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Entre Cicatrizes e Champagne

capítulo 1 Silêncio do primeiro dia

A garoa fina e persistente que caía sobre a cidade nova parecia uma cortina translúcida

separando Clara de seu passado recente. Cada gota que escorria pelos vidros do táxi

refletia as luzes urbanas de forma distorcida, quase onírica, enquanto o veículo

deslizava pelas ruas de paralelepípedos molhados. O cheiro que emanava do asfalto

úmido misturava-se ao odor de terra molhada vindo dos poucos canteiros que ladeavam

a via, uma fragrância que Clara aspirou profundamente, como se buscasse nela um

batismo, uma purificação simbólica. Um novo começo. Era a frase que ecoava em sua

mente, um mantra frágil contra a avalanche de memórias que tentavam romper a

barreira que ela erguera com tanto esforço.

Um endereço diferente, anotado às pressas em um guardanapo amassado, agora

cuidadosamente guardado na carteira como um talismã. Um nome a menos na agenda

do celular, deletado com dedos trêmulos em uma noite insone, o ato final de cortar uma

ligação tóxica. E nenhuma lembrança física dentro das duas malas surradas que

ocupavam o banco ao lado – apenas roupas cuidadosamente dobradas, alguns

utensílios de cozinha essenciais que pertenciam à sua avó e que ela se recusara a deixar

para trás, e as cicatrizes. Ah, as cicatrizes. Essas, invisíveis aos olhos alheios, pesavam

mais do que qualquer bagagem material. Eram marcas gravadas na alma, testemunhas

silenciosas de batalhas travadas em silêncio, de palavras que feriram mais que golpes,

de um amor que se transmutara em prisão.

O táxi parou em frente a um prédio de fachada antiga, espremido entre outros dois

igualmente vetustos. A ruazinha era charmosa, quase um clichê de cartão-postal

europeu, com suas sacadas de ferro trabalhado e floreiras tímidas desafiando a chuva.

Do outro lado da rua, quase escondido estava ele: o

bistrô. A placa de madeira escura, entalhada com letras cursivas delicadas, anunciava

“La Lune”.

O nome evocava uma sensação de mistério e tranquilidade, um refúgio sob

a luz prateada da lua. Clara imaginou o tipo de lugar que seria: mesas pequenas com

toalhas xadrez, velas tremulando, o aroma de pão fresco e café pairando no ar. Um

cenário perfeito para casais apaixonados sussurrando segredos, para amigos celebrando

pequenas conquistas, para pessoas felizes registrando em fotos pratos coloridos e

sorrisos espontâneos. Pessoas que Clara sentia pertencerem a um universo paralelo ao

seu. Ela nunca fora uma dessas pessoas. Ou talvez tivesse sido, há muito tempo, antes

que a vida lhe roubasse as cores.

Pagou o motorista, a voz quase um sussurro, e desceu do carro, sentindo o ar frio e

úmido no rosto. As malas pareceram pesar uma tonelada enquanto as arrastava pela

calçada irregular. Parou por um instante em frente à porta de madeira maciça do bistrô.

Hesitou. O coração batia descompassado, uma mistura de medo e uma fagulha

minúscula de esperança. Era ali. O lugar que que viu no jornal, contatada

em um momento de desespero, havia lhe indicado. Um emprego, um teto temporário no

pequeno apartamento quadras a baixo, uma chance.

Respirou fundo mais uma vez, o ar carregado de chuva e do cheiro adocicado que vinha

de dentro do bistrô – talvez baunilha, talvez canela. Empurrou a porta pesada e entrou.

O som de seus sapatos de sola gasta ecoou no piso de madeira escura e encerada, um

som quase profano na quietude acolhedora do lugar. O ambiente era exatamente como

imaginara, e ainda assim, surpreendente. Luzes baixas e amareladas criavam uma

atmosfera íntima, velas tremulavam dentro de pequenos castiçais de vidro em cada

mesa, e das paredes de tijolos aparentes pendiam quadros com paisagens tranquilas e

espelhos com molduras antigas que refletiam a luz de forma suave. O cheiro era ainda

mais intenso ali dentro: uma mistura complexa de café recém-passado, ervas frescas,

alho refogando e algo doce assando no forno. Um cheiro de comida caseira, de conforto,

de lar – uma palavra que Clara quase esquecera o significado.

Tudo ali parecia cuidadosamente orquestrado para transmitir paz e acolhimento. Uma

perfeição quase dolorosa para quem se sentia tão quebrada por dentro. Clara mal

conseguia compreender como seus passos a haviam guiado até ali, como se uma força

invisível a tivesse empurrado através daquela porta. O peso do passado, com suas

escolhas equivocadas, suas omissões covardes e suas falhas retumbantes, ainda a

seguia como uma sombra pegajosa. Mas ali estava ela, parada no meio daquele refúgio

improvável, tentando desesperadamente encontrar um fiapo de si mesma em meio aos

escombros.

— Clara? — A voz feminina, suave mas firme, a arrancou de seu torpor. Virou-se,

sobressaltada, e deparou-se com a mulher que seria sua âncora naquele mar revolto.

Cabelos castanhos presos em um coque frouxo, com alguns fios rebeldes escapando e

emoldurando um rosto de traços marcantes, mas gentis. Olhos castanhos expressivos,

que pareciam ler a alma. Vestia um jaleco branco impecável, curiosamente manchado

por uma pequena nódoa de vinho tinto perto do bolso, um detalhe que a tornava real,

humana. A mulher sorriu, um sorriso que não era apenas de cortesia, mas de genuína

boas-vindas, e estendeu a mão. — Sou Helena. Dona do bistrô. Seja bem-vinda ao seu

recomeço.

Clara apertou a mão estendida com uma força desmedida, quase desesperada, como

um náufrago que se agarra a uma tábua de salvação. As palavras de Helena – “seu

recomeço” – ressoaram fundo, atingindo um ponto sensível. Não sabia como

agradecer, como explicar a gratidão e o pânico que a invadiam simultaneamente. Não

sabia como fingir que estava tudo bem, que era apenas uma nova funcionária

começando um novo emprego. Mas Helena pareceu compreender tudo sem que uma

única palavra precisasse ser dita. Havia uma sabedoria antiga naquele olhar, uma

empatia que transcendia as formalidades.

— Venha, vou te mostrar onde deixar suas coisas e depois a cozinha. — Helena guiou-a

pelos fundos do salão, passando por um corredor estreito. — Aqui ninguém corre, Clara.

Ninguém grita. E, principalmente, ninguém pergunta sobre o passado, a menos que você

queira contar. A cozinha é território sagrado, nosso refúgio. Respire fundo. Vai dar tudo

certo.

Clara quis acreditar. Ah, como ela queria. Assentiu em silêncio, engolindo o nó na

garganta, e seguiu Helena, sentindo uma pequena chama de esperança tremeluzir em

meio à escuridão que a habitava.

Naquela primeira noite, o ritmo da cozinha foi um bálsamo inesperado. O som das facas

picando legumes na tábua, o chiado da cebola dourando na manteiga, o borbulhar

suave dos molhos nas panelas, o tilintar dos pratos sendo organizados. Era uma sinfonia

caótica e harmoniosa ao mesmo tempo, um fluxo constante de trabalho que exigia

concentração e a mantinha ancorada no presente, longe das memórias que a

assombravam. A primeira cliente do turno noturno entrou, trazendo consigo o cheiro da

chuva e um sorriso tímido. Depois outra, um casal de idosos de mãos dadas. E mais

outra, um grupo de amigas ruidosas. Pequenos pedidos eram anotados, bebidas

servidas, pratos quentes e fumegantes saíam do passe, a pequena abertura entre a

cozinha e o salão, e eram levados por Adriana, a outra garçonete, uma jovem de sorriso

fácil e movimentos ágeis.

Helena movia-se com a graça de quem conhecia cada centímetro daquele espaço, ora

supervisionando a finalização de um prato, ora conversando brevemente com um

cliente habitual, sempre com aquele sorriso sereno de quem já decifrara alguns dos

segredos da vida. Clara, por outro lado, sentia-se deslocada, uma peça estranha em uma

engrenagem bem azeitada. Observava, aprendia os nomes dos pratos, tentava

memorizar a disposição das mesas, sentindo-se uma intrusa em sua própria história

recém-iniciada. Mas, ainda assim, o calor que emanava do fogão e o ritmo constante da

noite lhe proporcionavam um alívio que não sentia há muito tempo. Era um cansaço

físico, real, que começava a suplantar o cansaço emocional que a consumia.

Foi então, no meio da noite, quando a chuva lá fora pareceu intensificar-se e o

movimento no salão diminuiu ligeiramente, que ele entrou. A porta se abriu devagar,

quase hesitante, e a figura alta e esguia recortou-se contra a luz da rua. Vestia um terno

escuro, impecavelmente cortado, mas visivelmente molhado pela chuva, os ombros

ligeiramente curvados, como se carregasse um peso invisível. Os cabelos castanhos,

espessos e ondulados, estavam desalinhados pela umidade e pelo vento, e uma barba

rala, por fazer, conferia-lhe um ar ao mesmo tempo distinto e negligente. Mas foram os

olhos que prenderam a atenção de Clara. Olhos profundos, de um tom indefinido entre

o cinza e o azul, que pareciam guardar um universo de silêncio. Um silêncio denso,

pesado, do tipo que só se encontra em quem já chorou escondido, em quem já

conheceu a dor em sua forma mais crua.

Ele não olhou para os lados. Caminhou diretamente para a mesa mais afastada, no

canto mais escuro do bistrô, longe das velas que tremulavam e da vitrine iluminada que

exibia tortas e doces tentadores. Sentou-se de frente para a parede, como se quisesse

dar as costas para o mundo. E não pediu nada. Apenas ficou ali, imóvel, os olhos

perdidos em algum ponto além das paredes de tijolos, imerso em uma ausência quase

palpável. Nada. Ele não queria nada além de silêncio.

— Ele vem todas as quartas-feiras — a voz de Helena sussurrou ao lado de Clara,

fazendo-a sobressaltar-se. Ela nem a vira aproximar-se. — Sempre neste mesmo horário.

Sempre se senta ali. Sempre calado. Perdeu a esposa há uns dois anos, num acidente estúpido.

Desde então, vem aqui. Acho que para... não sei. Sentir o cheiro de comida,

talvez. Ou o cheiro de vida. Para não se sentir tão sozinho no silêncio dele.

Clara se pegou observando o homem. Longamente. Havia algo nele que a perturbava

profundamente. Não era a beleza clássica, embora ele fosse inegavelmente bonito, de

uma forma melancólica e intrigante. Era a ausência. Ele parecia um espectro, um corpo

presente, mas uma alma flutuando em alguma memória distante, dolorosa. E Clara,

para seu próprio espanto, compreendeu aquele estado sem precisar de uma única

palavra. Era um espelho incômodo, refletindo um vazio que ela mesma temia carregar.

Não queria ser como ele, perdida naquela névoa de dor. Mas, contraditoriamente, algo

nele a atraía, a chamava para um território desconhecido de sua própria alma, algo que

ela ainda não estava pronta para nomear ou entender.

— Leve este prato para ele, no lugar da Adriana — disse Helena de repente, com um

sorriso maroto nos lábios, quebrando o feitiço. Ela indicou um risoto de cogumelos

trufados, fumegante e aromático, que acabara de sair da cozinha. — Eu? Mas... ele não

pediu nada. E você disse que a Adriana... — Exato. Você é a novidade aqui. Quem sabe

você não quebra a rotina dele? Às vezes, uma pequena mudança é tudo que alguém

precisa.

Clara hesitou, o coração novamente aos pulos. Sentiu o olhar curioso de Helena sobre si.

Pegou o prato, as mãos ligeiramente trêmulas, a porcelana quente aquecendo seus

dedos. Respirou fundo e começou a caminhar em direção à mesa do canto, sentindo

todos os olhares do pequeno bistrô convergirem para ela. Ou talvez fosse apenas sua

imaginação. No meio do caminho, os olhos dele encontraram os dela. Um encontro

fugaz, mas intenso. Por um instante eterno, Clara achou que ia tropeçar nos próprios

pés, que o prato escorregaria de suas mãos, que ia desabar em lágrimas ali mesmo. Não

sabia explicar a torrente de emoções que aquele simples cruzar de olhares provocou.

Mas teve a certeza incômoda de que aquele encontro, aparentemente banal, marcaria o

início de um novo capítulo. Um recomeço turbulento, talvez, mas um recomeço que,

sem saber, ela estava desesperadamente pronta para viver.

Chegou à mesa, parando a uma distância respeitosa. Ele ergueu o rosto completamente,

e ela pôde ver de perto as linhas finas de expressão ao redor dos olhos, a sombra de

cansaço sob eles.

— Seu pedido — conseguiu dizer, a voz mais firme do que esperava.

Ele franziu levemente o cenho, a expressão indecifrável.

— Eu... não pedi nada — respondeu ele, a voz grave, rouca, como se não fosse usada há

muito tempo. Uma voz que carregava o peso do mundo.

Clara engoliu em seco, mas sustentou o olhar.

— Mas precisa comer. Está chovendo lá fora. E... está frio aqui dentro sem algo quente no

estômago.

Os olhos dele permaneceram fixos nos dela por um instante que pareceu se esticar

indefinidamente. Um instante onde mundos silenciosos colidiram. Então, sem dizer

mais nenhuma palavra, ele desviou o olhar para o prato fumegante e, com um gesto

lento, quase imperceptível, assentiu. Aceitou o prato.

Clara sentiu um alívio estranho misturado a uma agitação ainda maior. Deu meia-volta

rapidamente e retornou para a segurança da cozinha, o coração martelando contra as

costelas como um pássaro assustado. Ela não sabia ainda, não podia imaginar, mas

aquele homem silencioso, perdido em sua própria dor, seria a primeira pessoa a

enxergá-la – de verdade, para além das aparências e dos disfarces – em muito, muito

tempo.

Capítulo 2 – Marcas Invisíveis

A semana que se seguiu à primeira quarta-feira de Miguel no La Lune foi, para Clara, uma

sucessão de dias arrastados sob um céu invariavelmente cinzento. A chuva fina dera

lugar a uma umidade pegajosa que parecia impregnar tudo, desde as toalhas de mesa

do bistrô até os cantos mais escondidos de seus próprios pensamentos. A presença

silenciosa daquele homem, Miguel, instalara-se em sua mente como um hóspede

indesejado, porém persistente. Não era uma lembrança agradável, daquelas que

aquecem o peito; era mais como o eco incômodo de uma nota desafinada, uma

dissonância na melodia monótona que ela tentava impor à sua nova vida.

O rosto dele, com aquela expressão indecifrável de melancolia contida, surgia em

flashes inesperados. Enquanto esfregava com força uma mancha teimosa de café em

uma xícara de porcelana, via o reflexo fugaz dos olhos cinza-azulados dele na superfície

brilhante. Ao sentir o aroma forte do café sendo moído na máquina antiga do bistrô,

lembrava-se da voz grave e rouca dele, quase um sussurro, dizendo que não havia

pedido nada. Até mesmo nos breves momentos de silêncio, entre o burburinho dos

clientes e o tilintar dos talheres, a imagem dele se materializava, sentada à mesa do

canto, envolta em sua própria névoa de ausência.

Não, definitivamente não era saudade. Nem sequer uma curiosidade romântica. Era um

profundo desconforto, uma irritação quase infantil por ele ter conseguido, com um

simples olhar, atravessar as defesas que ela levara tanto tempo e dor para construir.

Aquele olhar não era invasivo, nem julgador, mas parecia ter a capacidade incômoda de

enxergar através das camadas de indiferença cuidadosamente aplicadas, tocando

diretamente nas marcas invisíveis que ela tanto se esforçava para esconder. As

cicatrizes. Aquelas que não sangravam mais, mas que latejavam sob a pele ao menor

toque da memória.

Clara detestava essa vulnerabilidade recém-descoberta. Passara os últimos meses – ou

seriam anos? – aperfeiçoando a arte da dissimulação. O sorriso automático para os

clientes, a postura ereta que mascarava o peso nos ombros, a conversa trivial que

preenchia os vazios e evitava perguntas mais profundas. Tornara-se uma atriz

competente no palco improvisado de sua existência, e odiava quando alguém parecia

perceber a atriz por trás da personagem. Miguel, com seu silêncio e sua aparente

capacidade de ver além, ameaçava desmascará-la, mesmo sem intenção.

E, no entanto, contraditoriamente, enquanto os dias se arrastavam – quinta, sexta,

sábado, o domingo melancólico, a segunda-feira arrastada, a terça-feira ansiosa –, Clara

se pegou contando as horas para a próxima quarta-feira. Não era um desejo de

reencontro, assegurava a si mesma repetidamente. Era apenas uma necessidade quase

clínica de entender. Entender o que, exatamente, aquele homem e seu silêncio

carregado de histórias não contadas haviam despertado nela. Que fio desencapado ele

havia tocado? Que porta trancada ele ameaçava arrombar?

A semana pareceu esticar-se como um elástico velho, cada dia trazendo consigo a poeira

das lembranças que ela varria para debaixo do tapete da rotina. Mantinha-se ocupada,

mergulhando no trabalho com uma dedicação quase febril. Limpava mesas com uma

energia excessiva, organizava os talheres com uma precisão militar, atendia aos pedidos

com uma eficiência que beirava a rigidez. Mas a cada vez que o pequeno sino de latão

sobre a porta do bistrô tilintava, anunciando uma nova chegada, seu coração dava um

salto involuntário e seu corpo enrijecia, numa reação defensiva automática. Nunca era

ele. Eram casais sorridentes, famílias barulhentas, estudantes apressados, turistas

curiosos. Pessoas normais, vivendo vidas normais, alheias ao turbilhão silencioso que

agitava o interior da garçonete de olhar distante.

Finalmente, a quarta-feira chegou, arrastando consigo uma brisa fria que anunciava o

fim do outono. Clara se arrumou com um cuidado que tentou disfarçar de rotina. A

mesma calça jeans confortável, a camisa branca impecavelmente passada, os cabelos

presos num coque ligeiramente mais arrumado que o habitual. Hesitou diante do

espelho do banheiro minúsculo de seu apartamento nos fundos do bistrô. Passou um

batom de cor neutra, apenas para dar um toque de vida aos lábios pálidos, um pequeno

ato de rebeldia contra a palidez que sentia por dentro. “Nada demais”, murmurou

para seu reflexo, tentando convencer a si mesma.

Entrou no salão do La Lune alguns minutos antes do início de seu turno, o olhar

varrendo discretamente o ambiente enquanto pendurava o casaco. O relógio antigo na

parede marcava o tempo com uma lentidão exasperante. Dessa vez, escolheu uma

posição estratégica, perto do balcão, onde poderia observar a entrada sem ser

imediatamente notada. Fingiu organizar os açucareiros, a mente trabalhando em alta

velocidade, ensaiando uma indiferença que não sentia.

E então, pontualmente, como se obedecesse a um relógio interno marcado pela dor ou

pelo hábito, Miguel entrou. O mesmo terno escuro, talvez um pouco menos amassado

que na semana anterior. Os cabelos ainda rebeldes, a barba por fazer conferindo-lhe

aquele ar de artista torturado ou de homem que simplesmente desistira das

convenções. Ele parou por um instante na entrada, o olhar varrendo o ambiente, não

como quem procura alguém, mas como quem verifica se o refúgio ainda está intacto.

Seus olhos passaram por Clara sem se deterem, e ela sentiu um misto de alívio e uma

pontada inexplicável de... decepção? Repreendeu-se imediatamente. Que importância

tinha se ele a notara ou não?

Ele caminhou até a mesa do canto, a mesma de sempre, e sentou-se, depositando ao

lado uma pasta de couro gasta e um livro. Abriu o livro imediatamente, mergulhando em

suas páginas como um náufrago que encontra terra firme. Clara o observou por cima da

borda de uma taça que fingia polir. Ele parecia mais relaxado hoje, talvez. Ou apenas

mais resignado. As linhas de expressão ao redor dos olhos pareciam um pouco mais

suaves, a tensão nos ombros, menos pronunciada. Mas o cansaço ainda estava lá, uma

sombra persistente em seu semblante. Era como olhar para uma paisagem familiar e

desoladora. O mundo, ela pensou com uma pontada de amarga empatia, parecia ter

sido igualmente cruel com ele.

Foi nesse instante de observação clandestina que a percepção a atingiu com a clareza de

um raio: não era Miguel, o homem, que a perturbava. Era o espelho. Era o que ele refletia

dela mesma. A capacidade de sentir dor, a marca indelével da perda, a solidão que se

esconde por trás de uma fachada de normalidade. E, mais assustador ainda, ele

despertava a lembrança tênue, quase apagada, de que um dia ela também fora capaz de

sentir outras coisas. Coisas boas. Confiança. Alegria. O desejo de tocar e ser tocada sem

medo. Sentimentos que ela acreditava ter enterrado para sempre, junto com seu antigo

nome e sua antiga vida. Sentimentos que lhe custaram caro demais, um preço que ela

jurara nunca mais estar disposta a pagar.

Clara desviou o olhar abruptamente, o coração palpitando de forma irregular. Respirou

fundo, tentando acalmar a tempestade interna. Não, não era paixão. Estava longe disso.

Não era nem mesmo esperança. Era apenas o reconhecimento assustador de uma

rachadura na muralha que ela construíra com tanto esmero ao redor de si mesma. Uma

rachadura fina, quase invisível, mas que ameaçava comprometer toda a estrutura. E ela

sabia, por experiência própria, que às vezes era assim, com uma pequena fissura, que

tudo começava a desmoronar.

Adriana, a outra garçonete, aproximou-se da mesa de Miguel com seu bloco de notas e

um sorriso profissional. Clara observou a interação à distância. Miguel ergueu os olhos

do livro, respondeu às perguntas de Adriana com monossílabos educados, fez seu

pedido habitual. Café sem açúcar. Uma fatia generosa do pão artesanal de fermentação

lenta que Helena assava toddos dias, servido com um fio de azeite extra virgem e

um raminho de alecrim fresco. O mesmo pedido. A mesma rotina. Uma previsibilidade

que, por um lado, era reconfortante, mas por outro, intensificava o mistério ao redor

daquele homem.

Clara sentiu um impulso quase irresistível de ir até lá, de assumir o atendimento daquela

mesa, como Helena a incentivara a fazer na semana anterior. Mas hesitou. Fugir parecia

covardia, uma admissão de que ele a afetava. Mas ir até lá... o que diria? O que

esperaria? Sentiu-se paralisada pela indecisão, uma sensação que conhecia bem

demais.

Foi Miguel quem quebrou o impasse. Após Adriana se afastar, ele ergueu novamente os

olhos do livro e seu olhar encontrou o de Clara do outro lado do salão. Dessa vez, ele a

viu. E não desviou o olhar. Houve um reconhecimento silencioso, uma fração de

segundo em que o tempo pareceu parar. Ele não sorriu, mas houve uma leve inclinação

de cabeça, um cumprimento mudo, quase imperceptível para qualquer outra pessoa no

bistrô. Mas Clara viu. E sentiu.

Recompondo-se, ela pegou seu próprio bloco de notas e caminhou em direção a outra

mesa, onde um casal a aguardava. Manteve a postura firme, o rosto impassível. Mas por

dentro, a rachadura na muralha parecia ter se alargado um pouco mais.

Mas logo em seguida, Adriana se aproximou do balcão, ofegante e sobrecarregada.

— Clara, pode levar o café do Miguel hoje? Estou atolada de pedidos — pediu, sem tempo para disfarçar o cansaço.

Clara hesitou por um instante. Fugir pareceria fraqueza. Aceitar seria admitir que ele a afetava. Mas no fim, pegou a bandeja com mãos firmes, sem dizer nada.

Ela levou o pedido até a mesa. Depositou a xícara com cuidado, evitando o olhar dele.

— Seu café. E o pão — disse, num tom neutro.

— Obrigado, Clara — ele respondeu. O nome dela, dito com aquela calma, teve um peso inesperado.

Antes de se afastar, ela arriscou um olhar para o livro que ele lia. Conseguiu captar palavras no título: “sombras” e “memória”. Achou curioso. Um homem envolto em silêncio lendo sobre lembranças.

De volta ao balcão, o sino da porta tocou. Um grupo entrou rindo alto. A rotina se impôs novamente. Mas Clara sabia: algo havia mudado. Uma rachadura pequena abrira-se na muralha que construíra ao redor de si.

E por menor que fosse, era o suficiente para deixar passar um pouco de luz.

Capítulo 3 — Ecos de Silêncio

A quinta-feira amanheceu com uma luz pálida e difusa, filtrada por uma camada espessa

de nuvens que prometia mais chuva, ou talvez apenas a continuação daquela

melancolia atmosférica que parecia ter se instalado na cidade. No La Lune, o dia

começou com o ritmo habitual: o aroma do café fresco se espalhando pelo salão ainda

vazio, o tilintar suave das xícaras sendo arrumadas no balcão, o murmúrio baixo de

Helena na cozinha, provavelmente conferindo o estoque ou planejando o especial do

dia.

Clara chegou pontualmente, vestindo seu uniforme improvisado – a camisa branca, a

calça jeans, o avental limpo amarrado na cintura. Tentou forçar um semblante neutro,

uma máscara de profissionalismo que escondesse a agitação interna que a noite

anterior lhe deixara. A imagem de Miguel, o encontro de olhares, a breve troca de

palavras, tudo aquilo reverberava em sua mente como ecos em um poço fundo. Eram

ecos de silêncio, paradoxalmente, pois o que mais a perturbava não era o que fora dito,

mas o que permanecia não dito, o universo de sentimentos contidos que ela percebia –

ou imaginava perceber – por trás da fachada tranquila daquele homem.

O bistrô logo começou a encher. O burburinho das conversas matinais, o som da

máquina de expresso trabalhando sem parar, o riso ocasional de um grupo de amigos

compartilhando o café. Clara mergulhou na coreografia familiar do

atendimento: anotar pedidos, servir mesas, recolher pratos sujos, trocar algumas

palavras cordiais com os clientes habituais. Era um trabalho que exigia movimento

constante, atenção aos detalhes, um sorriso pronto – mesmo que forçado. E, de certa

forma, essa exigência de presença física e mental era um alívio. Mantinha seus

pensamentos ocupados, ancorados no presente imediato, longe das águas turbulentas

de suas próprias emoções.

Mas a mente tem seus próprios caminhos, e mesmo em meio ao caos organizado do

serviço, a imagem de Miguel persistia. Não como uma obsessão, mas como uma

pergunta silenciosa. Quem era ele? O que o levava a buscar refúgio naquele canto escuro

do bistrô todas as quartas-feiras? E, a pergunta mais incômoda de todas: por que sua

presença a afetava tanto?

Ela tentava racionalizar. Era apenas um cliente. Um homem bonito, sim, com um ar

misterioso que talvez despertasse a curiosidade de qualquer mulher. Mas ela não era

qualquer mulher. Ela era Clara, a sobrevivente, a mulher que aprendera da maneira mais

dura a desconfiar de aparências, a erguer muros altos ao redor de seu coração ferido.

Não podia, não devia, deixar-se levar por uma simples troca de olhares, por uma

sensação fugaz de conexão.

No entanto, enquanto limpava a mesa número cinco, perto da janela, seus olhos foram

atraídos para o chão. Algo pequeno e escuro estava parcialmente escondido sob a perna

da cadeira. Um objeto familiar. Abaixou-se, o coração dando um salto involuntário. Era

um marcador de páginas. De couro escuro, com bordas ligeiramente desgastadas pelo

uso e um brilho dourado discreto nas letras da inscrição. O marcador de Miguel.

Ele o esquecera. Na noite anterior, tão absorto em seu livro ou em seus próprios

pensamentos, ele o deixara para trás.

Clara pegou o marcador com as pontas dos dedos, sentindo a textura suave do couro.

Virou-o, relendo a inscrição quase apagada que a intrigara tanto: “Mesmo as páginas

rasgadas têm valor.”

A frase ressoou nela com uma força inesperada. Páginas rasgadas. Era assim que ela se

sentia. Um livro cuja história fora interrompida bruscamente, cujas páginas mais

importantes haviam sido arrancadas, manchadas, amassadas. Uma história que ela

tentava reescrever, mas cujas rasuras eram visíveis demais, pelo menos para si mesma.

Mas a frase dizia que mesmo essas páginas, as rasgadas, as imperfeitas, ainda tinham

valor. Era uma ideia simples, quase um clichê de autoajuda, mas vinda daquele objeto,

encontrado naquele contexto, pareceu carregar um significado mais profundo. Seria

uma mensagem para ela? Uma coincidência? Ou apenas a filosofia de vida de um

homem que também carregava suas próprias páginas rasgadas?

Olhou ao redor, certificando-se de que ninguém a observava. Helena estava na cozinha,

Adriana atendia a uma mesa do outro lado do salão. Hesitou por um instante. O

procedimento correto seria entregar o objeto no caixa, na seção de “Achados e

Perdidos”. Era o profissional a fazer. Mas algo a impediu.

Um impulso inexplicável, uma sensação de que aquele pequeno objeto continha algo

mais do que aparentava, fê-la deslizar o marcador para dentro do bolso de seu avental.

Foi um gesto rápido, quase furtivo, carregado de uma sensação estranha de

cumplicidade secreta. Com quem? Com Miguel? Ou consigo mesma, com a parte dela

que ainda ansiava por acreditar que suas próprias páginas rasgadas poderiam, de

alguma forma, ter valor?

Sentiu o contorno do marcador no bolso durante o resto do turno. Um lembrete

constante daquele encontro silencioso, daquela conexão tênue e perturbadora. Não

conseguia explicar por que o guardara. Talvez fosse um desejo infantil de ter um elo, por

menor que fosse, com aquele homem misterioso. Talvez fosse uma forma de se agarrar à

esperança implícita naquelas palavras gravadas no couro. Ou talvez fosse apenas um ato

de rebeldia contra a própria lógica, contra a voz interna que lhe dizia para manter

distância, para não se envolver, para proteger a todo custo a frágil paz que conquistara.

No final do expediente, enquanto trocava de roupa no pequeno vestiário nos fundos,

tirou o marcador do bolso e o observou novamente sob a luz fraca da lâmpada. Passou o

dedo sobre as letras douradas. “Mesmo as páginas rasgadas têm valor.” Quem teria

dado aquele marcador a ele? Teria sido a esposa que ele perdera? Ou seria um lema

pessoal, uma forma de lidar com a própria dor?

Guardou o marcador cuidadosamente em sua bolsa, entre a carteira e o celular. Não

contou a ninguém sobre o achado. Não mencionou a Helena, nem a Adriana. Era um

segredo. Um pequeno tesouro encontrado em meio à rotina, cujo significado ela ainda

não compreendia, mas que sentia, de alguma forma, pertencer-lhe.

Naquela noite, em seu apartamento silencioso, o marcador repousava sobre a mesinha

de cabeceira. Clara preparou seu chá de camomila habitual, tentando relaxar após o dia

agitado. Mas o sono demorou a chegar. A mente repassava os eventos do dia, as

conversas triviais, os pedidos atendidos, mas sempre retornava àquele pequeno objeto

de couro.

O que fazer com ele? Deveria devolvê-lo na próxima quarta-feira? Seria essa a atitude

correta, a forma de encerrar aquele ciclo de pensamentos incômodos. Mas a ideia de se

aproximar dele novamente, de iniciar uma conversa, por mais banal que fosse, a deixava

ansiosa. E se ele interpretasse mal? E se ela mesma interpretasse mal?

Levantou-se e foi até a janela, observando as luzes da cidade que começavam a se

acender. A noite lá fora parecia vasta e indiferente. Sentiu-se pequena, perdida em meio

à imensidão. A solidão, sua velha companheira, envolveu-a como um manto frio. Por

que aquele homem, aquele estranho, conseguia abalar suas estruturas de forma tão

profunda?

Talvez fosse a vulnerabilidade compartilhada. Talvez, no fundo, ela reconhecesse nele

um igual, alguém que também navegava pelas águas escuras da perda e da dor. Alguém

que, assim como ela, buscava um refúgio no silêncio, nas rotinas, nos pequenos rituais

que davam alguma ordem ao caos interno.

Voltou para a cama, o chá intocado esfriando na caneca. Pegou o marcador novamente.

A textura do couro era reconfortante em suas mãos. Fechou os olhos, tentando afastar as

perguntas sem resposta. Decidiu que guardaria o marcador. Pelo menos por enquanto.

Seria seu pequeno segredo, seu lembrete silencioso de que, talvez, mesmo as histórias

mais sofridas pudessem ter um final diferente. Ou, pelo menos, um novo começo. Um

começo onde até mesmo as páginas rasgadas pudessem encontrar seu valor.

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