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Capítulo 1 – A Porta Que Nunca Deveria Ser Aberta
Dizem que existem lugares onde o mundo morre devagar. Onde o tempo não é linear, onde as sombras têm nome, e onde cada sussurro no escuro é uma memória enterrada viva. A Mansão Drelmor era um desses lugares.
A estrada até lá era feita de silêncio. Um silêncio que não era natural — era denso, sufocante, como se o próprio ar tivesse medo de fazer barulho. Nem mesmo os pássaros ousavam cantar ali. Helena sentia o motor do carro vibrar como um coração acelerado, e por um segundo, pensou em dar meia-volta. Mas ela já tinha cruzado o limite. Não apenas da estrada. Mas do que era seguro. Do que era humano.
Ela era jornalista investigativa. Vivia de desmentir lendas, de revelar verdades escondidas sob véus de medo. Mas nenhuma história que ela tinha contado antes se comparava àquela que dormia sob os escombros daquela casa amaldiçoada.
A Mansão Drelmor não estava no mapa, não aparecia em buscas na internet, e os moradores da vila mais próxima fingiam que ela jamais existira. Mas todos sabiam. Todos sabiam.
Ela estacionou. A chuva caía fina, cortante como navalhas. O portão, enferrujado e alto, rangeu como um grito quando ela o empurrou. O caminho era ladeado por estátuas partidas, olhos de pedra que pareciam vivos. E no topo da colina, envolta por brumas densas como véu de noiva morta, ela estava.
A casa.
Helena subiu os degraus da varanda devagar, como se cada passo fosse um pacto. O ar cheirava a podridão e ferro. A maçaneta da porta estava fria como carne morta. E ao girá-la, algo dentro dela — uma voz que não era sua — sussurrou:
Não entre.
Mas ela entrou.
A escuridão engoliu tudo. A luz da lanterna parecia pequena demais, fraca demais, como se a casa se recusasse a ser iluminada. O interior estava congelado, mesmo com o verão lá fora.
Paredes cobertas de espelhos rachados. Todos eles refletiam algo diferente — nenhum mostrava o que realmente estava diante deles.
Um deles mostrava Helena... sem olhos.
Ela engoliu em seco, tentando ignorar o nó que se formava em sua garganta. Cada passo ecoava como se alguém a seguisse. Os quadros nas paredes mudavam sutilmente a cada piscar. E então ela ouviu.
Um barulho leve.
Uma cadeira de balanço.
No fim do corredor, a luz fraca revelou uma sala coberta de símbolos riscados com unhas humanas. No centro, uma cadeira antiga balançava sozinha.
E nela... uma criança.
O rosto da menina estava parcialmente coberto por cabelos escuros e molhados, grudados na pele pálida como vela derretida.
Mas não eram olhos que ela tinha.
Eram bocas.
Duas bocas abertas onde os olhos deveriam estar.
Sorrindo.
Elas começaram a sussurrar em uníssono, com vozes idênticas à de Helena:
— Você não deveria ter aberto a porta.
— Agora eles sabem que você existe.
Helena recuou, coração disparado, mas a casa parecia viva. As paredes começaram a pulsar como carne. A porta por onde ela entrou não existia mais. Só havia corredores que se estendiam infinitamente, respirando ao ritmo do seu pavor.
E então ela entendeu.
Ela não tinha entrado.
Tinha sido engolida.
E a casa... estava faminta.
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Capítulo 2 – Corredores que Sussurram
Helena correu.
Não sabia para onde, não sabia por quê. Apenas corria. Seus passos batiam contra o chão de madeira apodrecida, mas a casa parecia não ter fim. Corredores se estendiam, dobravam, viravam sozinhos como se estivessem mudando de forma, se adaptando ao seu medo. Como um labirinto vivo que a estudava em silêncio.
Atrás dela, os sussurros não cessavam.
— Você está aqui... Você está aqui...
— Ela abriu... Ela abriu...
As bocas nos olhos da menina — se é que era uma menina — haviam parado de falar, mas agora eram as paredes que murmuravam. As rachaduras pareciam lábios. E os quadros? Todos eles agora tinham o rosto dela. Mas distorcido, derretido, chorando sangue.
Helena tentou ligar o celular. Nada. Sem sinal. Sem GPS. Sem tempo.
Virou à esquerda. Uma porta entreaberta a convidava com um rangido lento, como se respirasse. Ela entrou. Era um quarto de criança. Mas não havia brinquedos — apenas bonecas partidas com olhos arrancados e costurados de volta em lugares errados. Uma delas tremia no canto, como se estivesse viva. A outra... a outra sussurrava.
— Eles dormem sob o assoalho.
— Mas agora estão acordando.
O ar estava ficando mais denso. Cada vez mais. Como se o oxigênio estivesse sendo devorado. A lanterna piscou, falhou. Um estalo atrás dela. Virou-se num pulo — ninguém. Mas o chão sob seus pés começou a estufar, como se algo rastejasse por baixo, empurrando as tábuas.
Helena gritou.
Correu de novo, sem pensar. A casa não deixava. Portas se fechavam sozinhas. O teto rangia. E em algum lugar, um piano começou a tocar sozinho. Notas suaves, tristes. Ela reconhecia aquela melodia. Era a canção que sua mãe cantava quando ela era pequena. Mas sua mãe estava morta há anos.
— Helena...
A voz dela.
— Venha me ver. Estou esperando na sala de chá... como antes... lembra?
A voz vinha do andar de cima.
E contra todo instinto, contra toda lógica, Helena subiu. Os degraus gemiam, choravam. Uma das molduras na parede caiu com um estalo, revelando um buraco negro atrás do reboco. Dali, saía o som de risadas infantis. Rindo. Rindo sem parar.
O andar superior era pior. O teto era baixo, as portas, tortas. Algo pingava do teto. Um líquido espesso e escuro. Sangue? Tinta? Não havia como saber. Ela seguiu até uma porta no final do corredor. Porta branca, com desenhos de flores murchas. Era ali.
Sala de chá.
Abriu. E lá estava sua mãe.
Sentada à mesa, sorrindo. Jovem. Como antes do câncer. Como antes de tudo.
— Sente-se, querida. Trouxe chá pra nós. De jasmim, como você gosta.
Helena não conseguia respirar. As mãos tremiam. Sabia que aquilo não podia ser real.
— Você está morta... isso não é... não pode...
A mulher sorriu. E quando sorriu, seus dentes eram todos agulhas.
— Eu morri, sim. Mas você morreu também, Helena. Só ainda não percebeu.
A casa explodiu em gritos.
Helena se virou, tentou correr, mas a porta havia sumido de novo. O chão se partiu em lascas. A mesa virou cinzas. E a “mãe” se levantou, esticando os braços demais, ossos estalando como madeira quebrada.
Ela estava presa.
Na casa. No tempo. No medo.
E a casa ria.
Ria dela.
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Capítulo 3 – A Coisa Dentro do Espelho
O silêncio já não era mais apenas ausência de som — era uma presença. Espessa, densa, viva. Helena despertou com o peito arfando, como se tivesse corrido por horas, mas seus pés não haviam se movido. Suas mãos tremiam. O suor escorria frio por sua nuca. A lembrança da sala de chá ainda pulsava em sua mente — aquela versão distorcida de sua mãe, os dentes como lâminas, o riso que reverberava nos ossos.
Mas agora, ela estava em outro lugar. Um cômodo completamente novo.
Sem janelas.
Sem luz natural.
Apenas espelhos.
Do chão ao teto, todas as paredes estavam cobertas por espelhos antigos, de molduras tortas, algumas corroídas pelo tempo, outras polidas demais, refletindo não apenas sua imagem — mas memórias. Fragmentos. Pesadelos.
Helena ficou em pé, o coração batendo alto demais em seus ouvidos. A primeira coisa que percebeu foi que cada espelho refletia uma versão diferente dela.
Ali, à esquerda, estava Helena com seis anos, segurando um urso de pelúcia, com os olhos inchados de tanto chorar.
Do outro lado, Helena com dezoito, sentada em seu quarto escuro, encarando o nada com uma lâmina na mão.
Mais à frente, Helena já adulta, coberta de sangue, os olhos perdidos, as mãos tremendo.
E em um espelho grande, bem no centro da parede oposta, uma versão que não era ela.
Era... parecida. Idêntica, talvez. Mas havia algo errado.
Os olhos eram completamente negros, fundos como poços sem fundo.
A pele estava sem vida, quase acinzentada.
E o sorriso...
Deus, aquele sorriso.
Um sorriso que dizia: "Eu sei tudo sobre você. Inclusive o que você nega até para si mesma."
Helena se aproximou, hesitante.
O reflexo sorriu mais. E, de repente, moveu-se sozinho.
Sozinho.
O sangue dela congelou.
A outra Helena ergueu a mão, bateu levemente contra o vidro. Um som seco, oco. Um toc toc toc que soava como batidas na tampa de um caixão.
Helena recuou um passo. Depois outro. Mas o reflexo não a seguiu — não exatamente.
Ele começou a bater com mais força. O vidro vibrou. Trincou. Um estalo. Depois outro.
Uma rachadura serpenteou pelo espelho como uma aranha de vidro, correndo do centro até as bordas.
Helena gritou:
— NÃO!
Mas o espelho... explodiu.
Não em estilhaços, mas em líquido. Um jorro escuro, viscoso, como sangue envelhecido misturado a óleo. A sala inteira se tingiu de vermelho. O chão foi coberto por uma poça escorregadia e quente. E de dentro dele... ela emergiu.
A Outra.
A cópia. A sombra. A ausência de alma.
Ela se ergueu lentamente, os membros se esticando em ângulos impossíveis. Cada movimento fazia os ossos estalarem como madeira podre quebrando. Os cabelos grudavam no rosto pálido. Os olhos negros reluziam como poças de petróleo. E a boca... a boca era apenas um risco rasgado demais para ser humano.
— Eu sou você... sem os filtros.
— Sou a que ficou para trás.
— A que você enterrou para continuar respirando.
Helena tentou fugir, mas seus pés afundavam no líquido que cobria o chão. Era como lama viva. Cada movimento puxava seu corpo mais para baixo, como se a casa tivesse decidido que ela deveria afundar ali, junto com suas verdades.
A Outra Helena se aproximou, e a voz dela soava como vidro arranhado.
— Você quer sair? Quer sobreviver? Então me encare.
— Prove que você ainda é real.
As paredes da sala começaram a tremer. Espelhos vibravam. Imagens antigas surgiam — cenas de sua infância, momentos esquecidos, traumas enterrados.
E então, tudo desapareceu.
A cena mudou.
Ela estava... no quarto da infância.
Exatamente como ela se lembrava. O abajur de coelhinhos. O tapete felpudo cor-de-rosa. As prateleiras com livros infantis. A boneca de pano que sua irmã lhe deu no aniversário de cinco anos.
Mas algo estava errado.
A porta estava entreaberta, como naquela noite. Aquela noite. A mais escura.
E debaixo da cama... olhos.
Muitos olhos. Olhos pequenos, arregalados, esbugalhados. Seguidos por mãos. Mãos infantis. Mãos que se estendiam lentamente, como se esperassem alguém. Como se buscassem... ela.
— Você lembra? — uma voz doce, infantil, ecoou pelo quarto.
— Lembra do que fez?
A boneca caiu da estante com um baque seco. A luz do abajur piscou.
— A noite em que sua irmã chorava e você trancou a porta... Porque estava com medo. Porque não queria ouvir.
— Ela gritou por você, Helena. Mas você fingiu que dormia.
Helena caiu de joelhos, lágrimas escorrendo.
— Não... não é verdade...
Mas era.
A cama se virou sozinha. As mãos agarraram seus braços, suas pernas. Garras de lembranças. Vozes de culpa.
E no escuro, entre os olhos e as mãos, surgiu o rosto de sua irmã.
Pálido. Rachado. Sem brilho.
— Você me deixou aqui, sozinha. Agora... é sua vez.
A luz se apagou. O quarto desapareceu.
Ela acordou de novo — ou achava que sim. Estava de volta na sala dos espelhos. Todos quebrados. Todos vazios.
Menos um.
E nesse único espelho... ela não estava sozinha.
Atrás dela, refletido no vidro trincado, uma mão surgia lentamente sobre seu ombro.
Mas quando virou-se... não havia ninguém ali.
Só o toque frio.
E o sussurro:
— Você está cada vez mais perto... da verdade.
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