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Família Ferrari 6- Felipe Entre o Amor e a Guerra

O Chamado do Coração

O mar da Sicília estendia-se em tons de azul acinzentado diante dos olhos de Felipe Castellazzo Ferrari, mas ele não o via. Sentado no terraço da propriedade da família, com uma xícara de café já frio entre os dedos, ele estava alheio ao tempo, ao som das ondas e à brisa leve da primavera que balançava as cortinas de linho.

Há meses, ele vivia com uma imagem gravada em sua mente. A imagem de uma menina quebrada, frágil, quase irreconhecível, que tremia em meio ao caos de um galpão tomado por traficantes de pessoas. Nayara Fernandes. Desde que a viu, desde que a tirou daquele inferno, ele nunca mais foi o mesmo.

...

Dois meses antes – Arredores de Milão

Felipe observava os monitores dos drones e as câmeras de calor com o cenho franzido. A equipe da LME enfrentava forte resistência da quadrilha e ele precisava coordenar a retirada de sobreviventes. Mas então, viu algo que fez seu coração parar por um segundo.

Um homem alto, robusto, arrastava uma das meninas para os fundos do galpão. Ela era pequena, frágil, os cabelos colados ao rosto por causa da água gelada que jorrava de um cano rompido. Seus braços estavam feridos, e o corpo, coberto por roupas mínimas e encharcadas, tremia.

— Droga... é ele! — murmurou Felipe. — Adolf!

Largou os controles, sacou a arma e correu pelos corredores em meio aos disparos. A equipe enfrentava uma resistência brutal, mas Felipe desviava como um raio, focado em apenas uma coisa: impedir aquele monstro.

Adolf arrastava a garota com brutalidade, ignorando seus choros fracos. Felipe virou o corredor, mirou e atirou. O impacto acertou a perna de Adolf, que caiu com um grito rouco, largando a menina. Ela desabou no chão, encolhida contra a parede de metal.

— Está tudo bem agora — disse Felipe, jogando-se ao lado dela, sem fôlego.

Ela não respondeu. Chorava silenciosamente, abraçando os próprios joelhos.

Felipe tirou a jaqueta da LME e a envolveu com cuidado.

— Você está segura. Acabou. Ninguém mais vai te machucar.

Ele acionou o rádio:

— Um agente da LME, comigo! Adolf está ferido, imobilizado. Levem-no para a cela móvel, imediatamente!

Dois soldados chegaram e algemaram Adolf. Felipe olhou para a menina de novo. Era quase uma mulher, mas parecia uma criança. Pegou-a nos braços com delicadeza.

— Vamos tirar você daqui, anjo.

Lá fora, os médicos e agentes estavam prontos para receber as sobreviventes. Felipe correu com ela nos braços. Quando cruzou os portões, os agentes o ajudaram a acomodá-la. Ela o olhava com olhos arregalados, como se ele fosse o primeiro rosto humano que via em anos.

...

Presente – Sicília

Desde aquele dia, Felipe não teve paz. Sabia apenas o nome dela: Nayara Fernandes. Ela fora encaminhada ao Brasil por uma ONG, recomeçou. E ele respeitou.

Mas seu coração não esqueceu.

Durante esse tempo, ele esperou. Primeiro pelos preparativos do casamento dos primos Arthur e Luiggi. Depois, mais 45 dias, até que Arthur voltasse da lua de mel no Maranhão e retornasse à Itália para dar fim à última integrante da quadrilha, Albertina, a aliciadora. Sofia iniciou a operação, mas, por estar grávida, quem a finalizou foi Isadora.

Com a morte de Albertina, Arthur voltou ao Maranhão para apresentar seus pais adotivos, Mateus e Luciana, à família biológica. Passaram mais quinze dias lá. E só então Felipe sentiu que podia partir.

Naquela noite, seu pai entrou no terraço, notando o olhar distante do filho.

— Você ainda pensa nela, não é?

Felipe não tentou disfarçar.

— Todos os dias.

O pai sentou ao seu lado, em silêncio por um tempo. Depois, disse:

— Então não espere mais. Se algo ou alguém chama seu coração assim, você não pode ignorar. A vida é curta demais para dúvidas eternas.

Felipe sorriu, tocado.

— Obrigado, pai. Eu precisava ouvir isso.

Horas depois, ele enviou uma mensagem de voz a Arthur, líder da LME:

— Arthur, eu preciso ser honesto com você. Não sei por quanto tempo estarei fora, mas quero que saiba onde estarei, caso precise de mim. Estou indo para o Brasil. Vou atrás do que meu coração pede. Nayara. Eu não sei onde ela está. Não sei se me reconhecerá. Mas preciso tentar.

Arthur respondeu:

— Felipe, você é parte fundamental da LME. Obrigado por avisar. Se precisar de algo, estamos aqui. E se ela é o chamado do seu coração... então siga. Que você a encontre.

Felipe desligou o celular, pegou sua mochila e desceu para o carro.

Não sabia que, do outro lado do oceano, Nayara também vivia em guerra com memórias que não contava a ninguém. Um passado marcado por um nome que ele ainda desconhecia: Caveira.

Mas ele descobriria.

Tudo começava agora.

Felipe

Grito de liberdade

Acordar sem correntes. Sem gritos. Sem medo.

Era um luxo que Nayara Fernandes ainda estava aprendendo a aceitar. Os dias pareciam mais leves, mas as noites… ainda eram longas demais. Ela acordava suada, o coração acelerado, com o nome de Adolf queimando em sua garganta. E às vezes, o pesadelo trazia também a figura de Caveira, a ameaça silenciosa que ainda rondava seus passos mesmo a quilômetros de distância.

Desde que voltou ao Brasil, Nayara se instalou na zona rural de Nova Iguaçu, num canto isolado e quase esquecido, onde a vegetação alta e as ruas de terra escondiam sua presença do mundo. Era o local mais afastado que conseguiu encontrar, longe do Morro do Alemão, longe da ONG, longe de tudo… mas ainda dentro do estado do Rio, pois não queria romper de vez com a única família que restava: suas amigas, e a esperança representada pela ONG Ana Clara Castellazzo.

Ela se lembrava vividamente do dia em que reencontrou Isadora, Daiana e Sofia. Três rostos que julgava perdidos para sempre, apagados pelas mãos cruéis da quadrilha de Adolf. Mas ali estavam elas, vivas, fortes, com marcas na alma, mas sorrisos no rosto. A ONG promovia um evento de acolhimento quando se viram pela primeira vez. E antes que qualquer palavra fosse dita, os corpos se chocaram em um abraço desesperado, seguido por lágrimas e o grito que rasgou o céu:

— Liberdade!

O grito saiu de todas ao mesmo tempo, como um eco de tudo que haviam suportado. Naquele instante, pétalas de rosas brancas começaram a cair sobre elas como uma benção do céu. Balões brancos subiam aos céus, carregando os nomes das meninas que não conseguiram escapar. Era luto e renascimento. Era perdão e resistência. Era vida.

E foi no meio daquela chuva de pétalas e céu coberto de balões brancos que Nayara o viu.

Felipe.

O homem que a tirara das garras de Adolf. O herói que apareceu quando ela já não acreditava em salvação. Ele estava ali, parado ao longe, observando. E por um instante que pareceu eterno, os olhos dele encontraram os dela.

Olhos que não traziam piedade, mas ternura. Não havia cobrança, nem expectativa. Apenas o olhar calmo de alguém que dizia, em silêncio: “você está segura agora.”

Ela jamais esqueceria aquele momento.

Aquela troca muda, emoldurada por flores brancas caindo do céu e balões como pequenos sinais de libertação. Foi a última vez que o viu. E, mesmo que não tenha tido coragem de se aproximar, aquele olhar ficaria gravado em sua memória para sempre — como um selo de vida nova, um sussurro silencioso de esperança.

Adolf não era apenas um monstro. Ele era um obcecado. Tinha uma fascinação doentia por Nayara e Sofia. Às vezes os abusos vinham juntos, como um teatro de horrores onde elas eram as vítimas principais. Essa dor ainda sangrava, mesmo com as cicatrizes fechadas.

E ainda havia Caveira.

Ela não sabia onde ele estava, mas sabia que, se descobrisse seu paradeiro, viria atrás dela. Foi por isso que, logo após a ONG garantir seus documentos e um pequeno auxílio financeiro, Nayara desapareceu da vista deles. Mudou-se sem deixar rastros. Evitava redes sociais, evitava contato direto, só mantinha um celular simples para emergências. Em sua nova rotina, era quase uma sombra. Uma mulher que existia sem ser vista.

Ela morava em uma pequena casa alugada, escondida entre a mata e as estradas de barro de Nova Iguaçu. Costurava roupas para uma loja de roupas modestas da região, e isso bastava para pagar o aluguel e os mantimentos. Os dias eram silenciosos. As noites, frias. Mas o medo era o mesmo.

E, às vezes, quando o vento batia mais forte, ela fechava os olhos e via os dele.

Felipe.

Ela não sabia seu sobrenome, nem de onde vinha. Apenas que usava o uniforme da LME, que sua voz era firme e suave ao mesmo tempo, e que ele a chamou de "anjo" enquanto a tirava do inferno. Seu rosto era como um reflexo de esperança inalcançável. Como se fosse alto demais para tocar.

“Ele nunca vai saber”, pensava ela. “Nunca vou ter coragem de dizer obrigada.”

Mas por dentro… por dentro, algo ainda queimava.

E era isso que a fazia continuar.

Porque se aquele homem existia… então talvez houvesse um lugar para ela no mundo. Um lugar onde pudesse viver sem fugir. Sem sombras. Sem medo. Um lugar onde, finalmente, pudesse deixar de ser apenas sobrevivente… e começar a ser feliz.

Nayara

Um Ano sem Nayara

O relógio marcava 18h12 quando a explosão de um copo de vidro contra a parede ecoou pelo salão do casarão no alto do Morro do Alemão. O sol morria devagar atrás das lajes e fios embolados, tingindo o céu com aquele tom alaranjado que mais lembrava ferrugem do que qualquer beleza de pôr-do-sol. Lá dentro, no coração do império de Caveira, o caos tomava forma.

Caveira, o homem mais temido da favela, estava possuído por uma fúria crua. Seu corpo trêmulo de raiva e entorpecido pelo excesso de drogas mal se mantinha ereto. Os olhos vermelhos — mais de cocaína do que de choro — varriam o salão em frenesi. O ar pesado de cigarro e suor grudava nas paredes como a lembrança dela: Nayara.

— UM ANO! — ele berrou, com a garganta arranhando, cuspindo ódio com cada sílaba. — UM ANO, CARALHO!

Com um soco seco, estourou a madeira da mesa principal, que já vinha suportando outras tantas crises. A estrutura finalmente cedeu sob a ira do traficante e desabou com um estalo grave, ecoando como trovão dentro do cômodo. Garrafas tombaram, papéis voaram, os copos rolavam entre os estilhaços.

— COMO É QUE VOCÊS NÃO ME TRAZEM NADA?! — gritou, girando o corpo com brutalidade para encarar os cinco soldados perfilados à sua frente. — NEM UM RASTRO?! NEM UMA FOTO, UMA FOFOCA, UM SUSSURRO?!

Gato, o mais novo entre eles, abriu a boca para falar algo. Arrependimento imediato.

— Cala essa merda antes que eu enfie a bala no teu paladar, filho da puta! — Caveira avançou dois passos com a mão no cabo da pistola. — Fala mais uma vez que não tem pista que eu te enterro no beco da Sinuca, onde ela sumiu!

O silêncio pesou. O medo era palpável. Ninguém ousava respirar mais alto.

Caveira voltou a andar em círculos. Parou em frente à prateleira de vidro, tirou uma garrafa de uísque quase vazia, virou dois goles como se fosse água. Então, meteu a mão no bolso e puxou um pacotinho de pó branco. Sem cerimônia, despejou sobre o tampo da bancada, usou a tampa de um celular antigo como base e aspirou com fúria.

As pupilas dilataram.

— Eu esperei por ela. Ali. Na entrada do morro. Todo mundo viu. Ela voltava do trabalho, cansada... linda... com aquela expressão cansada, os olhos baixos. Eu parei ela. Disse: "Fica. Só aceita ser minha. Você vai ser a rainha. Eu vou te dar tudo." — Ele parou, os olhos fixos num ponto invisível. — Ela disse que ia pensar. Disse isso... e sumiu.

Ele cuspiu no chão, depois chutou uma das cadeiras que caiu girando até bater na parede.

— NO OUTRO DIA SAIU PRA TRABALHAR E NUNCA MAIS VOLTOU! — rugiu.

Veias saltavam em seu pescoço. O suor escorria pelas têmporas. Ele chutou a televisão que já estava com a tela rachada. O estrondo da explosão elétrica se misturou ao seu grito.

— Ela não levou mala. Não levou mochila. Nem avisou ninguém. Só... desapareceu!

Seus dedos tamborilavam frenéticos no coldre da arma. Ele correu até a bancada de som, puxou o rádio comunicador e o arremessou contra o chão. Depois o pisoteou até virar um monte de peças estilhaçadas. Não satisfeito, pegou o suporte de um dos ventiladores e arremessou na direção da escada.

— Eu fui bom pra ela. Diferente. Dei espaço. Dei voz. E ela sumiu como se eu fosse lixo. Como se eu fosse um maldito monstro! — Caveira gritou, a voz falhando, cada palavra arranhando como navalha. — MAS EU NÃO ERA. NÃO PRA ELA!

Caminhou cambaleando até a gaveta. De lá, tirou a única coisa que guardava com algum carinho: uma foto. Nayara, sentada num banco, rindo. Os olhos brilhando.

— Ela era minha chance. Minha luz. A única coisa que eu quis sem sangue. — Ele sussurrou, quase com doçura, até que a fúria voltou. — E agora... NEM UM DE VOCÊS TEM UMA PUTA PISTA?

Seus punhos se fecharam. Então ele voou sobre Canelinha, o soldado mais antigo, derrubando-o com um soco seco. Subiu em cima do homem, esmurrando sem parar.

— VOCÊ DISSE QUE IA RASTREAR AS AMIGAS! DISSE QUE IA VER NAS IGREJAS! DISSE QUE IA PRESSIONAR A MÃE DELA! MENTIROSO! MERDA! — Cada palavra vinha com um soco.

Os outros tentaram separar. Caveira empurrou dois, sacou a pistola e apontou.

— ENCOSTOU EM MIM EU ATIRO! EU MATO! — Ele gritava.

Seu peito arfava. Suado. Alucinado. O mundo girava, e ele cheirava mais. Bebia mais. Gritava mais.

— EU QUERO ELA DE VOLTA! NEM QUE EU TENHA QUE DERRUBAR CADA TIJOLO DESSE RIO!

Silêncio. Um dos soldados, já em prantos, ficou ajoelhado.

— A gente tá tentando, chefe...

Caveira deu um tiro no teto.

— TENTANDO NÃO BASTA! EU QUERO RESULTADO!

Foi até o espelho, encarou o reflexo. A barba por fazer. Os olhos fundos. O rosto sujo. Um rei em ruínas.

— Você fugiu de mim, Nayara... mas eu vou achar você. Eu JURO que vou achar. Nem que o inferno abra as pernas pra mim. Eu vou entrar. Eu vou te trazer de volta... nem que eu tenha que morrer tentando.

E ali, naquele fim de tarde podre, Caveira gritou mais uma vez, arrancando o espelho da parede com brutalidade e o jogando no chão. Os cacos se espalharam como os estilhaços do homem que, por dentro, já estava morto desde o dia em que ela se foi.

Caveira

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