Começou sem aviso. Numa segunda-feira modorrenta de maio, enquanto São Paulo engasgava em seu próprio tráfego matinal e o sol tentava timidamente romper a garoa fina, ou enquanto o calor já castigava a pele em Recife e a brisa do mar mal aliviava o mormaço em Salvador, ou enquanto a vastidão silenciosa do Pantanal apenas começava a despertar sob os primeiros raios de luz. Não houve trombetas celestiais, nem terremotos apocalípticos, nem anjos descendo em carros de fogo. Houve, primeiro, o Silêncio.
Não um silêncio comum, a mera ausência de ruído. Foi algo mais profundo, mais denso. Como se o próprio ar tivesse prendido a respiração. Por um instante infinitesimal, o barulho incessante do mundo – buzinas, motores, conversas, latidos, britadeiras, o zumbido onipresente da eletricidade – simplesmente parou. Um vácuo sonoro que fez milhões de tímpanos estalarem e corações tropeçarem numa batida esquecida. Durou menos que um piscar de olhos, mas foi o suficiente para que uma estranheza primordial se instalasse, um pressentimento de que a tapeçaria da realidade estava prestes a ser puxada com violência.
E então, no lugar do silêncio, veio o Som.
Não era música, nem palavra. Era um Zumbido. Baixo no início, quase subliminar, uma vibração que parecia vir não do céu ou da terra, mas de dentro dos próprios ossos, da estrutura molecular das coisas. Cresceu rapidamente em intensidade, não em volume ensurdecedor, mas em presença penetrante. Um zumbido polifônico, com harmônicos estranhos que arranhavam a borda da percepção, ressoando numa frequência que causava náusea e uma desorientação sutil, como se o eixo do mundo tivesse sido ligeiramente inclinado.
Na cozinha de um apartamento na Aclimação, em São Paulo, Dona Lourdes, uma senhora católica fervorosa de seus setenta anos, mexia o café no coador de pano, o cheiro familiar subindo no ar parado. Seu neto adolescente, Felipe, estava sentado à mesa, de fones de ouvido, o rosto iluminado pela tela do celular, alheio a tudo. O Zumbido começou. Dona Lourdes sentiu primeiro nos dentes, uma vibração incômoda. Olhou para a janela, confusa. Felipe tirou os fones. "Vó, que barulho esquisito é esse?" Antes que ela pudesse responder, a xícara de ágata que estava sobre a mesa, ao lado de Felipe, simplesmente tombou, como se a mão invisível que a segurava tivesse desaparecido. E onde Felipe estava sentado... agora havia apenas a cadeira vazia, os fones de ouvido caídos no chão, ainda tocando um funk proibidão numa estática crescente, e um leve cheiro de ozônio no ar. Dona Lourdes levou as mãos trêmulas à boca, os olhos arregalados para o lugar vazio do neto que, segundos antes, estava ali.
Numa pequena igreja Assembleia de Deus em Teófilo Otoni, Minas Gerais, o Pastor Elias, um homem de voz trovejante e fé inabalável, estava no púlpito, em pleno fervor de seu sermão sobre os sinais dos tempos e a iminência do Arrebatamento. Seus olhos varriam a congregação – irmãos e irmãs de olhos fechados, mãos erguidas, alguns chorando em contrição ou êxtase. O Zumbido começou, abafando por um instante a voz do pastor e os "aleluias" da igreja. Uma luz estranha, pálida e sem fonte definida, pareceu filtrar-se pelos vitrais coloridos, banhando a nave num brilho antinatural. O pastor sentiu um arrepio, uma expectativa gloriosa. Seria agora? O momento esperado? Ele abriu os braços, pronto para ser elevado. Mas nada aconteceu com ele. Em vez disso, viu, horrorizado, a irmã Clarice na primeira fila, conhecida por sua vida de fofocas e julgamentos, simplesmente desaparecer, deixando apenas seu hinário aberto sobre o banco de madeira. Viu o jovem Mateus, que ele repreendera na semana anterior por beber escondido, sumir no meio do corredor. Viu talvez um terço de sua congregação evaporar instantaneamente, deixando para trás apenas roupas vazias, bíblias caídas e um silêncio atônito quebrado apenas pelo choro confuso de algumas crianças que permaneceram nos bancos, olhando para os lugares vazios onde seus pais estavam segundos antes. O Pastor Elias ficou ali, no púlpito, os braços ainda abertos para um céu que não o quis, o rosto uma máscara de choque e incompreensão teológica.
Na praia de Iracema, em Fortaleza, um grupo de jovens surfistas aproveitava as primeiras ondas da manhã. O sol nascia no horizonte, pintando o mar de tons dourados. O Zumbido chegou junto com uma brisa estranha, que não vinha do mar, mas parecia soprar de dentro da própria areia. Um dos surfistas, o mais experiente, chamado Davi, estava remando para pegar uma onda promissora. No instante seguinte, sua prancha estava vazia, flutuando à deriva, e Davi desaparecera sem deixar nem mesmo um splash. Os amigos na areia gritaram, apontaram, correram para a água, pensando que ele tinha caído, se afogado. Mas então, a garota que vendia coco na barraca, que sempre sorria para eles, também sumiu, deixando apenas o facão cair na areia. E um casal de turistas idosos que caminhava de mãos dadas no calçadão simplesmente deixou de existir, suas sandálias permanecendo sobre as pedras portuguesas como uma instalação de arte macabra. O pânico começou a se espalhar pela orla, gritos se misturando ao barulho das ondas, enquanto pessoas desapareciam aleatoriamente, no meio de uma frase, no meio de um passo.
Num barco de pesca solitário, subindo um afluente escuro do Rio Negro, no Amazonas, Seu Raimundo, um ribeirinho de pele curtida pelo sol e mãos grossas de tanto puxar rede, sentiu o Zumbido ressoar na madeira velha do barco. Olhou para o céu, esperando uma tempestade súbita, comum naquela região. Mas o céu estava limpo, apenas o calor úmido começando a apertar. Então, olhou para a água. A superfície escura do rio pareceu... vibrar. E os botos cor-de-rosa, que às vezes acompanhavam seu barco, emergiram em vários pontos ao mesmo tempo, não com a curiosidade brincalhona de sempre, mas com uma agitação quase desesperada, olhando para as profundezas antes de mergulharem abruptamente e sumirem. E no mesmo instante, a rede de pesca que ele deixara lançada na água ficou subitamente leve. Puxou-a rapidamente. Estava vazia, mas não rasgada. Os peixes que deveriam estar ali... tinham desaparecido. Sentiu um medo antigo, um respeito pelas lendas do fundo do rio, tomar conta de si. Alguma coisa muito grande e muito errada estava acontecendo.
O caos se instalou nas cidades. Carros sem motoristas colidiam em cruzamentos movimentados. Um avião comercial sobrevoando Congonhas perdeu seus pilotos e começou a cair em espiral sobre a Zona Sul de São Paulo, o som de suas turbinas um grito de morte rasgando o Zumbido persistente. Trens do metrô pararam nos túneis escuros quando seus condutores sumiram. Cirurgias foram interrompidas com pacientes abertos sobre a mesa. Bebês desapareceram de berços, deixando pais em desespero absoluto.
E a seleção... parecia não seguir lógica alguma. Homens e mulheres de fé profunda eram deixados para trás, olhando para os céus com os olhos cheios de lágrimas e dúvidas. Criminosos notórios desapareciam de suas celas ou no meio de assaltos. Crianças inocentes sumiam, enquanto outras, igualmente inocentes, permaneciam. Políticos corruptos eram levados, enquanto outros, talvez tão corruptos quanto, continuavam em seus gabinetes. Ateus convictos sumiam, beatas fervorosas ficavam. Parecia aleatório. Impessoal. Como se uma força descomunal e indiferente tivesse passado uma rede sobre o planeta, recolhendo uma porcentagem da população baseada em critérios incompreensíveis, talvez inexistentes para a mente humana. Não parecia um Arrebatamento divino e seletivo; parecia mais uma coleta cósmica, uma dizimação sem julgamento moral aparente.
O evento todo durou talvez cinco minutos. Cinco minutos de Zumbido penetrante, de luz pálida e sem fonte, de desaparecimentos instantâneos e do caos resultante. E então, tão subitamente quanto começou, parou.
O Zumbido cessou. A luz estranha se dissipou. O silêncio voltou, mas agora era diferente. Não era o silêncio primordial de antes, mas um silêncio pesado, carregado de ausência, de choque, de fumaça de pneus queimados e do choro distante dos que ficaram.
Dona Lourdes, na sua cozinha na Aclimação, olhava para a cadeira vazia do neto, o cheiro de ozônio ainda no ar, as lágrimas escorrendo silenciosamente pelo rosto enrugado. O Pastor Elias, na igreja em Teófilo Otoni, estava de joelhos no púlpito, a Bíblia aberta sobre o Gênesis, incapaz de orar, incapaz de entender, cercado pelos soluços dos fiéis que, como ele, não haviam sido escolhidos. Os surfistas em Fortaleza vagavam pela areia, olhando para o mar como se esperassem que Davi emergisse a qualquer momento, enquanto a prancha vazia boiava zombeteiramente nas ondas. Seu Raimundo, no rio Negro, recolhia sua rede vazia, os olhos fixos na selva silenciosa que parecia ter prendido a respiração junto com ele.
O mundo tinha mudado para sempre. O céu estava igual, as árvores estavam nos mesmos lugares, os prédios continuavam de pé (exceto onde o avião caíra). Mas a humanidade estava quebrada, reduzida, e os que ficaram foram deixados para trás numa Terra assombrada pela ausência e pela pergunta aterradora que pairava no ar mais denso:
Por que nós ficamos?
(Fragmentos de um diário de bordo pessoal, capa de couro sintético azul-marinho, recuperado parcialmente queimado e manchado entre os destroços do voo JJZ 3051, rota São Paulo-Manaus. Queda estimada em 5 de Maio de 2025, localidade remota no norte de Mato Grosso, próximo à divisa com o Amazonas. A caligrafia, inicialmente legível e profissional, torna-se progressivamente errática.)
Entrada: 05 de Maio (Estimado - Horas Após o Impacto)
Não sei que horas são. Não sei onde estou. O cheiro acre de querosene queimado e metal retorcido ainda está no ar, misturado ao odor úmido e pesado da mata fechada que nos engoliu. O silêncio é quase pior que os gritos que vieram antes. Antes... do Silêncio. E depois do Zumbido.
Meu nome é Ricardo (irônico, outro Ricardo). Ricardo Assis. Comissário de bordo. Ou era. Agora sou... um sobrevivente? Preso numa carcaça de avião quebrada como um brinquedo de criança no meio do inferno verde.
Lembro do Zumbido. Começou baixo, uma vibração nos ossos, na estrutura do avião. Achei que era turbulência, mas não havia nuvens daquele tipo. Aumentou, penetrante. Os passageiros ficaram agitados, olhando pelas janelas, perguntando. E então, o Silêncio. E o caos.
O comandante Alencar... sumiu. Simplesmente... sumiu. No meio de uma frase no interfone tentando acalmar os passageiros. Puff. A roupa dele ficou lá, o headset caiu no painel. O copiloto, Marcelo, um garoto, começou a gritar. Vi pelos olhos dele no reflexo do vidro da cabine (a porta estava entreaberta depois que fui levar um café pra eles). Pânico puro. E então... ele também sumiu.
E não foram só eles. No corredor da primeira classe, Dona Beatriz, a senhora simpática que pediu um cobertor extra... evaporou. Deixou o cobertor no assento e o livro que lia caiu no chão. Na econômica, um bebê chorando no colo da mãe... o choro parou de repente. A mãe olhou para os braços... vazios. O grito dela... meu Deus, o grito dela ainda ecoa na minha cabeça.
Aconteceu com dezenas de pessoas. Talvez um terço do avião. Simplesmente desapareceram. Homens, mulheres, crianças. Ricos, pobres. Brasileiros, gringos. Sumiram. Deixando para trás roupas, sapatos, celulares, livros... e nós. Os que ficaram. Olhando uns para os outros com um terror primordial nos olhos.
O avião, sem pilotos, começou a perder altitude. Os alarmes soando, a máscara de oxigênio caindo, os gritos voltando, agora de pânico real pela queda iminente. Lembro de me agarrar a uma poltrona, fechar os olhos, rezar uma oração que nem lembrava que sabia. O impacto. Metal se rasgando. Escuridão.
Acordei com dor. Muita dor. O braço esquerdo está quebrado, acho. Um corte feio na testa, o sangue seco grudado no cabelo. O cheiro de fumaça. Consegui me arrastar para fora da fuselagem partida. Chovia fino. A mata fechada por todos os lados. Os destroços espalhados numa clareira aberta pelo próprio impacto.
Quantos sobreviveram? Poucos. Contei uns doze, talvez quinze, incluindo eu. A maioria ferida, alguns em choque catatônico, outros gemendo baixo. Uma moça chamada Amanda, que estava sentada perto de mim, parece ser enfermeira, tentou ajudar os mais graves com um kit de primeiros socorros improvisado que achamos. Mas a maioria dos ferimentos é séria demais. E estamos no meio do nada.
O que aconteceu lá em cima? O Arrebatamento? Mas... por que eu fiquei? Por que a Dona Beatriz, tão gentil, sumiu, e o sujeito claramente bêbado e inconveniente da poltrona 12F ficou? Por que o bebê foi levado e a mãe deixada em desespero? Não faz sentido. Nenhuma lógica religiosa que eu conheça explica isso. Parece... aleatório. Cruelmente aleatório. Ou os critérios são outros. Algo que a gente não entende.
Preciso focar. Sobrevivência. Água. Abrigo. Sinalização. Mas o Zumbido... ainda parece ecoar fracamente na minha cabeça. E o Silêncio que veio antes... sinto que ele ainda está aqui, espreitando por trás do som dos insetos e dos gemidos dos feridos.
Entrada: 06 de Maio (Estimado)
A noite foi um inferno. Frio, úmido, os sons da selva amplificados pela escuridão e pelo medo. Os gemidos de dor de alguns sobreviventes foram diminuindo até cessarem por completo. Contamos hoje de manhã. Somos oito agora. Oito almas perdidas no verde. Amanda, a enfermeira, faz o que pode, mas sem recursos...
Conseguimos achar água num córrego não muito longe. Tem um gosto de terra, mas é potável, acho. Comida é o problema. Restos dos snacks do avião, algumas barras de cereal que um executivo tinha na mala. Não vai durar muito.
Ninguém fala sobre aquilo. Sobre os desaparecimentos. É como um acordo tácito de silêncio. Falar tornaria tudo real demais, insuportável demais. Mas está nos olhos de todos. A pergunta: por quê? Por que nós?
Tentei usar o rádio de emergência do avião. Destroçado. Os celulares, claro, sem sinal. Estamos por conta própria. A mata ao redor é densa, impenetrável. Sair daqui a pé parece suicídio. Temos que esperar por resgate. Mas quem sabe que caímos? E onde?
Notei algo estranho hoje. Os animais. Ou a falta deles. Não se ouve pássaros perto dos destroços. Nenhum macaco, nenhum sinal de caça maior. Apenas insetos. Muitos insetos zumbindo, e aquele silêncio pesado da mata. É como se a própria vida selvagem estivesse evitando este lugar, esta clareira da nossa desgraça. Ou como se algo maior tivesse afugentado tudo.
Aquele Zumbido... será que afetou só os humanos?
Entrada: 07 de Maio (?)
Perdi a noção dos dias. A dor no braço é constante. A febre começou. Amanda me deu os últimos analgésicos. Ela mesma está pálida, exausta. Dos oito, restam cinco. Um senhor idoso faleceu durante a noite. Uma moça com ferimentos internos graves delirou por horas sobre "anjos com asas de geometria errada" antes de silenciar. O executivo das barras de cereal simplesmente... levantou e caminhou para dentro da mata ontem à tarde, dizendo que ia "seguir a luz pálida". Não voltou. Ninguém teve forças ou coragem para ir atrás.
Estou começando a ver coisas? Ou a ouvir? À noite, quando o fogo que fazemos com os destroços baixa, juro que vejo luzes estranhas piscando entre as árvores, bem no alto. E aquele Zumbido... às vezes acho que ainda o ouço, muito baixo, vindo do céu, ou talvez de dentro da minha própria cabeça.
Os outros dois sobreviventes – um rapaz quieto que mal fala e uma mulher de meia idade em estado de choque que só chora baixinho – estão se definhando. Acho que não vão durar muito. Restaremos Amanda e eu. E depois?
Comecei a reler as anotações de voo que achei na minha bolsa. Rotas, procedimentos de segurança... tudo tão absurdamente normal, tão pertencente a um mundo que parece ter deixado de existir há cinco minutos e há cinco séculos ao mesmo tempo. Para onde foram? Para onde Alencar, Marcelo, Dona Beatriz, o bebê... para onde eles foram? Flutuaram para o céu? Foram desintegrados? Ou foram... coletados? Por quem? Por quê?
A aleatoriedade me apavora mais que qualquer explicação divina. Se não há critério, se não há julgamento, então o universo é só... isso? Um caos indiferente onde coisas assim acontecem? Onde bilhões desaparecem num piscar de olhos por um capricho cósmico ou pela passagem de alguma entidade colossal e incompreensível que nem nos notou direito? Essa ideia... essa ideia é pior que o inferno. É o Vazio.
Entrada: (Data ilegível - talvez 09 ou 10 de Maio?)
Amanda se foi. Febre alta, infecção. Tentei ajudar, mas não havia nada a fazer. Fiquei segurando a mão dela até o fim. Os outros dois... sumiram. Não sei se morreram e a mata os levou, ou se também caminharam para a "luz pálida". Estou sozinho.
Completamente sozinho nos destroços. A chuva voltou, fina e persistente. O cheiro de metal queimado e decomposição (minha? dos outros?) está mais forte. Minha febre aumenta. Os pensamentos estão confusos.
Mas agora eu vejo. Ou acho que vejo. Não são luzes aleatórias na mata. É... padrão. Uma geometria que não deveria existir na natureza. Flutuando entre as árvores mais altas. E o Zumbido está mais claro agora. Não é só na minha cabeça. Vem de lá. Vem deles.
Eles ainda estão aqui perto? Ou voltaram? Estão observando? Esperando que os últimos apodreçam? Ou talvez... talvez o Arrebatamento não tenha acabado? Talvez tenha sido só a primeira leva?
Escrevo isso com dificuldade. A mão treme. A luz da fogueira improvisada está fraca. Ouvi um barulho lá fora. Não de animal. Algo... arrastando-se. Pesado.
Eles não subiram. Ninguém subiu. O céu se abriu. O véu rasgou. E eles desceram. Ou melhor, olharam através. O Zumbido era o som Deles. O Arrebatamento foi só... a colheita? Ou a limpeza do palco antes do verdadeiro espetáculo começar?
A coisa que se arrasta está mais perto agora. Não tem forma definida. É só... uma ausência de luz, um contorno escuro contra a escuridão da noite, mas com aqueles pontos de luz geométrica pulsando dentro...
Não é Deus. Não são anjos. É o Vazio que ganhou fome. E nós... nós fomos deixados para trás como o resto. O prato principal.
Está perto da fuselagem. Consigo sentir o frio que emana... e o Zumbido... está ficando tão alto...
(O manuscrito termina aqui, num rabisco ilegível que desce pela página.)
O silêncio era a primeira blasfêmia. Um silêncio espesso, poeirento, que desceu sobre o amplo salão da Catedral da Nova Aliança Pentecostal como um sudário, abafando o eco do último "Amém!" fervoroso, dos cânticos que ainda vibravam no ar carregado de suor e perfume barato, dos soluços de contrição e dos gritos de êxtase que eram a marca registrada dos cultos do Pastor Jeremias Soares. Agora, apenas o zumbido fraco das lâmpadas fluorescentes no teto alto e o som distante e caótico que começava a subir da rua principal da Praça Seca ousavam quebrar a quietude profana.
Pastor Jeremias permanecia de pé no púlpito de acrílico imponente, as mãos ainda crispadas sobre a Bíblia de capa de couro aberta no livro de Apocalipse, os olhos arregalados fixos na visão inacreditável à sua frente. Onde, segundos antes, se apinhava sua congregação vibrante – mais de quinhentas almas espremidas nos bancos de plástico desconfortáveis daquele antigo cinema adaptado –, agora restava um rebanho esparso, um terço, talvez um quarto do original, olhando ao redor com a mesma expressão de choque bovino que ele sentia congelada em seu próprio rosto.
Os espaços vazios eram mais eloquentes que qualquer sermão. Pilhas de roupas amassadas sobre os bancos – o terninho florido da irmã Judite (sempre na primeira fila, sempre a primeira a "cair no Espírito", sempre a mais rápida em julgar o decote das irmãs mais novas), o uniforme engomado do irmão Ananias (o diácono que controlava as ofertas com um zelo quase fanático), a camiseta de time puída do jovem Kleber (que Jeremias vivia exortando sobre os perigos do funk e das más companhias). Sapatos. Bolsas. Hinários caídos no chão de cimento frio. Ausências. Buracos na realidade onde, um instante antes, havia fervor, barulho, vida.
E ele. Ele estava ali. Pastor Jeremias Soares. O Ungido do Senhor para a Zona Oeste. O homem que garantia, com a certeza trovejante de quem tinha linha direta com o Arcanjo Miguel, que o Arrebatamento era iminente e que ele, e os fiéis que seguissem suas doutrinas (e fossem generosos nas ofertas), estariam no camarote da primeira leva para a Nova Jerusalém. Ele, que descrevera tantas vezes a cena gloriosa da subida dos escolhidos, deixando para trás os pecadores para rangerem os dentes na Grande Tribulação... ele tinha ficado.
Seus joelhos fraquejaram. Agarrou-se ao púlpito para não cair. O microfone, ainda ligado, captou sua respiração ofegante, amplificando-a pelo sistema de som agora exageradamente potente para o salão esvaziado. Ouviu um murmúrio percorrer os poucos que restaram. Viu os rostos se virando para ele, buscando respostas, buscando o líder, o profeta que deveria explicar o inexplicável. Mas o que ele poderia dizer?
Viu ali, na terceira fila, a irmã Zélia, a fofoqueira contumaz da igreja, cujo veneno ele conhecia bem, mas que sempre dava um dízimo gordo. Viu o jovem Rafael, que ele quase expulsara por questionar sua interpretação sobre a proibição de tatuagens. Viu Seu Antenor, que bebia cachaça escondido nos fundos da oficina. Viu Dona Marlene, que todos sabiam que "lia a sorte" nas cartas para as vizinhas. Viu a si mesmo refletido nos olhos arregalados deles – os deixados para trás. Os réprobos. Os que não foram considerados dignos.
E os que foram? Irmã Judite, com sua língua ferina? Irmão Ananias, com sua ganância disfarçada de zelo? Kleber, o funkeiro? Não fazia sentido! A seleção divina parecera um sorteio macabro, uma piada cósmica de mau gosto. Ou talvez... talvez o julgamento fosse muito mais sutil e terrível do que ele jamais pregara. Talvez Deus enxergasse não os pecados óbvios, mas a podridão escondida no fundo da alma, a arrogância, a soberba, a fé usada como escudo para a vaidade...
Um suor frio brotou em sua testa engomada pelo gel fixador. O terno caro, importado, que ele usava como armadura de sua autoridade espiritual, pareceu subitamente pesado, sufocante.
"Irmãos...", ele começou, a voz saindo rouca, incerta, perdendo o timbre poderoso que hipnotizava as multidões. Tentou encontrar as palavras certas, as passagens bíblicas que pudessem oferecer algum consolo, alguma explicação. Mas sua mente estava um branco. O Apocalipse que ele tanto citava parecia agora um manual de instruções incompreensível para uma realidade que desafiava toda a sua teologia. "Irmãos... mantenham a calma... O Senhor... o Senhor age por caminhos misteriosos... Isso é... uma prova! Uma prova para os que ficaram! Para os fortes!"
As palavras soaram ocas, desesperadas, até para seus próprios ouvidos. Viu a dúvida, o medo e, pior, a acusação nos olhos dos poucos que o encaravam. Eles também sabiam. Sabiam que ele, o grande Pastor Jeremias, o arauto do fim dos tempos, tinha ficado para trás junto com eles. Sua autoridade, construída sobre a certeza e a promessa da salvação iminente, desmoronara junto com as roupas vazias nos bancos.
"O culto... está encerrado", ele murmurou, incapaz de sustentar os olhares. "Vão em paz... ou o que resta dela. E... orem. Orem muito."
Deu as costas para o rebanho diminuído e confuso e praticamente correu para a segurança de seu escritório pastoral, nos fundos da igreja. Trancou a porta atrás de si, o som da fechadura estalando alto no silêncio tenso. Encostou-se na madeira maciça, ofegante, o coração batendo descontrolado.
O escritório era seu santuário particular, um contraste gritante com a simplicidade forçada do salão principal. Móveis de couro escuro, um tapete persa (presente de um "irmão" empresário), ar condicionado central, um frigobar disfarçado de armário, e na parede, atrás de sua cadeira de presidente, um enorme quadro a óleo dele mesmo, com a Bíblia na mão e um olhar inspirado para os céus – uma encomenda cara, um tributo à sua própria importância.
Agora, aquele retrato parecia zombar dele. O Jeremias do quadro era o homem de fé inabalável, o escolhido. O Jeremias real, refletido no verniz da mesa de mogno, era um homem de meia-idade, suando frio, pálido, os olhos arregalados de puro terror existencial.
Ele caiu de joelhos no tapete macio. "Por quê?!", gritou para o teto, a voz finalmente explodindo em angústia e raiva. "Por quê, Senhor?! O que eu fiz?! Dediquei minha vida a Ti! Preguei Tua palavra! Construí esta obra! Enfrentei os escarnecedores! Por que me deixaste aqui? Com eles? Com os fracos, os mornos, os pecadores?!"
Esperou por uma resposta. Um trovão. Uma voz vinda dos céus. Qualquer coisa. Mas só o silêncio respondeu, um silêncio que agora parecia pesado, acusador.
Levantou-se, cambaleando. Foi até a Bíblia sobre a mesa, folheando as páginas com mãos trêmulas, procurando desesperadamente por uma explicação, uma brecha, uma profecia esquecida que justificasse sua presença ali. Lia passagens sobre a Grande Tribulação, sobre a marca da Besta, sobre o Anticristo... mas as palavras pareciam distantes, teóricas, desconectadas da realidade brutal do que acabara de acontecer. A teoria do fim do mundo era muito mais organizada do que o caos real lá fora.
Sua mente começou a vasculhar o passado em busca do pecado fatal. Teria sido a vaidade? O gosto pelo luxo que os dízimos generosos lhe proporcionavam? A forma como manipulava as emoções da congregação para conseguir mais ofertas? Aquele caso rápido e secreto com a esposa de um diácono anos atrás, que ele confessara diretamente a Deus (mas nunca ao marido traído)? Ou seria algo mais sutil? A dúvida que às vezes o assaltava nas madrugadas insones sobre a veracidade de tudo aquilo? O pequeno prazer que sentia ao condenar os outros do alto de seu púlpito?
Cada pensamento era uma agulha cravada em sua consciência. O Deus que ele pregava, o Deus justo mas implacável, parecia tê-lo pesado na balança e o encontrado em falta. E o julgamento fora aquele: ficar para trás. Viver o Apocalipse que ele tanto anunciara, mas do lado errado da história.
A noite caiu sobre a Praça Seca, trazendo consigo não a paz, mas um aprofundamento do caos e do medo. Sirenes distantes uivavam. Gritos esporádicos cortavam o ar. O cheiro de fumaça de algum incêndio começou a se infiltrar pelas frestas da janela do escritório. Jeremias continuava ali, encolhido em sua cadeira de couro, a Bíblia esquecida no colo, perdido num labirinto de culpa e pavor teológico.
Foi então que as sombras no escritório começaram a parecer... mais densas. Mais intencionais. A luz fraca da luminária sobre a mesa parecia tremeluzir, projetando formas estranhas nas paredes forradas de diplomas teológicos (alguns comprados, outros reais). Jeremias esfregou os olhos. Cansaço. Estresse.
Mas então, ouviu. Um sussurro. Tão baixo que poderia ser o vento no ar condicionado velho. Mas as palavras... eram suas. Frases de seus sermões mais inflamados, ditas num tom zombeteiro, quase infantil. "Os mornos serão vomitados!", o sussurro pareceu rir. "Os joios serão separados do trigo!"
Jeremias levantou a cabeça, o coração disparado. "Quem está aí?", perguntou para o escritório vazio, a voz um fio.
Ninguém respondeu. Mas sentiu um frio repentino no ar, um frio que não vinha do ar condicionado, mas que parecia emanar das próprias sombras nos cantos da sala. As sombras pareciam se contorcer, alongar-se, quase ganhar forma. E os olhos do seu próprio retrato na parede... pareciam segui-lo com uma expressão de acusação silenciosa.
Estou ficando louco, pensou. É o choque. A culpa.
Tentou rezar, mas as palavras familiares pareciam vazias, sem poder. Sua fé, antes uma rocha inabalável, era agora areia movediça. E sentia que estava afundando.
Foi quando a figura surgiu. Não de repente, mas como se sempre estivesse estado ali, numa das poltronas de couro em frente à sua mesa, oculta pelas sombras mais profundas até aquele momento. Não era um demônio chifrudo saído de uma gravura medieval. Era... elegante. Usava algo que parecia um terno escuro, muito bem cortado, mas que parecia absorver a luz em vez de refleti-la. O rosto era difícil de focar, como se estivesse sempre na penumbra, mas os olhos... os olhos brilhavam com uma inteligência antiga, divertida e completamente desprovida de compaixão. Havia um sorriso quase imperceptível nos lábios finos.
Jeremias ficou paralisado de terror, incapaz de gritar ou se mover.
"Pastor Jeremias Soares...", a voz soou diretamente em sua mente, suave como seda, mas fria como gelo. "O grande líder, o arauto do fim... deixado para trás. Que ironia exquisita, não acha?"
A figura fez um gesto com a mão pálida e de dedos longos. "Aquele que você serve... ou servia... tem critérios deveras... peculiares. Tanta devoção, tanto zelo... desperdiçados. Enquanto outros, tão mais... interessantes... foram levados."
O sorriso da figura se alargou minimamente. "Mas talvez não seja um castigo, pastor. Talvez seja... uma oportunidade."
Jeremias apenas encarava, mudo de pavor.
"Este mundo agora...", a voz continuou em sua mente, "...está órfão. Assustado. Precisando de direção. Precisando de líderes fortes, que entendam a natureza humana não como ela deveria ser, mas como ela é. Líderes que saibam usar o medo, a esperança, a culpa... ferramentas que você, pastor, maneja com tanta maestria."
A figura se inclinou ligeiramente para frente, os olhos brilhando nas sombras. "O tabuleiro foi virado. As regras antigas não valem mais. Há um novo poder em jogo. Um poder mais... pragmático. E ele reconhece o seu valor. Seu verdadeiro valor. Aquele que seu antigo Mestre, em sua... seletividade questionável... não soube apreciar."
A figura estendeu a mão pálida na direção de Jeremias. Não era uma mão ameaçadora, mas convidativa.
"Imagine, pastor. Um novo rebanho. Os deixados para trás. Sedentos por respostas, por ordem, por salvação. E você, guiado por uma força que não se prende a moralismos ultrapassados, pode oferecer tudo isso a eles. Pode construir um reino aqui mesmo, neste mundo abandonado. Basta... aceitar uma nova aliança. Um novo patrocínio."
A oferta pairou no ar frio do escritório. Poder. Controle. Relevância. Tudo aquilo que, no fundo mais sombrio de sua alma, Jeremias sempre desejara, escondido sob o manto da fé. Seu Deus o abandonara. Mas ali, nas sombras, outra entidade lhe oferecia um caminho. Um caminho terrivelmente tentador.
Olhou para a figura sombria, depois para seu próprio retrato na parede – o homem de fé que ele fingira ser. O conflito rasgou sua alma. O medo do inferno que ele tanto pregara lutava contra a amargura da rejeição divina e a sedução do poder terreno oferecido pelas trevas. A resposta não veio. Apenas o silêncio pesado do escritório, o som distante do caos lá fora, e o sorriso enigmático da figura que esperava, pacientemente, pela sua decisão. A verdadeira tribulação do Pastor Jeremias tinha acabado de começar.
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