Daiana desceu as escadas da casa como quem carrega o peso de dois mundos nas costas. As vozes na sala de Duda soavam distantes, como ecos de uma vida que já não lhe pertencia. Cada passo que dava parecia um esforço contra um turbilhão dentro de si.
Ela cruzou a porta em direção ao pátio e estacou de repente.
Domênico estava ali.
Parado, de braços cruzados, encostado em uma das colunas de pedra. Os olhos dele encontraram os dela com uma firmeza que fazia o chão tremer. Era como se ele já soubesse. Como se tivesse sentido no ar a despedida iminente.
Ela tentou sustentar aquele olhar, mas seus olhos começaram a marejar. O coração batia forte, como se quisesse gritar o que ela não tinha coragem de dizer.
— Dom… — ela sussurrou. — Eu não consigo.
Ele não reagiu. Apenas respirou fundo, apertando a mandíbula.
— Eu sinto muito — continuou ela. — Eu tentei. Tentei muito. Mas cada vez que olho pra você, me lembro da dor. Me lembro do cativeiro, do tiro, da minha mãe morta… Eu não consigo viver com tudo isso latejando dentro de mim. Não aqui.
Ela fez uma pausa, respirando fundo, sentindo as lágrimas queimarem os olhos.
— Vou voltar pro Brasil. Quero ir ao cemitério ver o túmulo da minha mãe. E depois... depois eu volto pra minha casa. Lá é onde consigo respirar. Onde ainda tenho algum controle.
Domênico soltou os braços e deu um passo à frente. Seus olhos estavam vermelhos, mas não havia raiva — apenas tristeza. Tristeza e aceitação.
— Eu já sabia, Daiana. Só estava esperando minha mãe me confirmar.
O silêncio entre eles foi esmagador.
— Vai em paz — ele disse, com a voz baixa e contida. — Da minha parte, tudo o que podia fazer, eu fiz. A quadrilha que te sequestrou está desmantelada. O homem que atirou em você... morto. E os que fizeram mal à sua mãe… todos pagaram. Eu cumpri minha parte.
Ele respirou fundo, tentando manter a postura ereta diante do que sentia.
— Isso é um adeus, Daiana. Até nunca mais.
Ela deu um passo em falso, como se o corpo quisesse correr para ele, mas o coração a traía. Ou talvez fosse o medo — o velho medo que ainda a prendia como correntes invisíveis.
Domênico se virou e caminhou rumo à saída. Suas costas largas desapareceram no corredor, e ele não olhou para trás nem uma vez. Mas ela… ela ficou ali, parada, congelada entre o impulso de correr atrás e a certeza dolorosa de que não conseguiria ir adiante com ele.
Ela se sentia quebrada demais.
Com as mãos trêmulas, limpou as lágrimas antes que as amigas a vissem. Forçou um sorriso quando se juntou a elas, mas seu olhar permaneceu preso na última sombra de Domênico. Um pedaço do seu coração ainda queria lutar por eles, mas o medo — ah, o medo — ainda era mais alto que a voz do amor.
E naquele instante, Daiana entendeu: não se tratava de não amá-lo. Ela o amava, sim. Com tudo o que tinha. Mas não sabia se conseguiria ser inteira ao lado dele. Não agora. Não ainda.
Horas depois, as malas estavam prontas. Ela partiu com a família rumo ao aeroporto, sem olhar para trás, sem esperar mensagens, sem prometer retornos. No fundo, sabia que voltar para aquele lugar significaria enfrentar mais do que apenas lembranças — significaria enfrentar a si mesma.
Do outro lado da cidade, Domênico entrou em casa em silêncio.
Fechou a porta e deixou-se afundar na poltrona da sala. O relógio fazia um tique-taque contínuo, como se marcasse o fim de algo que ele não sabia se um dia começou de verdade.
Ele levou a mão ao peito. Doía. Mas não era físico. Era aquele tipo de dor que vem quando você dá tudo e mesmo assim perde. Mas havia alívio, também. Um alívio duro, seco, mas presente.
Levantou-se, foi até a janela e olhou para o céu noturno.
— Ciclo encerrado — murmurou. — Missão cumprida.
Ele enxugou as lágrimas que teimavam em cair e deixou que o silêncio reinasse por um momento.
Logo depois, pegou o celular e ligou para René pai Biológico de Luiggi e Luíza
— Assim que o casamento dos meus irmãos acabar, reúna os conselheiros da família Moreal. Está na hora de assumir o que me cabe.
— Tem certeza? — perguntou René, do outro lado da linha.
René já estava de volta na França havia voltado logo depois o almoço de comemoração da Vitória então o pai biológico de Luiggi já iria preparar tudo para que ele assumisse o cargo assim que o filho e Arthur se casasse
— Absoluta. Chega de esperar por quem não sabe se quer caminhar do meu lado. Eu vou liderar. Vou seguir. Sem arrependimentos.
Domênico começou a planejar o futuro naquela mesma noite. Cada decisão tomada era uma muralha a mais entre ele e tudo o que sentira por Daiana. Ele não a odiava, jamais conseguiria. Mas aprendeu, da forma mais dura, que o amor não basta quando o medo é mais forte.
Enquanto isso, Daiana, sentada no avião ao lado da irmã, olhava pela janela, o rosto calado, os olhos perdidos no escuro.
Ela ainda pensava nele.
Mas não se arrependia.
E talvez isso fosse o mais triste de tudo.
E assim terminou uma história de amor que poderia ter sido épica — mas que não teve as condições certas para florescer.
A manhã nasceu preguiçosa na Sicília, com o céu tingido de tons dourados e o aroma das oliveiras dançando no ar. Era uma daquelas manhãs em que tudo parecia querer durar mais. Como se até o tempo compreendesse que era o último dia de Domênico naquela casa, naquele lar, naquele chão que o viu crescer e sangrar.
Luciana estava na cozinha, mas não mexia em nada. A chaleira chiava no fogão, esquecida, enquanto ela olhava para a cadeira vazia à mesa, a que Domênico sempre usava. Seu coração de mãe, que já aprendera a se dividir entre as partidas dos filhos mais velhos, agora lutava contra a dor silenciosa de ver o último, o caçula, partir. E não para o outro lado do oceano, mas ainda assim longe o suficiente para deixá-la com um vazio do tamanho da ausência.
Ele apareceu à porta carregando duas malas e o coração apertado. Parou ali, em silêncio, observando a mãe. Ela o encarou e, por um instante, ambos pareceram voltar no tempo. Ao menino de olhos sonhadores que pedia colo quando o mundo era demais.
— Mama...
Luciana correu até ele e o abraçou com força, como se pudesse impedir o tempo de levá-lo.
— Meu filho... meu bebê. O último a sair debaixo da minha asa. Você tem certeza?
Domênico acariciou o rosto dela, os olhos já marejados.
— Mama, se eu pudesse, levaria essa casa comigo. Cada cheiro, cada canto... cada abraço seu. Mas tá na hora de ir. De me encontrar fora daqui.
Mateus entrou na sala nesse instante, parando ao lado da esposa, com o semblante firme, mas os olhos úmidos.
— Você está pronto, filho. Sempre esteve. Só precisava acreditar nisso. E agora é a hora.
Domênico sorriu, tocado pelas palavras do pai.
— Eu sempre fui um pedaço de vocês dois. O que eu sou hoje... o homem que estou tentando ser... é porque vocês me moldaram com amor. Com paciência. Com exemplo. Mesmo nos dias difíceis, vocês nunca deixaram de me amar.
Luciana limpou as lágrimas que começavam a escorrer.
— Amor de mãe nunca cansa, filho. Nunca falha. Eu só quero que você seja feliz. Que encontre em Paris um recomeço, uma esperança. Que tudo aquilo que um dia doeu em você, vire ponte. E não prisão.
— E se o mundo pesar, se a saudade bater forte — disse Mateus, colocando uma das mãos sobre o ombro do filho — volte pra casa. Você não está indo embora. Está levando a gente com você.
Domênico se afastou um pouco para olhar nos olhos deles.
— Obrigado por tudo. Por me acolherem quando eu me perdi. Por me ensinarem o valor da palavra, do respeito, da humildade. Por me fazerem homem... sem que eu deixasse de ser filho.
Luciana desabou num choro silencioso, e Mateus a amparou enquanto Domênico os abraçava mais uma vez. Era uma despedida que cortava, mas também curava. Porque era feita de amor.
Eles o acompanharam até o carro. A estrada que levava ao aeroporto parecia mais comprida naquela manhã, como se o caminho estivesse tentando adiar o inevitável.
Luciana segurou a mão dele pela última vez antes de ele entrar.
— Manda mensagem quando chegar. E não esquece de comer direito. E usa o cachecol que eu pus na mala, Paris é fria nessa época.
— Eu prometo, mama. Prometo tudo. E se eu errar, vou lembrar que posso voltar. Porque eu tenho onde recomeçar.
Mateus assentiu, e num gesto silencioso, entregou ao filho uma arma antiga mais potente .
— Foi do seu nono. Levou com ela ele ganhou várias batalhas. Agora é sua.
Domênico o segurou com força.
— Obrigado, papa.
O carro partiu devagar, e Domênico olhou pelo vidro de trás até os pais desaparecerem no horizonte da estrada. Ficou em silêncio, segurando o terço com uma mão e o coração com a outra.
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Paris, dois dias depois
A cerimônia de posse aconteceu em um prédio histórico de arquitetura neoclássica. Domênico, agora de terno escuro e gravata discreta, caminhava com a postura de alguém que carregava mais do que um cargo: ele carregava um legado.
Luciana e Mateus chegaram cedo, acompanhados de Amélia e René. O salão estava repleto de rostos importantes da sociedade francesa e aliados estratégicos da família Castellazzo.
Quando Domênico subiu ao palco, um silêncio reverente se formou. O rapaz que havia saído da Sicília cheio de dores agora se erguia diante deles como um homem inteiro.
— Há alguns dias, deixei minha casa na Sicília. Deixei meus pais, minha história, minhas lembranças. E vim para cá não em busca de poder, mas de sentido. Carrego comigo tudo o que aprendi com minha família: lealdade, firmeza e fé. Essa será minha bússola em Paris.
Luciana apertou a mão de Mateus com orgulho. Do outro lado, Amélia observava Domênico com ternura. Depois da cerimônia, ela se aproximou de Luciana com um sorriso cálido.
— Ele é forte. E sensível. Vai se sair bem aqui.
Luciana sorriu, ainda emocionada.
— Ele sempre foi o mais ligado à casa... O que mais sentia quando um irmão saía. Agora é ele.
— Luciana... — disse Amélia, tocando gentilmente seu braço — eu sei que não posso ocupar o seu lugar. E nem quero. Mas posso ser, para ele, uma extensão do seu cuidado. Fui a mãe de Luiggi quando você não pôde. Agora, quero ser a mãe francesa do seu filho.
Luciana deixou que as lágrimas caíssem, dessa vez sem tentar esconder.
— Obrigada... De verdade. Saber que ele tem vocês aqui me dá paz.
— O lar que construímos também será lar para ele, se ele precisar — completou Amélia, com doçura.
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Mais tarde, no terraço do prédio da nova sede, Domênico observava a cidade. A Torre Eiffel piscava ao longe, imponente e poética. Luciana se aproximou devagar e abraçou o filho por trás.
— Paris é linda. Mas eu ainda prefiro o cheiro do nosso café fresco e do pão quente da nossa mesa.
— Um dia, mama. Um dia eu trago tudo isso pra cá. Nem que seja no coração.
Mateus se juntou a eles, olhando o filho com orgulho.
— A Sicília te fez. Paris vai te moldar. Mas nunca deixe que te mude.
Domênico fechou os olhos por um instante, absorvendo aquela presença.
— Onde vocês estiverem... é onde está o meu lar.
Ali, com os olhos voltados para o futuro e o coração ainda cheio do passado, Domênico selava o começo de uma nova etapa. Paris era agora sua cidade. Mas a Sicília... sempre seria o seu porto.
O salão luxuoso no coração de Paris ainda ressoava com o som discreto de taças brindando e risos contidos. A celebração da posse de Domênico como o novo Dom daquela estrutura velada — mais que uma festa, era um marco silencioso na história das famílias envolvidas. Tudo ali tinha peso: o vinho servido, as palavras ditas, os olhares trocados. A partir daquela noite, Domênico não era mais apenas o caçula da Sicília — era o rosto da nova ordem no submundo francês.
Domênico, de terno preto impecável, recebia os convidados com uma postura que misturava elegância e sobriedade. À sua esquerda, Arthur, o irmão mais velho e líder absoluto da LME, lhe estendia um copo de whisky.
— Ao nosso novo Dom. A Sicília agora tem voz firme em Paris. — Arthur brindou, olhando nos olhos do irmão.
— Você sempre disse que um dia eu teria que ocupar meu lugar. — Domênico sorriu de lado. — Aconteceu mais rápido do que eu imaginava.
— Nem sempre escolhemos o tempo, irmão. Às vezes é o tempo que escolhe a gente. — completou Arthur, firme.
Luiggi se aproximou logo depois, com o charme típico de um homem que comandava a máfia Debois com o toque de um rei moderno. Ele abraçou Domênico forte, como se fosse mais velho, embora fossem da mesma geração.
— Paris é sua agora, Domenico. Mas nunca se esqueça: ela tem suas armadilhas. — falou com um sussurro carregado de significado.
— Eu sei. Mas o que é meu, ninguém vai tomar.
— Assim que se fala. — disse Luiggi, orgulhoso.
Mais afastado, Jean observava os irmãos em silêncio, o olhar atento, o rosto mais fechado. Desde que assumira a máfia Macron — outrora liderada por François, seu antigo algoz — Jean se tornara um homem difícil de decifrar.
— Jean... — Domênico o cumprimentou com um aperto de mão firme.
— Desejo sorte. Você vai precisar. A França é mais traiçoeira do que parece. — respondeu Jean, e embora o tom fosse ríspido, Domênico notou ali um resquício de cuidado fraternal.
— E você, vai continuar sumido?
— Sumido, não. Apenas fora dos holofotes. Mas se precisar de mim, saberá como me encontrar.
O reencontro dos irmãos, mesmo com silêncios e palavras duras, era carregado de significado. Eles vinham de histórias entrelaçadas por sangue e máfias, perdas e vitórias. A presença de todos ali selava o início de uma nova era.
Mateus e Luciana observavam tudo à distância. Luciana segurava o braço do marido com orgulho visível nos olhos.
— Nosso menino... — sussurrou ela. — Virou um Dom.
— Mas continua sendo nosso filho. Que nunca se esqueça disso. — respondeu Mateus com firmeza.
Amélia e René Debois se aproximaram em seguida. René, com a calma e austeridade de um lorde francês, entregou um envelope a Domênico discretamente.
— Amanhã você será oficialmente o novo CEO da empresa. Os papéis estão aqui. E os desafios também.
— Estou pronto, René. — respondeu Domênico, confiante.
— Veremos. A empresa é uma fachada... mas uma fachada exige jogo de cintura, controle e visão. É nela que lavamos milhões por ano. E nos últimos meses, os negócios estagnaram. Quero ver do que você é feito.
Amélia tocou o ombro de Domênico com carinho.
— Seja firme. E justo. A França vai te testar. Mas você é um Castellazzo. Está no sangue.
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A manhã seguinte – A primeira reunião
O prédio de fachada espelhada no 16º arrondissement de Paris refletia o sol de primavera. Domênico chegou cedo, vestindo um terno cinza escuro. René o esperava na recepção da empresa, acompanhando-o até a sala principal.
— Bem-vindo ao seu novo império. — disse, abrindo a porta da sala do CEO.
Ao entrar, Domênico foi imediatamente tomado por uma atmosfera corporativa que escondia muito mais do que gráficos e planilhas. Painéis digitais mostravam relatórios financeiros, exportações, contratos fictícios. Mas René o guiou até um painel lateral escondido.
— Aqui estão os números reais. — revelou, tocando uma senha em um biométrico escondido. — Os contratos verdadeiros. Os fluxos de dinheiro sujo. Tudo o que circula pelas mãos da máfia.
Domênico analisou os dados com atenção. Percebeu rapidamente que metade dos contratos estavam suspensos. Os fluxos estavam abaixo do normal. A máquina estava emperrada.
— Por que pararam?
— Depois da queda de François, houve medo. Alguns parceiros sumiram, outros aguardam o novo Dom. — explicou René. — Cabe a você trazer de volta a confiança... ou substituí-los por novos aliados.
Domênico respirou fundo.
— Preciso conhecer cada operação. Cada nome, cada canto escuro dessa estrutura. E depois, preciso limpá-la. Não de sujeira... mas de fraquezas.
— Boa resposta. A empresa está nas suas mãos agora. A máfia... também.
René deixou a sala, e Domênico permaneceu ali por longos minutos, observando Paris pela janela. Lá embaixo, vidas comuns passavam sem imaginar o império silencioso que operava acima de suas cabeças.
Ele se virou para a mesa, abriu o primeiro relatório e começou a anotar.
Estava na hora de trabalhar. De provar que era mais do que o último filho a deixar o lar.
Era hora de mostrar que podia ser Dom de Paris.
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