Cloto (aquela que fia o fio):
"Em eras que os homens já esqueceram,
quando os Deuses caminhavam entre os mortais
e o céu escutava os sussurros da terra…
os fios do Destino dançavam em harmonia."
Láquesis (aquela que mede o fio):
"Havia ordem. Havia temor.
Altares eretos, preces murmuradas ao vento.
As oferendas ardiam sob a lua cheia
e os nomes sagrados eram semente no coração dos homens.
Naquela época, antes do esquecimento,
antes que os Deuses fossem relegados aos livros e estátuas,
houve um amor.
Um amor que ousou.
Um amor que rompeu os tecidos que nem nós ousávamos tocar."
Átropos (aquela que corta o fio):
"Um Deus de asas douradas.
Uma mortal de alma viva.
Ambos cruzaram os limites do que era permitido.
E por isso... todos foram tocados.
A queda começou ali —
não por ira, mas por escolha.
Não por castigo, mas por consequência.
O tempo avançou.
Os templos silenciaram.
Os Deuses recolheram seus brilhos às sombras
e nós, que tudo vemos, entrelaçamos uma nova chance."
Cloto (retomando o fiar):
"Agora…
em outra era, em outra pele,
outros nomes caminham os mesmos passos.
Ainda não sabem, mas o fio que os une
foi tecido muito antes do primeiro olhar."
Láquesis (medindo o caminho que virá):
"Eles se reconhecerão.
Eles cairão, como antes."
Átropos (finalizando, mas ainda sem cortar):
"Mas desta vez, quem sabe…
o amor aprenda a permanecer.
E nós…
Estaremos observando.
Tecendo.
Esperando."
O sussurro das Moiras ainda ecoava no tecido invisível do mundo quando, em um palácio esquecido pelos olhos humanos, duas presenças eternas observavam o céu. Eros, o Deus de asas douradas, reclinava-se sobre uma escadaria de mármore, seus olhos voltados para o firmamento pontilhado de estrelas. Ao seu lado, Psiquê, envolta em um manto de seda translúcida, repousava a cabeça em seu ombro. O vento morno da noite serpenteava pelos corredores vazios, trazendo o perfume das flores que cresciam nas bordas do mundo, onde mais nenhum mortal ousava pisar.
Eros – O céu mudou... Comentou em voz baixa, quase como quem teme acordar os próprios astros. – Mudamos nós também? Ou foi apenas o mundo que se esqueceu?
Psiquê sorriu, com a serenidade de quem havia conhecido as profundezas do amor e da perda. – Talvez um pouco de cada, meu amor. Respondeu ela, acariciando as penas douradas de sua asa. – Os homens agora cultuam a si mesmos. Escreveram suas próprias epopeias. Erguem templos invisíveis à glória de suas próprias conquistas.
Eros fechou os olhos por um instante, como se cada palavra de Psiquê cravasse nele uma lembrança antiga. – Já não clamam pelos Deuses... Murmurou ele. – Já não imploram por favores nas noites de tempestade. Não deixam mais oferendas às margens dos rios. Não entoam mais nossos nomes nas alvoradas.
Psiquê assentiu, com tristeza. – Tornamo-nos lendas. Disse, enquanto acariciava a mão de seu amado. – Histórias que passam de boca em boca, mas que cada geração acredita menos. Em breve, até as histórias desaparecerão. Restarão apenas os ecos.
Por um momento, o silêncio se instalou entre eles, tão vasto quanto o céu que contemplavam.
Eros – E mesmo assim... Ele quebrou o silêncio, com um brilho suave no olhar – Ainda há amor entre eles. Ainda há olhares que se buscam no meio da multidão. Ainda há corações que aceleram ao primeiro toque. O amor persiste, Psiquê. Talvez nós tenhamos ensinado algo que nem a morte da fé pode apagar.
Psiquê virou-se para ele, tocando seu rosto com ternura. – Talvez o amor seja a única coisa que realmente transcende... Mesmo quando os altares ruíram, mesmo quando os templos se apagaram, o amor permaneceu. Frágil, sim. Mas também forte, de uma forma que nem sempre compreendemos.
Eros riu suavemente, aquele riso que parecia carregar o peso e a leveza de mil primaveras. – Ainda assim, é doloroso. Saber que somos esquecidos. Saber que o brilho das estrelas que acendemos um dia agora é confundido com a fria matemática dos homens.
Psiquê – O esquecimento também é parte da história, meu amor. Ela o consolou. – É preciso ser esquecido para que se possa renascer de outra forma. Nada permanece o mesmo para sempre.
Eros olhou para ela, como se buscasse nos olhos da amada uma âncora para sua imortalidade tão solitária. – Como nós. Disse ele. – Mudamos tanto... e ainda assim, aqui estamos. Ainda te amo como da primeira vez que toquei tua alma.
Psiquê sorriu, e seu sorriso era um poema escrito nas bordas do infinito. – E eu a ti. Somos, Eros, o que resta quando tudo o mais desaparece.
Eles ficaram ali, entre o tempo e o silêncio, assistindo os astros moverem-se lentamente no céu esquecido. E em meio à vastidão da noite, Psiquê tornou a pousar sua mão sobre a dele. O silêncio macio pairava entre eles, preenchido apenas pelo rumor das estrelas.
Eros traçava círculos preguiçosos na palma da mão de Psiquê, como se quisesse redesenhar nela todas as constelações.
Eros – No fim, o amor vence tudo. Murmurou ele, com um sorriso sereno.
Psiquê inclinou o rosto, os olhos brilhando de uma ternura antiga, e respondeu. – O amor... sim, ele é a centelha que move o mundo. Mas sem alma, meu amor... – Disse, pousando a mão sobre o peito dele. – Sem amadurecimento, o amor se perde. Ele queima cedo demais, consome-se, e vira cinza antes de ser eternidade.
Eros a fitou, como quem enxerga mais do que as palavras deixam escapar. Um sorriso começou a dançar no canto de seus lábios, aquele sorriso travesso que Psiquê conhecia bem demais.
Ela estreitou os olhos, desconfiada. – O que foi? Perguntou, divertida.
Eros – Nada... Respondeu ele, fingindo inocência, mas o brilho nos olhos o traía.
Psiquê soltou uma risada leve. – Eros... Advertiu, cruzando os braços. – Eu conheço esse seu olhar. Está tramando alguma coisa.
Ele fingiu um ar ofendido, depois se aproximou mais, até que seus rostos quase se tocassem. – E se fizéssemos uma aposta? Sugeriu, a voz carregada de encanto.
Psiquê arqueou uma sobrancelha, já rindo. – Uma aposta?
Eros assentiu, os olhos dourados cintilando. – Escolheremos dois mortais. Um fio de amor, ainda frágil... Ele tocou um fio invisível no ar. – E veremos o que prevalece. Se o amor bastar por si só, sem interferências, ele sobreviverá. Se precisar de amadurecimento... Eros deu de ombros, como quem lança os dados ao vento. – Você terá razão.
Psiquê mordeu o lábio inferior, como quem pondera, mas havia um brilho desafiador em seus olhos. – E o que apostamos?
Eros sorriu, com a doçura de quem já sabia a resposta. – Apostamos nossas verdades. E talvez... um pouco dos nossos próprios destinos.
Psiquê inclinou a cabeça, observando-o em silêncio por um longo instante. Na profundidade daquele desafio, ela sentiu mais do que o jogo. Sentiu o eco de tudo o que já haviam vivido. Sentiu o amor. Vivo, pulsante, mas também vulnerável.
Ela sorriu, com a ternura de quem ama até as imperfeições do outro. – Eu aceito. Disse. – Para provar a você... Suas palavras deslizaram no ar como seda e lâmina ao mesmo tempo. – Que até o amor precisa crescer.
Eros riu, entregando-se, puxando-a para seus braços. – Então que comece nossa aposta, minha alma.
E, nas alturas silenciosas onde os olhos dos Deuses ainda repousavam, um novo fio começou a brilhar. Fino. Frágil.
Prometendo mundos.
Prometendo ruínas.
Prometendo amor.
O Salão Etéreo, no imponente palácio entre o Olimpo e o tempo dos homens, estava agitado. Há muitas eras, esse foi o palco do reinado de Zeus ao lado de sua esposa, Hera. O palco das mais diversas contendas entre os Deuses. O palco de infinitas reuniões olimpianas. E agora, mais um encontro estava prestes a acontecer.
O salão surgia como um suspiro moldado de estrelas. Tinha a forma de um vasto círculo perfeito, sem princípio nem fim, esculpido em mármore que parecia nascer da própria névoa, flutuando sobre o tecido do universo, refletindo constelações que dançavam sob os pés dos imortais. No extremo oposto da entrada, elevados acima dos demais, repousavam os dois tronos centrais. Se elevavam como promessas antigas, silenciosos como o próprio destino. O de Zeus, talhado em trovões adormecidos, exalava um poder bruto, quase selvagem. O de Hera, enredado em ramos dourados de romã, era o próprio ventre da ordem, belo e imutável.
Ao centro, onde os ecos do tempo se entrelaçavam, a Chama Eterna ardia, uma fogueira sem fumaça, alimentada pela vontade dos Deuses, guardiã dos pactos e das memórias que nem o esquecimento ousava tocar, pulsando com o sopro da criação. E ao lado dela, suspenso no ar por fios invisíveis, pairava o Véu da Observação: um manto de névoa viva, ondulando em brisas que não pertenciam a nenhum mundo, através do qual os Deuses espreitavam o mundo mortal, como quem espreita sonhos contidos numa gota de orvalho. Bastava um gesto, e o véu se abria como águas calmas, revelando a dança dos mortais sob o olhar eterno.
Em torno do salão, pilares de um branco iridescente subiam rumo ao infinito, talhados não em pedra, mas em eras. Cada um era uma história que respirava, espadas, serpentes, flores, trovões, testemunhas mudas daquilo que foi, e daquilo que ainda viria a ser. E no alto, onde o teto deveria estar, abria-se apenas o céu: ora estrelado, ora carregado de auroras, dependendo do humor dos que ali se reuniam.
No Salão Etéreo, o tempo não caminhava: ele se curvava. Ali, todo sussurro era canto, toda ausência, presença, e todo olhar, um destino à espera. Foi para esse palco majestoso que os Deuses haviam sido convocados por Eros e Psiquê. A atmosfera carregava o peso de eras esquecidas e a urgência dos Deuses em permanecerem vivos no imaginário humano.
Zeus, imponente em seu trono, foi o primeiro a falar. – O que queres, Eros, com essa convocação inesperada?
Eros se aproximou, confiante, um sorriso provocador brincando em seus lábios. – Minha amada e eu divergimos sobre uma questão antiga, mas fundamental: o que sustenta o amor verdadeiro?
Psiquê também se aproximou com passos firmes, o olhar sereno. – Eros acredita que o amor se basta. Eu, que caminhei até o fim do mundo por esse amor, sei que ele só floresce com a maturidade da alma.
Eros sorriu para a amada e pegou sua mão. – Por isso propomos uma aposta. Um casal mortal será observado. Sem interferência. Apenas o Destino guiará seus passos. Se se amarem, a razão será de quem tiver sua verdade comprovada.
Zeus os observou com um olhar entediado. Seu sorriso cínico tomando forma. – Amor? Isso vem e vai como as estações. Um jogo bonito, mas não digno da minha atenção. Que decidam entre si. Não me oponho, nem apoio.
Hera, sentada ao lado de Zeus, o observou com um olhar irritado, quase amargurado. Após ouvi-lo, levantou-se, sua altivez projetando-se em suas palavras. – O amor deve ser sagrado. Não um jogo. Um lar se constrói com compromisso, não com apostas. Ela fez uma pausa dramática e seu olhar recaiu sobre Psiquê. Após observá-la por alguns instantes, compreendendo a verdade por trás daquela aposta, assentiu com um pequeno gesto de cabeça. – Mas entendo o valor de tua busca, mortal tornada Deusa. Se as regras forem justas, não me oponho.
Afrodite, que acompanhava a conversa com crescente entusiasmo, deu um passo à frente. – Que delícia de ideia! Um casal mortal preso aos fios do Destino, provando o poder do amor! Seu olhar voltou-se para Eros, carregado de ternura e orgulho. – Mas, claro, não poderei me envolver... pelo bem da imparcialidade. Os Deuses a encararam, e ela suspirou dramaticamente. – Muito bem. Prometo me conter. Ainda que meu coração arda por tomar partido.
Atena, que a tudo observava em silêncio, ergueu a mão, pedindo permissão para falar. – Alguém precisa garantir que essa disputa não se torne um caos. Eu me ofereço como juíza. Minha espada pesa mais pela verdade do que pela emoção. Sua voz soou firme, carregada da segurança de quem preza a justiça. – E proponho que Afrodite também o seja, só assim para garantir que realmente se mantenha imparcial.
Afrodite a encarou, o olhar um misto de deboche e interesse. – Se assim os Deuses quiserem, também serei juíza.
Deméter se aproximou de Atena e Afrodite, sua voz tranquila, reverberando sua autoridade suavemente. – Se o amor é o tema, então que Perséfone seja a terceira juíza. Ela conhece as profundezas do amor, tanto na luz quanto nas sombras.
Perséfone que os observava silenciosamente, seu olhar trazendo a mistura entre a doçura e o abismo, respondeu. – Aceito. O amor que aprendi com Hades me mostrou que até o que floresce na morte pode ser eterno. Serei justa.
Os demais Deuses concordavam com breves acenos e sorrisos. Apesar da convocação, nem todos estavam presentes, somente aqueles cuja curiosidade tocara. Apolo observava a tudo em um canto mais afastado. O amor era um tema delicado para ele e seus sentimentos, naquele momento, o faziam desprezar tal aposta.
Dionísio que sempre carregava um sorriso no rosto, divertia-se com o rumo que aquela reunião estava assumindo. Sempre gostou de apostas, especialmente quando via uma oportunidade de jogar seus próprios jogos. Mas naquele momento, nada revelou. Hades acompanhava sua esposa em silêncio. Ele entendia o significado que se escondia atrás daquela aposta. Hefesto seguia indiferente. Não se importava muito com o desenrolar do amor, acreditava que já teve sua cota e que não lhe cabia a história dos demais.
Hera deu um passo a frente e os demais Deuses se silenciaram. – Que assim seja! Vamos observar esse casal mortal e acompanhar o desenvolvimento do seu amor. Atena, Afrodite e Perséfone serão responsáveis por julgar quem tem razão: se Eros e o amor por amor, ou se Psiquê que defende que o amor depende do amadurecimento da alma para persistir. As juízas deverão jurar, sobre a Chama Eterna, serem imparciais nessa aposta.
A Chama Eterna reluzia no centro do salão. Afrodite, Perséfone e Atena se dirigiram até o centro, posicionando suas mãos direitas sobre a chama:
– “Diante do Olimpo, sob o olhar das Moiras, juramos: Que nem palavra, nem gesto, nem pensamento influenciará os caminhos dos mortais escolhidos. Observaremos em silêncio, julgaremos com equidade. Pois o amor verdadeiro deve surgir livre, ou não será amor." A chama respondeu ao juramento, tornando-se dourada. Assim, o juramento foi selado.
***
O silêncio que se seguiu ao juramento foi profundo, espesso como o véu entre os mundos. Mas então, um som sutil, quase imperceptível, como o fio de uma agulha atravessando o tecido do tempo, cortou o ar. A luz vacilou. A atmosfera escureceu como se o próprio tempo tivesse parado para ouvir. Um vento gelado serpenteou pelo salão, fazendo as tochas dançarem. Três figuras surgiram no limiar: uma jovem de olhos agudos como lâminas recém-forjadas, uma mulher de meia-idade com olhar implacável e postura de juíza, e uma anciã curvada, de dedos longos como raízes de árvores milenares. Eram as Moiras: Cloto, Láquesis e Átropos, as Tecelãs do Destino. Mesmo os Deuses se calaram. Até Zeus, o trovão encarnado, se endireitou em seu trono com a solenidade de quem reconhece forças maiores que a sua.
Átropos foi a primeira a falar. Sua voz era o estalo de galhos secos sob a neve, e reverberava em algo mais profundo que o som. – Vejo que ousam brincar com o tear. Ela não gritou. Não precisava. Cada sílaba caía como sentença.
Láquesis, de queixo erguido e olhos de pedra polida, tomou a palavra em seguida. – Falam do amor como se fosse laço simples. Amor é nó eterno, emaranhado que prende ou sufoca. Amor não é brincadeira para imortais entediados.
Cloto, a mais jovem, aproximou-se com passos graciosos, trazendo em mãos um novelo que cintilava com fios dourados e prateados. – Querem provar um ponto? Apostar com vidas humanas? Pois saibam: o Destino não é palco. Não é argumento. É Lei. Ela ergueu o fio. Ele vibrava no ar, tenso, vivo. – Uma vez traçado, nem o próprio Olimpo o desfaz. Nem nós o desfazemos, se já cumpriu sua curva.
Átropos avançou um passo. Seus olhos, velados por um tecido escuro bordado com símbolos arcaicos, pareciam ver além da matéria. – Ainda assim... houve juramento. E o juramento, quando feito diante do fogo sagrado e ouvido pelos que guardam os limiares, nos é visível. Ela ergueu a mão. Os dedos brilharam com runas tão antigas quanto o tempo. – Portanto, ouviremos. Mas saibam que ao tocar o Destino, não há retorno. Não há misericórdia.
Láquesis fitou Atena, Afrodite e Perséfone com olhos que pesavam eras. – Vocês que juraram serem juízas, lembrem-se: justiça não é paixão, nem desejo. Justiça é o fio que não se parte, mesmo sob tensão. Vigiamos o tear. E os desvios não passarão despercebidos.
Cloto sorriu, um sorriso que não era ternura, mas o presságio do início. – Tecerei o princípio. Mas não direi o fim. Nem como será trançado o meio. Isso... será descoberto. No sofrimento. Na escolha. Na renúncia. No amor, talvez. Ou no abismo.
As três caminharam lentamente até o centro do salão. Cada passo parecia dobrar o tempo sobre si mesmo. Quando Cloto lançou o fio no ar, ele dançou como serpente de ouro, girou, brilhou, pulsou... e desapareceu. Fora lançado ao mundo mortal.
Por um instante, nem mesmo os Deuses ousaram respirar. Era como se o próprio tempo tivesse prendido o fôlego. A cada passo das Moiras, a eternidade pesava sobre os ombros de todos, lembrando que, diante do Destino, até as majestades do Olimpo eram frágeis. Eram elas, e só elas, que teciam o início, o entrelaço e o fim. Nem Zeus ousaria contrariar sua vontade.
Átropos, já de costas para o trono, falou uma última vez. Sua voz agora era brasa sobre pele. – Lembrem-se: os mortais não são peões em jogos divinos. São fagulhas. Soprem com descuido... e restará apenas cinza.
Láquesis completou, firme. – Nós vigiamos. Sempre vigiamos.
Cloto sussurrou por fim, já prestes a desaparecer. – E o tear... nunca se esquece.
Com essas palavras, as três se dissolveram como névoa densa, envoltas em um silêncio mais profundo do que o anterior, um silêncio que não era vazio, mas prenúncio. A aposta estava lançada. E o Destino... desperto.
Cidade moderna. Luzes. Ruídos. Vidas apressadas. Para os humanos, era apenas mais um dia. Mas para o tempo... algo se movia. Como o respirar contido de um universo que pressente mudança, o tecido da realidade estremecia. Um fio dourado, tênue como pensamento, denso como eternidade, descia em espiral do céu cinzento, invisível aos olhos mortais. Ele cruzava sem pressa os limites do tangível, pairando sobre ruas movimentadas, cruzamentos esquecidos e janelas acesas por solidões noturnas.
Não brilhava como ouro. Era outra luz, uma que carregava memória. Uma que sabia.
O Destino, desperto, tomava forma. Em lados opostos da cidade, duas figuras seguiam suas rotinas sem saber que estavam prestes a deixar de ser apenas indivíduos e se tornarem enredo.
Ela: Intensa, apaixonada pela beleza do instante, sensível como chama. Tinha olhos que procuravam poesia até no caos, e uma alma inquieta, faminta por significados. Trabalhava com criação, desejo e forma. Era feita de começos.
Ele: Introspectivo, analítico, buscava sentido nos detalhes, no silêncio, na profundidade do que sentia. Observador atento, escutava mais do que falava. Cuidava de mentes alheias com zelo, mas negava suas próprias feridas. Era feito de pausas.
Eles não se conheciam. Ainda. Mas algo os chamava. Algo maior. O fio os tocou, não como toque, mas como presença. Um arrepio na espinha. Um instante de vertigem ao olhar o céu. Um pensamento intruso: "Há algo diferente hoje." Um gato miou duas vezes ao longe, como sentinela. Um sinal mudou de cor antes da hora. Um livro caiu de uma prateleira sem que ninguém o encostasse. Era como se o mundo respirasse por eles. Ou por causa deles. E o Destino sorrisse em silêncio.
No Olimpo, o salão ainda pulsava com a sombra das Moiras. O ar, rarefeito como após uma tempestade, parecia pesar nos ombros de cada Deus presente. O eco da advertência final ainda reverberava: “Os mortais não são peças. São chamas frágeis.”
Por longos segundos, ninguém ousou falar. Até que Afrodite, visivelmente tensa, rompeu o silêncio. Ela se aproximou de Eros e Psiquê, os olhos carregados de receio e memória. Cruzou os braços e murmurou, aceitando o abraço do filho. – Sempre me arrepiam... como se pudessem ver até meus pensamentos.
Atena, rígida como pedra, respondeu sem desviar o olhar do vazio. – Elas veem. E onde veem, guardam. Onde guardam, um dia retornam. Sua voz parecia aço sendo forjado. – Que não se esqueçam: juramos sobre a Chama Eterna. Agora estamos sob o olhar delas também.
Zeus, que tentava retomar o controle do salão e de si mesmo, pigarreou e falou com um tom forçado de autoridade. – Que seja, então. A aposta foi lançada. Mas deixo claro: não tolerarei caos que ameace a ordem, nem aqui, nem entre eles.
Hera o encarou com um sorrisinho cortante, levantando a sobrancelha. – Você... falando de ordem? Isso sim é milagre. Zeus fingiu não ouvir.
Hermes, que assistia tudo com olhos cintilantes de diversão, deslizou entre os Deuses como um pensamento ágil. – Um casal guiado pelo Destino, cercado de Deuses entediados? Haverá enredos o suficiente para um século. Fez uma reverência exagerada a Eros. – Posso garantir que suas mensagens cheguem até eles... ainda que como sonhos ou impulsos. Nem sempre percebem, mas sempre sentem.
Dionísio, deitado em seu divã com uma taça translúcida entre os dedos, apenas suspirou. – Que ao menos se divirtam antes de sofrer. O amor é um vinho raro: às vezes cura. Às vezes enlouquece. Às vezes... os dois. Bebeu mais um gole. – De toda forma, brindemos ao espetáculo.
Hefesto, sempre prático, resmungou do fundo da sala. – Desde que ninguém me peça para forjar alianças antes da hora, fico fora disso. O Destino que carregue o peso do que tece.
Perséfone, silenciosa até então, aproximou-se da borda do salão, como se escutasse algo distante. Seus olhos tinham a calma de quem já viu a morte dançar com o amor. – Já começou. Sussurrou. – Os fios estão se tensionando. Alguns vão se entrelaçar. Outros... se romper.
E então, o salão se calou novamente. Mas era outro silêncio. Não mais o silêncio da dúvida, mas da aceitação solene. Algo havia sido posto em marcha, algo tão antigo quanto os próprios Deuses, tão imprevisível quanto os humanos. E ninguém, nem mesmo o Olimpo, tinha mais controle.
***
Sob os olhos dos Deuses, o jogo começou. No mundo dos homens, a realidade ainda parecia intacta. Mas para aqueles tocados pelo fio das Moiras, os primeiros efeitos já se insinuavam como uma febre branda, um sonho que não se lembra ao acordar, mas que insiste em ficar. Algo os rondava. Algo os chamava. Um evento aleatório, ou perfeitamente calculado pelo Destino, seria o ponto de partida.
Naquela noite, acontecia uma exposição de arte imersiva chamada “O Invisível que Toca”, idealizada pela agência onde ela trabalhava. Era seu projeto mais ousado, uma aposta pessoal. A proposta era clara e ao mesmo tempo enigmática: “conectar pessoas sem que se vejam, apenas por palavras, sensações e experiências sensoriais”. Um convite ao invisível, ao essencial. Um espelho sem reflexo, onde o que importava era o que se sentia e não o que se via.
Ela estava radiante. Caminhava entre as instalações como se o espaço respondesse à sua presença. Sabia que algo nela vibrava mais alto naquela noite, como se o mundo estivesse por um triz, um limiar entre o comum e o extraordinário.
Ele, por outro lado, chegou contrariado. O convite viera de um amigo que trabalhava com terapias alternativas, e, mesmo relutante, resolveu aceitar. Talvez por educação. Talvez por uma inquietação que ele mesmo não sabia nomear. Cético, manteve-se à parte nos primeiros minutos, como quem observa um ritual do qual não se sente parte. Mas algo ali o desarmou. Aos poucos, cedeu. Rendeu-se. E decidiu participar.
Os visitantes passavam por salas mergulhadas na penumbra. Não havia rostos, nem nomes. Apenas sons, aromas, texturas, e vozes disfarçadas em sussurros gravados. Em uma das salas, uma proposta: escrever algo que nunca se teve coragem de dizer. Uma confissão, um segredo, um desejo nunca pronunciado. As cartas, anônimas, seriam trocadas entre desconhecidos.
Ele escreveu. Com dedos trêmulos, mais pelo que se permitia sentir do que pelo ato em si. Não escolheu palavras bonitas, escolheu palavras verdadeiras. Algo enterrado há anos. Algo que, talvez, nem ele soubesse carregar. Ela escreveu também. Sem pudor, sem filtro. Derramou no papel um pedaço cru da alma, o tipo de coisa que nem mesmo o espelho costuma ouvir.
As cartas foram trocadas. Ela recebeu a dele. Leu em silêncio. E sentiu como se estivesse lendo um eco do que ainda não viveu. Algo nela se abriu. Ele recebeu a dela. E estremeceu. Reconheceu naquelas palavras uma ternura rara, uma coragem nua. Como se alguém, em algum lugar, tivesse sussurrado algo que ele não sabia que precisava ouvir. Eles não se viram. Não sabiam quem era o outro. Mas algo ali se acendeu. Um fogo sem nome. Uma ausência que fazia companhia.
Mais adiante, no topo do prédio, uma última experiência esperava pelos visitantes: “o salto no escuro”. Uma metáfora encenada, onde os participantes, vendados, eram guiados até a beira de uma plataforma simbólica. A proposta: confiar que havia chão. Que haveria chão. Que às vezes é preciso cair para saber que se pode voar.
Ela, impulsiva, destemida por natureza, hesitou pela primeira vez. Sentiu o coração disparar. O chão tremer sob seus pés. Não era medo do vazio, era medo do que sentia sem entender. Ele, guiado por um atendente, caminhava vendado na direção oposta. No exato momento em que ela duvidava, ele a alcançou. Os dois corpos se tocaram brevemente. Uma mão estendida. Um gesto instintivo. Sem palavras. Sem rostos.
Mas foi o bastante. O toque durou menos de um segundo. Mas nele havia uma eternidade silenciosa, como se algo no tempo se abrisse, uma dobra entre o antes e o depois. Eles não se viram. Mas sentiram. E naquele instante, sob a cidade ofuscada pelas próprias luzes, sob os ruídos do mundo moderno, dois corações pulsaram no mesmo ritmo. Um fio dourado se retesou, em silêncio. E os Deuses, no Olimpo, sorriram com os olhos. Porque sabiam. O Destino havia escolhido.
***
No dia seguinte, ele despertou com a estranha sensação de que sonhara algo importante... e de que havia perdido esse algo ao abrir os olhos. Uma espécie de ausência silenciosa o acompanhava no quarto ainda mergulhado na penumbra da manhã. Na mesa de cabeceira, a carta recebida na exposição repousava como um vestígio do que escapava ao entendimento racional. Ele a releu. As palavras eram simples, diretas, mas carregavam uma força delicada, quase crua. Era como se, por entre aquelas linhas, alguém tivesse se despido sem pudor. Havia desejo ali. Mas também medo. Havia entrega.
Pela primeira vez em muito tempo, ele sentiu algo que ia além da empatia clínica com que costumava ouvir os outros. Era desejo. Curiosidade. Falta. Uma falta sem nome, sem rosto, mas que se instalava fundo, feito semente esquecida germinando no escuro.
No consultório, percebeu-se mais presente do que o habitual. Escutava com mais atenção. Respondia com mais humanidade. Mas, em certos momentos, se pegava distraído, arrastado de volta para aquele instante na exposição. O calor breve daquela mão que encontrou a sua. A textura daquela pele que agora vivia apenas na memória tátil de seus dedos. “Por que me tocou tanto alguém que nem vi?” pensou, entre uma sessão e outra. Começou a revisitar mentalmente todos os detalhes: o aroma sutil no ar, o som abafado dos passos, o silêncio que parecia habitado. Não tinha nome. Não tinha rosto. Mas tinha presença. Uma presença que agora o acompanhava.
Ela, por sua vez, fingiu que era só mais uma segunda-feira. Agiu com naturalidade, respondeu e-mails, distribuiu tarefas, sorriu para os colegas. Mas algo em sua forma de andar tinha mudado. Era como se seus passos tivessem desacelerado, não por cansaço, mas por contemplação. Por dentro, ela ainda ouvia o eco da carta recebida. As palavras escritas por um estranho ressoavam em lugares que ela mesma evitava tocar. A sinceridade naquela carta a desarmou. E, sem perceber por que, guardou aquela carta dentro de um livro de poesia que nunca terminara de ler... como se soubesse que aquela história também não havia terminado.
Não se apaixonava fácil. Já vira demais, vivera demais. Mas havia algo naquele gesto sem rosto, naquele toque no escuro, que ultrapassava o comum. Era como se, pela primeira vez, tivesse sido percebida além da imagem, além do papel que desempenhava no mundo. Sentira-se vista sem estar exposta. E isso a desnorteava.
No final do expediente, sem contar a ninguém, voltou à exposição. Caminhou sozinha até a última sala. Não havia mais filas, nem visitantes. Apenas o silêncio. E o vazio carregado de memórias recém-plantadas. Sentou-se no chão por alguns minutos e fechou os olhos. Esperava algo? Não sabia. Só queria lembrar. Ou talvez reencontrar o que não soubera nomear. Por fora, tudo seguia igual. Mas por dentro, algo nela já não era mais o mesmo.
***
No Olimpo, uma brisa dourada e morna subia dos domínios da Terra, atravessando o véu entre mundos, dançando entre colunas e salões. Era sutil, quase imperceptível, mas os deuses antigos a sentiram. Era como se uma corda antiga tivesse vibrado ao toque de dedos mortais.
Eros, de pé junto ao Véu da Observação, fechou os olhos e sorriu com o canto dos lábios. – Sentiram?
Psiquê estava sentada, ocupando a cadeira de seu amado, os olhos fixos em algo que só ela via. Havia uma suavidade em sua expressão, mas também um brilho profundo. – Foi apenas um toque. Mas foi puro. Sem máscaras. Quase... raro.
Afrodite, que observava a cena no Véu como quem analisa uma obra de arte prestes a se revelar, curvou os lábios num sorriso lento. – Um toque pode ser mais poderoso do que mil promessas. Eu sempre disse.
Atena, em pé ao fundo, observava em silêncio, os olhos calculando o que se escondia por trás da emoção. – O gesto foi espontâneo. Intencional, mas sem artifício. Um ponto para o acaso. Ou para o Destino.
Apolo, encostado em seu trono, não escondia o incômodo. Seus olhos dourados estavam sombrios. – Tocar sem ver. Amar sem conhecer. Ilusão. A mais perigosa de todas. É isso que destrói os melhores homens.
Perséfone, com sua serenidade escura, falou com voz baixa, mas firme. – Ou os transforma. O amor que nasce da escuridão é o que mais profundamente enraíza. E mais violentamente floresce.
Hera, de braços cruzados, lançou um olhar gelado para Zeus. – Que seja apenas o começo. Mas não é o toque que importa. É o que resistirá ao tempo. E às tentações.
Zeus, absorto, parecia menos atento. Mas sua voz soou firme. – Estão todos muito exaltados. Um toque não é amor. É só o prenúncio. E prenúncios nem sempre cumprem promessas.
Eros abriu os olhos. Seu sorriso era mais contido, quase triste. – Mas é assim que sempre começa.
Psiquê assentiu. Havia um amor antigo e profundo em seu olhar. – Começa no que ninguém consegue explicar.
Ao fundo, as Moiras, invisíveis aos outros, observam da sombra. Um dos fios pulsava em luz tênue. Cloto sorriu. Láquesis não piscava. Átropos não se movia.
***
O salão começava a esvaziar-se. Risos, debates e provocações flutuavam no ar leve e dourado como poeira de estrelas. Mas nem todos notavam que algo havia mudado na atmosfera. Um fio novo fora tecido, e com ele, o equilíbrio começava a inclinar-se para um lado ainda incerto.
Atrás do trono de Zeus, ocultas à maioria, as três fiandeiras do Destino observavam. Ninguém percebera sua permanência ali, exceto Psiquê, que desviou o olhar por um breve instante, mas nada disse.
Cloto passou os dedos por um novelo que não existia na noite anterior: um fio espiralado, dourado, pulsante, que parecia feito de luz e desejo. O fio de Afrodite.
Láquesis examinava outros fios: o de Apolo, esticado demais; o de Hefesto, desgastado; o de Hera, firme, mas com rachaduras sutis. Não os tocava. Apenas media. Como quem identifica fissuras antes do terremoto.
Átropos mantinha sua tesoura repousando. Mas seus olhos, fixos no tear, estavam atentos. Ainda não era hora. Mas o tempo escorria.
Cloto sussurrou, como se falasse com o próprio tecido da realidade. – Brincam com os mortais...
Láquesis completou. – ... Mas esquecem que já foram crianças diante de nós.
Átropos murmurou, fria. – E voltarão a ser.
Então, com um gesto lento, Cloto costurou silenciosamente uma linha tênue no tear de Afrodite. Uma pequena intersecção entre o amor e a vergonha. Uma memória esquecida, prestes a despertar. Láquesis traçou um nó no fio de Apolo, onde um ressentimento antigo aguardava combustão. Átropos, com a ponta da tesoura, tocou levemente o fio de Hera. Um lembrete. Nada mais. Elas não moviam o Destino por capricho. Mas não permitiam desequilíbrios.
Cloto. – Se desejam brincar com o amor dos homens...
Láquesis. – ...Que provem que conhecem o próprio.
Átropos. – Ou arcarão com o preço.
Ao longe, Psiquê ainda observava. Sabia que o que se iniciara ali, no escuro, no silêncio, no toque, era mais profundo do que Eros imaginava. E mais perigoso do que qualquer Deus ousava admitir.
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