumentava o eco do que acabara de acontecer.
Davi Costa era o tipo de problema que ela havia jurado evitar. Charmoso, seguro demais de si, com aquele ar de “nada me atinge” que fazia qualquer mulher sensata se afastar.
Infelizmente, sensatez nunca foi seu ponto forte quando o homem em questão tinha olhos castanhos intensos, covinhas perigosas e o tipo de sorriso que prometia problema em forma de lençol amassado.
Ela olhou para o teto.
— Por favor, que ele seja só um babaca barulhento. Um daqueles que come pizza fria, esquece datas importantes e tem playlists de sertanejo universitário.
Pior.
Ele tocava guitarra.
Ela rolou na cama, frustrada. Sentia-se ridícula por ter ficado impactada. Mas como não ficar? O maldito tinha presença. O tipo de homem que entrava num cômodo e ocupava o ar. E o pior: sabia disso.
**
No dia seguinte, ao abrir a porta pela manhã para pegar o jornal que ainda insistia em assinar, deparou-se com um bilhete colado com fita na parte de fora:
“Prometo abaixar o som… se você prometer subir o tom comigo. – Davi, o Vizinho Barulhento.”
Ela amassou o papel. Depois desamassou. Depois sorriu sem querer.
Esse homem vai me enlouquecer, pensou.
Ou me enlouquece… ou me aquece. Talvez os dois.
Isadora estava atrasada.
De novo.
Ela correu pelos corredores do prédio com a bolsa escorregando do ombro, os saltos fazendo toc toc toc apressado no piso frio, o cabelo ainda úmido preso num coque torto e a chave do apartamento quase caindo da mão.
— Droga, droga, droga… — murmurava como um mantra.
O elevador demorava. Como sempre. Ela apertava o botão freneticamente como se isso fosse acelerar o processo mágico de descer do décimo andar ao térreo.
E foi aí que ele apareceu.
— Bom dia, vizinha apressada. — Davi.
Ele estava encostado na parede, um copo de café na mão, usando uma camiseta cinza que deixava claro que ele ou acordava com o cabelo perfeito ou não ligava de estar lindo logo cedo. O mais provável: os dois.
Isadora respirou fundo.
— Nem vem. Já acordei de mau humor.
— Tá usando aquele perfume de lavanda de novo?
Ele se aproximou um passo.
— Ou isso sou eu ficando viciado em você?
Ela o encarou.
— Davi, não começa.
— Só tô sendo educado. Você tem que parar de interpretar tudo como flerte.
— Quando você deixa bilhetes me convidando pra subir o tom com você, é difícil não interpretar.
Ele deu um gole no café e arqueou a sobrancelha.
— E aí? Vai subir?
Ela riu, sem humor.
— No dia que eu perder toda a sanidade.
— Ótimo, te dou uns dois dias.
Antes que ela retrucasse, o elevador finalmente chegou. As portas se abriram, revelando o pequeno cubículo prateado que, naquele momento, parecia apertado demais para dois corpos com tanta eletricidade pairando no ar.
Ela entrou. Ele veio logo atrás.
O silêncio era quase palpável.
Isadora tentou focar no número dos andares descendo, mas estava consciente demais da presença dele. Do calor. Do cheiro de café e algo mais… masculino. De como os ombros dele mal cabiam no canto do elevador.
Davi olhou pra ela de lado.
— Você sempre fica tensa perto de mim?
— Eu sempre fico tensa perto de homens convencidos que se acham irresistíveis.
— Mas você não disse que eu tô errado…
Ela girou o rosto lentamente, com um olhar afiado.
— Eu disse que você é convencido.
— E irresistível?
Ela hesitou. E esse segundo de silêncio foi mais barulhento que qualquer resposta.
As portas do elevador se abriram no térreo, salvando-a — por pouco.
— Bom dia, Davi — disse, tentando soar firme, saindo rápido como se o chão estivesse em chamas.
— Bom dia, Isa. E boa sorte com a sanidade. Sério, ela não dura muito perto de mim.
**
Na cafeteria da esquina, Isadora esperava pelo cappuccino com canela que era sua dose de vida toda manhã. Mas mesmo com o aroma quente subindo do copo, ela ainda pensava na maldita conversa do elevador. No bilhete. No jeito como ele sempre falava como se a conhecesse, como se estivesse apenas esperando o momento certo pra quebrar suas defesas.
E o pior: ele nem precisava tentar muito.
Ela odiava admitir, mas sim, Davi era atraente. E carismático. E irritantemente divertido.
O tipo de homem que sabe o efeito que tem — e usa isso como uma arma.
Quando chegou em casa naquela noite, encontrou outro bilhete.
“Sexta. 20h. Pizza, cerveja e talvez eu te deixe vencer no Uno. Se você tiver coragem. – Vizinho Ainda Barulhento”
Ela encostou-se à porta, bilhete nas mãos, coração acelerado.
Não era só sobre a pizza. Nem sobre o jogo.
Era sobre saber que ele queria mais.
E o mais assustador? Ela também queria.
Ela só não sabia se queria ceder... ou lutar um pouco antes.
Isadora encarou o espelho do banheiro por longos minutos. Não era um encontro. Não oficialmente. Só uma noite entre vizinhos. Com pizza. E cerveja. E Davi.
Ou seja, um perigo.
Ela optou por um vestido curto — mas não curto demais. Vermelho vinho, de tecido leve, que deslizava sobre a pele. Cabelo solto, maquiagem leve. Só o suficiente para parecer que não estava se esforçando… embora estivesse. Muito.
Quando o relógio marcou 19h59, ela pegou a garrafa de vinho que comprara de última hora (“caso ele seja um chato com cerveja barata”, dissera para si mesma) e bateu à porta dele com três toques rápidos.
A porta abriu antes que ela pudesse respirar fundo.
Davi apareceu com uma camisa preta de botões — três abertos — e calça jeans escura. O sorriso preguiçoso estava no rosto, como sempre.
— Nossa, você leva “traje casual de vizinha” a um novo nível.
— É o meu pijama especial de sexta-feira. — Ela ergueu a garrafa. — Vim armada.
— E eu vim com fome. — Ele a convidou com um gesto e Isadora entrou.
O apartamento de Davi era exatamente como ela imaginava: organizado, mas com traços de desleixo charmoso. Livros empilhados, quadros tortos na parede, e uma luminária antiga sobre o sofá. O cheiro de pizza recém-saída do forno pairava no ar.
— Calabresa e quatro queijos. Pensei em honrar as tradições.
— Já ganhou pontos. — Isadora sorriu.
Sentaram-se na sala, com a caixa de pizza no centro da mesa de centro, cervejas abertas e a taça de vinho dela ao lado.
— Então, por que essa insistência em me provocar com bilhetes?
— Eu gosto de te ver desconfortável. Você fica adorável quando tenta fingir que não está interessada.
Ela engasgou na cerveja.
— Interessada?
— Isa, você bateu na minha porta com vinho. Eu sei ler sinais.
— Eu trouxe vinho porque não confio no seu gosto pra bebida.
— Mas confia no meu gosto pra pizza?
Ela riu, mordendo um pedaço.
— Estou aqui só pela comida.
— E pelo Uno.
Ele puxou uma caixa do jogo de dentro do armário com uma expressão vitoriosa.
— Eu sou competitivo, só avisando.
— E eu sou vingativa. Que comece a guerra.
**
Duas partidas depois, a sala já estava cheia de risadas, provocações e um pouco de gritaria.
— VOCÊ NÃO USOU +4 DE NOVO! — Isadora se levantou indignada, jogando as cartas no ar.
— Usei. Porque você merece. — Davi estava recostado no sofá, rindo.
— Você é insuportável.
— E irresistível, segundo fontes confiáveis.
— Quais fontes?
— Você mesma. Seus olhos entregam.
Ela cruzou os braços.
— Isso é ego inflado. Só isso.
Ele se aproximou. Um passo. Depois outro.
— Você sabe, Isa, tem uma linha muito tênue entre provocação e desejo.
Ela sentiu o corpo inteiro reagir. O vinho, o riso, o calor da noite… tudo conspirava contra sua sanidade.
— Você é meu vizinho, Davi. Isso já é confusão suficiente.
— E você é minha vizinha mais gostosa. Isso já é tentação demais.
Ele estava perto agora. Perto o suficiente para que ela sentisse a respiração dele. O olhar fixo nos lábios dela.
— A gente devia parar por aqui. — Ela sussurrou.
— Devia.
Mas nenhum dos dois se moveu.
Ele encostou a mão na cintura dela. Um toque leve. Um aviso.
Ela não recuou.
O beijo foi inevitável. E, quando aconteceu, foi tudo o que ela temia — e mais.
Quente. Firme. Provocador.
A boca de Davi encontrou a dela com uma mistura de urgência e controle. Ele não a dominava, apenas a puxava para o centro do caos. E ela foi.
As mãos dele exploravam as curvas dela como se tivessem sido feitas pra isso. Ela se segurava nos ombros largos, respondendo com fome, com vontade acumulada.
— Isso é péssima ideia — ela murmurou contra os lábios dele.
— Péssima. — Ele voltou a beijá-la. — Mas incrível.
Quando as coisas começaram a esquentar demais, Isadora recuou um passo, o coração disparado.
— Eu... eu preciso ir.
Davi ainda estava ofegante, com o cabelo bagunçado.
— Eu posso não querer que você vá.
— E eu posso não querer ficar. Mas se eu ficar agora… a gente não vai conseguir parar.
Ele assentiu, sério pela primeira vez.
— Justo. Mas só pra constar: você é bem-vinda aqui. Com ou sem vinho. Com ou sem roupa.
Ela riu, nervosa.
— Boa noite, vizinho.
— Boa noite, tentação.
**
Naquela noite, deitada na própria cama, Isadora revivia cada segundo do beijo. O gosto dele, o calor. A maldita forma como o mundo pareceu parar por alguns minutos.
Aquilo não era só química. Era confusão. Era desejo. Era… algo mais?
Ela não sabia.
Mas uma coisa era certa: depois daquela sexta-feira, nada seria como antes.
Nem ela.
Nem ele.
Nem a parede fina entre os dois.
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