O relógio da parede marcava exatamente 9h27 da manhã quando o mundo de Melissa Gabrielly parou.
Sentada na cadeira dura da sala de exames, ela ouvia cada palavra do médico como se estivessem sendo ditas debaixo d’água.
Os batimentos do seu coração ecoavam nos ouvidos, abafando quase tudo.
— Melissa… o exame de imagem confirmou nossas suspeitas.
— O senhor pode ser direto — ela disse, em voz baixa, mas firme.
— Trata-se de um glioblastoma. Um tumor cerebral agressivo… em estágio avançado.
Ela piscou, como se tentar entender aquelas palavras fosse uma questão de ajustar o foco.
— É… maligno?
— Sim. E… inoperável. Estamos falando de um tempo de vida estimado em torno de três meses. No máximo cem dias.
Cem dias.
As palavras caíram como pedras sobre o seu peito.
Ela sentiu o ar escapar dos pulmões, o estômago revirar, e o mundo perder a cor por um instante.
O médico ainda falava, mas Melissa não ouvia mais.
Seu olhar se perdeu na janela da sala. Lá fora, o céu estava nublado, como se já soubesse da sentença que caía sobre ela.
Cem dias.
Ela só tinha vinte e três anos. Tinha planos. Tinha uma doceteria recém-aberta, um apartamento pequeno mas aconchegante, um gato velho chamado Pudim…
E agora tinha um relógio invisível sobre a cabeça, contando os segundos para o fim.
Quando saiu do consultório, a sensação era de que tudo estava em câmera lenta.
As pessoas passavam por ela no corredor, algumas sorriam, outras falavam ao celular… e ali estava ela, prestes a desaparecer do mundo.
Era assim que acabava?
Não com uma explosão, mas com um sussurro?
O vento frio tocou seu rosto quando ela saiu do hospital.
Seu corpo ainda tremia, embora ela não soubesse se era pelo diagnóstico ou pelo medo.
Ou pela fúria silenciosa que começava a borbulhar no fundo do peito.
Ela queria gritar.
Chorar.
Mas tudo o que conseguiu fazer foi andar.
Passo após passo, como se os pés soubessem o caminho de casa por conta própria.
De volta ao seu apartamento, Melissa entrou em silêncio.
Pudim veio ao seu encontro, ronronando, sem saber do vazio que agora habitava dentro dela.
Ela o pegou no colo, abraçando-o com força.
— Eu não quero morrer — sussurrou, com a voz embargada.
— Eu nem comecei a viver de verdade…
Naquela noite, não dormiu.
Sentou-se na varanda com uma xícara de chá que esfriou sem ser tocada, observando a cidade lá embaixo, respirando e se movendo, como se nada tivesse mudado.
Mas algo tinha.
Algo dentro dela.
Porque a partir daquele momento, cada segundo contava.
E mesmo sem saber ainda, Melissa não estava sozinha.
Algo — ou alguém — a observava das sombras.
Um homem de olhos azuis como o céu antes da tempestade.
E, com a mesma precisão com que a vida começava a se apagar, algo novo e perigoso também estava prestes a começar.
O sino da porta tocou pela primeira vez
Naquela manhã nublada.
Melissa ergueu os olhos do balcão de vidro repleto de doces recém-assados, forçando um sorriso suave.
— Bom dia — disse, tentando disfarçar o peso nas palavras.
— Bom dia! — respondeu uma cliente habitual, pegando seu café como sempre, sem perceber o vazio por trás do olhar da dona da doceteria.
A "Delicatta" era o seu pequeno refúgio, seu projeto de vida, construído com açúcar, sonho e economia apertada.
Mas naquela manhã, o cheiro de canela e baunilha não parecia mais ter gosto.
Desde o diagnóstico, tudo estava levemente borrado.
Os sentidos funcionavam, mas era como se ela estivesse observando a vida através de um vidro embaçado.
Cada risada, cada som da rua, cada mordida em um pedaço de bolo…
Tudo parecia distante, quase falso.
Ela misturava a massa de cupcakes sem perceber que estava usando o dobro de fermento.
Esquecia os nomes dos clientes que conhecia há meses.
Às vezes, perdia o foco e encarava um ponto fixo na parede por minutos.
Mas ninguém percebia.
Melissa sempre foi gentil demais para ser questionada.
Delicada demais para carregar um fardo desses.
Até que algo diferente aconteceu.
Pouco antes do almoço, o sino da porta tocou novamente.
Ela não viu ninguém entrar.
Olhou ao redor, confusa.
— Alô? — chamou, indo até o balcão da frente.
Nada.
A rua do lado de fora estava vazia. Nenhum cliente. Nenhuma alma.
Mas ela sentiu.
Um arrepio subindo pela nuca.
Uma presença.
Como se algo — ou alguém — estivesse ali, parado, a observando com olhos que ela não conseguia ver.
— Deve ser o sono — murmurou para si mesma, voltando ao fogão.
Só que a sensação não passou.
Quando virou-se, ele estava ali.
No canto da doceteria, de pé, encostado à parede, com as mãos nos bolsos e um olhar fixo nela.
Melissa deu um pequeno sobressalto, os dedos quase derrubando a espátula de silicone.
— Desculpe… não ouvi você entrar — disse, tentando recuperar o ar.
O homem era alto, de pele pálida contrastando com os cabelos dourados bagunçados.
Seus olhos, porém… eram o que mais chamavam atenção.
Azuis como o céu antes da chuva, penetrantes e inumanamente intensos.
— É comum — ele respondeu com a voz baixa, quase como um eco. — Ninguém costuma me notar.
Ela franziu a testa, intrigada.
O tom dele não era brincadeira, tampouco timidez.
Era… estranho. Vazio. Como se houvesse algo quebrado no som da própria voz.
— Bem… posso te ajudar com algo?
— Você me viu — ele disse, ignorando a pergunta. — Como?
Melissa o encarou, confusa.
— Claro que vi… você está na minha frente.
— Mas ninguém vê.
Ela recuou um passo, o coração acelerando.
— Está me assustando…
O homem a observava como se ela fosse um enigma, algo precioso e impossível.
— Você é diferente. Tem… algo. Algo que já não pertence mais a este mundo.
— Quem é você?
Ele não respondeu de imediato. Apenas caminhou lentamente até o balcão, sem tirar os olhos dela.
— Você pode me chamar de Gabriel.
E, naquele instante, antes que Melissa pudesse reagir, o sino tocou de novo.
Ela piscou.
E ele havia desaparecido.
Como se nunca tivesse estado ali.
A espátula ainda tremia na sua mão.
E a sensação de que o destino tinha acabado de entrar — e sair — por aquela porta, se cravou fundo no seu peito.
Na manhã seguinte, o sino da doceteria soou da mesma forma.
Clientes habituais, sorrisos automáticos, cafés adoçados e bolos cortados com precisão.
Mas nada estava igual.
Melissa passava o pano no balcão com movimentos distraídos, os olhos sempre voltando para o canto onde Gabriel havia estado.
Ele simplesmente desaparecera.
Sem som. Sem aviso. Como um sopro que se apaga na vela.
Ela pensou que talvez tivesse imaginado. Um delírio, talvez. Algo provocado pelo estresse, pelo medo.
Mas não… ela se lembrava de cada detalhe. Do tom da voz dele. Da frieza na pele. Da forma como ele parecia se encaixar no mundo e ao mesmo tempo… não fazer parte dele.
Gabriel.
Mesmo o nome parecia estranho nos lábios.
Ela tentou buscá-lo nas câmeras de segurança, mas no horário em que ele surgiu… o vídeo travava. Tela preta. Nada.
Uma falha?
Ou algo mais?
Pudim, seu velho gato, passou roçando nas pernas dela como se sentisse a inquietação.
Melissa o pegou no colo, aninhando-o junto ao peito.
— Você viu ele também, não viu? — sussurrou.
O gato apenas ronronou.
No dia anterior, após Gabriel desaparecer, ela passou horas vasculhando a doceteria, como se ele pudesse estar escondido atrás de um balcão, dentro de uma sombra.
Mas tudo estava igual.
Exceto uma coisa.
Um pequeno pedaço de papel, dobrado em quatro, repousava sobre o balcão onde ele estivera.
Melissa só o encontrou ao fechar o caixa, quando os olhos cansados quase deixaram passar o detalhe.
Com dedos trêmulos, desdobrou-o.
Uma única frase, escrita com caligrafia firme:
"Você vê o que os outros esqueceram."
Ela engoliu em seco.
Aquilo não era um sonho.
Ele existia.
E ela era a única que o via.
Mas por quê?
Naquela noite, Melissa não foi para casa.
Fez questão de ficar na doceteria até mais tarde, preparando uma nova fornada de cupcakes, como desculpa para manter as luzes acesas.
Esperando.
Ela queria respostas.
Queria entender quem — ou o quê — era Gabriel.
Mas ele não voltou.
As horas avançaram, o céu escureceu completamente, e a rua ficou deserta.
A única companhia eram as luzes amareladas dos postes lá fora… e o som distante da cidade adormecendo.
Melissa sentou-se na poltrona da varanda dos fundos, com uma manta sobre os ombros e uma xícara de chá nas mãos.
Lágrimas silenciosas escorreram pelo rosto.
Ela não sabia por que se sentia assim. Não era apenas medo.
Era a sensação de que algo dentro dela havia sido despertado.
Algo adormecido por anos.
E, no fundo, sabia: Gabriel não era um homem comum.
Ele era um presságio.
Talvez um aviso.
Ou pior… um reflexo do fim que se aproximava.
Mas mesmo com o coração acelerado e o estômago apertado, uma parte dela — a parte que ainda acreditava em milagres — queria vê-lo de novo.
Porque, mesmo cercado de silêncio, ele a fez sentir algo que a doença ainda não havia conseguido apagar:
Curiosidade.
Expectativa.
Vida.
As ruas estavam cobertas por uma névoa densa naquela manhã.
Melissa acordou cedo, mesmo sem ter dormido direito.
Tinha a sensação estranha de estar sendo observada, mas toda vez que virava para trás, só encontrava o vazio.
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