NovelToon NovelToon

Sombras do Coração

Capítulo 1- A Chave e o Estranho

O carro deslizou lentamente pela estrada de terra, levantando uma névoa marrom atrás de nós. A cada metro que avançávamos, o mundo parecia se afastar mais da realidade. Árvores retorcidas margeavam o caminho como sentinelas silenciosas, e um frio incômodo subia pelas minhas costas, mesmo com o vidro fechado.

Respirei fundo, tentando controlar a ansiedade. O testamento havia sido claro: a Mansão Blackthorn era minha agora. Mas ninguém me preparou para a sensação sufocante que tomou conta de mim assim que passei pelos portões de ferro enferrujado.

— Chegamos. — disse o motorista, sem olhar para mim.

A mansão surgiu à frente, imponente, escura, com torres que rasgavam o céu cinzento. Um verdadeiro monumento ao abandono e à decadência. As janelas pareciam olhos vazios me observando. Engoli em seco, sentindo uma estranha vontade de pedir para dar meia-volta.

Mas já era tarde demais para recuar.

Desci do carro, meus sapatos afundando ligeiramente na terra úmida. O cheiro de mofo e folhas apodrecidas preenchia o ar. Com a mão trêmula, ajustei o casaco sobre os ombros e caminhei até a porta principal.

Antes que eu pudesse bater, ela se abriu sozinha com um rangido assustador.

E então eu o vi.

De pé na entrada, como uma sombra viva, estava Dorian Blackthorn. Alto, vestindo preto dos pés à cabeça, os olhos azuis tão frios quanto o vento da manhã. Ele não sorriu. Nem sequer se moveu. Apenas me observava, como se estivesse avaliando se eu era digna de estar ali.

— Isadora Blackthorn. — disse ele, a voz baixa e grave.

— Sou eu. — respondi, tentando manter a postura.

Ele assentiu levemente, sem demonstrar qualquer emoção, e deu um passo para o lado, abrindo passagem para mim. Seu gesto era cortês, mas havia algo de predatório em sua presença que fez minha pele arrepiar.

Atravessei a porta com cautela, sentindo o peso invisível da casa cair sobre mim. O saguão era vasto, decorado com móveis antigos e tapeçarias desbotadas. Uma escadaria de madeira escura dominava o centro, levando a andares superiores mergulhados em sombras.

— Seu quarto está pronto. — disse ele, já caminhando à frente sem esperar resposta. — No terceiro andar. À direita.

Eu o segui em silêncio, observando o jeito como seus passos eram firmes, quase silenciosos. Como se ele fosse parte da mansão tanto quanto as pedras das paredes.

Quando chegamos ao corredor principal, Dorian parou diante de uma porta pesada.

— Se precisar de algo, chame. — disse, olhando-me de relance. — Mas saiba que esta casa guarda segredos. E nem todos eles gostam de ser despertados.

Antes que eu pudesse perguntar o que aquilo significava, ele se virou e desapareceu no corredor, deixando-me sozinha diante da porta.

Respirei fundo novamente, girando a maçaneta com hesitação.

O quarto era grande, com móveis antigos e uma lareira apagada. No centro, um espelho imenso refletia a luz fraca que entrava pela janela, criando sombras estranhas nas paredes.

Fechei a porta atrás de mim, sentindo um arrepio percorrer minha espinha. Eu não sabia exatamente o que me aguardava ali.

Mas algo me dizia que Dorian Blackthorn era só o começo.

Capítulo 2- Café Amargo

Café Amargo.

Acordei com a luz fraca entrando pelas frestas da cortina. Por um momento, não reconheci o quarto. As paredes altas, o mobiliário antigo, o cheiro de madeira envelhecida. Então me lembrei: Mansão Blackthorn. Herança de um pai que nunca conheci. Começo de algo que eu ainda não conseguia nomear.

Sentei-me na cama, ouvindo passos no andar de baixo. Passos firmes, decididos. Dorian. Era como se ele não apenas andasse pela casa, mas como se ela se movesse ao redor dele.

Levantei devagar e troquei de roupa. Um vestido simples, confortável. Não sabia que tipo de rotina esperava por mim ali, mas algo me dizia que conforto seria um luxo raro.

Ao descer as escadas, encontrei Dorian na cozinha. Ele preparava café, os movimentos precisos demais para alguém comum. Vestia uma camisa preta, as mangas dobradas até os cotovelos. Não me olhou. Não disse nada.

— Bom dia. — falei, quebrando o silêncio.

— Café está pronto. — respondeu, ainda de costas.

Fiquei parada por um instante, esperando por alguma cortesia, algum gesto que indicasse que ele lembrava que eu era uma visita — ou ao menos alguém que dividia o mesmo teto. Mas não houve nada. Apenas o cheiro forte do café recém-passado.

— Dormiu bem? — arrisquei.

— Suficiente. — ele respondeu, finalmente me lançando um olhar. Seus olhos eram frios, como se medisse cada palavra antes de dizê-la. — E você?

— O colchão é antigo, mas... deu para descansar.

Ele entregou uma xícara para mim, sem encostar em minha mão. A porcelana estava quente. O gesto, distante.

— Pensei em conhecer a casa hoje. — disse, soprando o vapor do café.

— A casa não vai mudar. Está do jeito que foi deixada. — respondeu. — E há partes que não valem a pena.

— E quem decide isso? Você?

Ele ergueu a sobrancelha, como se minha ousadia o divertisse por um segundo. Mas não respondeu. Em vez disso, se virou e tomou um gole do próprio café, de pé, encostado na bancada.

— O que exatamente você faz aqui, Dorian? — perguntei.

— Cuido da casa. Protejo o que deve ser protegido.

— De mim?

— De tudo.

A resposta me irritou mais do que deveria. Havia algo nele que me provocava, mas não no sentido romântico. Era como lidar com um quebra-cabeça que não queria ser montado. Um muro erguido com palavras e silêncios.

Deixei a xícara sobre a pia com mais força do que pretendia.

— Ótimo. Então continue cuidando.

Saí da cozinha, ignorando o olhar dele em minhas costas. Se Dorian achava que podia me afastar com palavras enigmáticas e um charme frio, estava enganado.

Eu não estava ali para agradá-lo.

E quanto mais ele tentava me manter distante, mais eu queria entender o que, exatamente, ele escondia.

Capítulo 3 – A Biblioteca e o Silêncio

A mansão era grande demais para uma pessoa só. O som dos meus passos ecoava pelos corredores como se eu estivesse invadindo um templo esquecido. As janelas eram altas, mas deixavam passar pouca luz. A sombra parecia preferida ali. Dorian sumira desde o café da manhã. Não que eu estivesse esperando sua companhia — mas a ausência dele era tão pesada quanto sua presença.

Resolvi explorar por conta própria. Abrir portas. Testar fechaduras. Entender por que aquela casa me parecia mais prisão do que lar.

Encontrei a biblioteca no fim do corredor leste. Era o único cômodo que parecia realmente vivo. O cheiro de couro e papel velho tomava o ar, e as estantes pareciam querer tocar o teto. Havia uma escada rolante antiga, pendurada por trilhos, e uma poltrona perto da lareira — apagada, claro. Era o tipo de lugar em que eu poderia me esconder do mundo por dias.

Passei os dedos pelas lombadas dos livros. Clássicos, muitos deles em latim ou francês. Havia títulos que eu mal conseguia pronunciar. Entre dois volumes sobre direito antigo, um caderno chamuscado se destacava. Sujo, com as bordas roídas pelo tempo, parecia deslocado ali.

Era um diário.

As páginas estavam amareladas, rabiscadas às pressas com uma caligrafia nervosa.

> “Ela apareceu novamente. No espelho. Sempre no espelho.”

Franzi a testa. Aquilo parecia mais loucura do que literatura. Mas continuei lendo, virando cada folha com cuidado, sentindo o peso daquelas palavras. Um arrepio percorreu minha espinha.

> “Desta vez, ela sussurrou algo. Não consegui entender... Mas sei que me viu.”

— Não deveria mexer nisso. — disse uma voz baixa.

Virei rapidamente. Dorian. Como sempre, surgindo do nada. Os braços cruzados, o rosto inexpressivo. Ele parecia fazer parte das sombras da casa, como se fosse feito do mesmo material das paredes e dos sussurros.

— Não sabia que a biblioteca era proibida. — respondi, fechando o diário com calma.

— Não é a biblioteca. É o que está dentro dela.

Ele se aproximou, tirando o diário das minhas mãos com delicadeza, mas firmeza. Como se não confiasse em mim — ou no que eu poderia descobrir.

— Isso pertence a alguém da família? — perguntei, mantendo o tom neutro.

— Pertence ao passado. E o passado nem sempre gosta de ser revirado.

— Você repete isso com frequência. O que exatamente aconteceu aqui?

Ele me encarou por um longo tempo. Um olhar direto, mas sem calor. Como se estivesse decidindo se eu merecia saber — ou se me manter na ignorância era mais seguro.

— A mansão tem memórias. Algumas ruins. Algumas... perigosas. — disse ele por fim.

— E você? Faz parte delas?

A pergunta escapou antes que eu pudesse conter. Mas não me arrependi.

Dorian não respondeu. Apenas colocou o diário de volta na estante.

— Sou apenas alguém que ficou. — disse por fim, e se virou para sair.

Antes de cruzar a porta, olhou por cima do ombro.

— Se quiser saber algo, pergunte. Mas nem todas as respostas vão te agradar.

E então ele sumiu entre as sombras. E, estranhamente, o espelho ao fundo da sala pareceu piscar para mim.

Para mais, baixe o APP de MangaToon!

novel PDF download
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!