Eu me sento aqui, na primeira fila, observando o caixão fechado que guarda o corpo de Marcelo. Não choro. Não porque meu coração esteja duro, mas porque ele já se quebrou tantas vezes que aprendeu a sangrar por dentro, em silêncio.
Cinco anos. Foram cinco anos da minha vida ao lado dele. Cinco longos anos em que me convenci de que o problema era comigo. Que se eu fosse mais carinhosa, mais bonita, mais submissa... talvez ele me amasse de verdade.
Ele era encantador — para o mundo. Para os amigos, para os colegas de trabalho, para minha própria família. Um homem de palavras doces, sorriso fácil. Ninguém via o veneno por trás da máscara. Só eu. E mesmo assim, demorei para acreditar que aquilo não era amor.
Ele me culpava por tudo. Pelos dias ruins, pelas brigas, até pelo silêncio. Mas nada doía tanto quanto o dia em que me disse: “Você não serve nem pra me dar um filho.” Como se meu corpo fosse uma máquina com defeito. Como se a dor de não engravidar já não me pesasse o bastante.
Hoje, enquanto o vejo ser levado para o forno da cremação, penso se é errado sentir alívio. Porque, no fundo, é isso que eu sinto: alívio. Pela primeira vez em anos, posso respirar sem medo. Posso existir sem pisar em ovos.
Lembro da primeira vez que ele me chamou de inútil. Eu chorei por horas no banheiro, em silêncio, para ele não ouvir. Lembro da vez que tentei sair de casa e ele implorou, chorando, me chamando de "amor da vida dele" — e eu, tola, fiquei.
Agora, ele não pode mais me fazer voltar atrás.
As chamas começam. Todos ao meu redor abaixam a cabeça, alguns choram. Eu permaneço ereta, olhos fixos no vidro. Sinto como se pedaços do meu passado queimassem junto com ele. Não desejo sua dor — jamais desejei. Só desejo minha liberdade.
E, pela primeira vez, me permito pensar no futuro.
Sem culpa. Sem medo.
Só eu.
Finalmente, só eu.
Confesso que achei que nada mais poderia me surpreender. Já tinha me despedido dele, assistido seu corpo ser consumido pelas chamas, e deixado no crematório tudo o que eu carregava por dentro: dor, medo, culpa. Mas aí, veio o testamento.
“Tudo ficou pra você”, disse o advogado, com a voz reta, como quem entrega uma notícia neutra.
Tudo.
A casa onde vivi meus piores dias. As contas recheadas que ele usava pra me controlar. A empresa que ele nunca me permitiu sequer visitar. De repente, era tudo meu.
Minha primeira reação foi rir. Baixo. Um riso incrédulo, quase irônico. Marcelo, aquele que dizia que eu era inútil, que nunca conseguiria viver sem ele, havia me deixado uma fortuna. Uma piada de gosto duvidoso do destino.
Mas logo depois veio o silêncio. Um silêncio pesado, cheio de perguntas sem resposta.
Por que ele fez isso? Arrependimento? Culpa? Um último ato de manipulação?
Ou será que, no fundo, ele sabia... que eu suportei tudo. Que eu aguentei. E mesmo assim, não quebrei.
Eu assinei os papéis. Não por apego ao que ele deixou, mas porque agora isso representa outra coisa: um ponto final. Um novo começo.
Talvez essa tenha sido a única coisa boa que ele me deu. Tarde demais.
Mas ainda assim, é minha.
E com isso, eu escolho viver. Por mim.
Não com o dinheiro dele — mas com a liberdade que ele nunca conseguiu tirar.
Seis meses. Parece pouco tempo para uma vida inteira, mas para mim, foi o bastante para entender que eu ainda estava aqui. Que eu ainda respirava. Que eu ainda sonhava.
Foi num sábado qualquer, tomando café na varanda da casa que antes me prendia, que decidi: eu vou fazer aquele cruzeiro. O de volta ao mundo.
Sempre sonhei com isso — desde menina. Viajar pelos oceanos, conhecer culturas, ver o sol nascer em outros continentes. Mas Marcelo sempre dizia: “Nem morto.”
Pois é. Nem morto.
E agora, ele está morto.
E eu, viva.
Viva o suficiente pra entrar num site, escolher uma cabine com vista pro mar e clicar em “reservar” sem pedir permissão.
No dia do embarque, vesti um vestido leve, deixei o cabelo solto ao vento e carreguei uma mala com poucas roupas e muitos desejos. Quando pisei no navio, senti algo que há muito não sentia: empolgação.
Não sei o que vou encontrar nessa viagem. Talvez paisagens lindas. Talvez novos amigos. Talvez apenas a mim mesma, finalmente inteira.
Mas sei de uma coisa: pela primeira vez, estou indo em direção ao que eu quero.
E, ironicamente, Marcelo estava certo — ele só faria esse cruzeiro “nem morto”.
Eu?
Eu estou indo viva.
Mais viva do que nunca.
O navio era maior do que eu imaginava. Quando cheguei ao porto e o vi de longe, imponente, quase chorei. Mas não de tristeza. Era uma emoção nova, limpa, como se aquela embarcação enorme carregasse dentro dela todas as possibilidades que a vida ainda podia me dar.
Subi a bordo com o coração batendo forte. Fui recebida com um sorriso, uma taça de espumante, e um “bem-vinda a bordo” que parecia mais profundo do que qualquer saudação que já ouvi.
A cabine era linda. Uma varanda com vista para o mar, cama fofa, lençóis brancos, e um silêncio acolhedor. Corri as cortinas, abri a porta de vidro e me apoiei no parapeito. O cheiro de sal, o barulho das ondas, o horizonte se abrindo como um convite.
Respirei fundo.
Passei a tarde explorando o navio como uma criança em um parque de diversões. Salões dourados, piscinas, restaurantes com janelas panorâmicas, gente sorrindo em todas as direções. Não conhecia ninguém. E, pela primeira vez na vida, isso não me assustava.
Não me sentia sozinha. Me sentia livre.
Jantei sozinha, sim. Mas com prazer. Escolhi o vinho, o prato, a sobremesa. Sorri para o garçom. Observei os casais, os grupos de amigos, as famílias — e não me comparei a ninguém.
Ali, naquela primeira noite em alto-mar, percebi algo importante:
eu sou suficiente.
Com ou sem companhia.
Com ou sem passado.
E essa viagem? Ela não é uma fuga. É o meu reencontro.
Depois do jantar, voltei à cabine e escolhi um vestido vermelho que Marcelo jamais teria aprovado. “Chamativo demais”, ele diria. Pois era exatamente isso que eu queria ser naquela noite: visível. Viva.
A balada do navio estava lotada. Luzes coloridas dançavam pelas paredes, a música vibrava no chão e nos corpos ao redor. Entrei decidida, pedi um drink no bar e fui direto pra pista.
Dancei como se meu corpo tivesse esquecido o peso dos últimos anos. Como se cada passo dissesse: “Estou aqui. Ainda estou aqui.”
Bebi mais do que estou acostumada, mas cada gole parecia brindar a minha liberdade. Ninguém me dizendo que estou ridícula, que estou bêbada demais, que uma mulher “como eu” não se comporta assim.
Era só eu. E a música.
E a alegria escorrendo leve pelo meu peito.
Quando saí da balada, com os saltos na mão e o cabelo bagunçado, percebi que não fazia ideia de onde estava minha cabine. Corredores idênticos. Andares confusos. E eu rindo sozinha, girando como se estivesse num daqueles jogos de tabuleiro em que você precisa achar o caminho certo.
Tentei seguir as placas. Não funcionou. Peguei o elevador errado duas vezes. E então, simplesmente desisti — e fui parar de novo na área da piscina, iluminada por luzes suaves e reflexos da lua no mar.
Me joguei numa espreguiçadeira, ainda rindo. Meus pés doíam, meu rosto ardia de tanto sorrir, e minha cabeça girava suavemente com o efeito do álcool e da liberdade.
Ali, sozinha sob o céu estrelado, ri da situação absurda: perdida num navio gigante, no meio do oceano... e incrivelmente feliz.
Porque às vezes, a gente precisa se perder pra começar a se encontrar.
Estevan...
Eu não estava procurando nada. Caminhava pelo deck da piscina em silêncio, como sempre faço nas primeiras noites de viagem — observando as pessoas, sentindo o ar do mar, tentando me desconectar da vida lá fora.
Foi quando a vi.
Deitada numa espreguiçadeira, sozinha, vestindo um vermelho que parecia ter sido pintado à mão para ela. Os cabelos soltos, levemente bagunçados pelo vento. Os pés descalços, o vestido subindo um pouco pelas pernas, e um sorriso no rosto... um daqueles sorrisos que a gente não vê com frequência. Um sorriso verdadeiro, quase infantil, como quem acabou de se libertar de alguma coisa muito pesada.
Ela não me viu. Estava ocupada olhando as estrelas, rindo sozinha, como se conversasse com o universo.
E, por um instante, tive vontade de saber o que ela tinha contado às estrelas para receber um riso tão leve em troca.
Havia algo nela que prendia o olhar. Não era apenas beleza. Era presença. Era a sensação de que aquela mulher — perdida, talvez — estava se encontrando ali mesmo, diante dos meus olhos.
A mulher de vermelho.
Tão intensa, tão solta, tão diferente de tudo que eu já conheci.
E eu fiquei ali, parado, observando de longe.
Com uma certeza silenciosa crescendo no peito:
a história dela tinha algo que eu queria descobrir.
Não sei quanto tempo fiquei ali, parado, só observando. O navio balançava levemente e as luzes suaves da piscina refletiam no rosto dela como num quadro. Parecia cena de filme.
Pensei em ir embora. Em deixar aquela imagem guardada só pra mim. Mas algo me puxava. A curiosidade. Ou talvez aquela sensação estranha de que, se eu fosse embora, perderia algo importante — não uma chance romântica, mas um encontro de alma.
Então respirei fundo, tomei coragem e me aproximei devagar. Sem querer assustar. Sem parecer intrometido.
Ela me ouviu chegando, virou o rosto e me olhou. O sorriso ainda estava lá. Um pouco mais contido, agora curioso.
— Desculpa interromper — falei, com um meio sorriso. — Mas você parece estar se divertindo muito sozinha.
Ela riu de novo. Dessa vez para mim.
— Me perdi — ela disse. — Literalmente. Não faço ideia de onde está minha cabine. Mas estou bem aqui.
— Pelo menos se perdeu com estilo — brinquei, apontando para o vestido vermelho. — Difícil não notar você.
Ela arqueou uma sobrancelha, divertida.
— Isso é um elogio?
— É uma constatação — respondi. — Você tem algo... luminoso. Como se tivesse acabado de se libertar de uma prisão invisível.
Ela me encarou por um segundo mais longo. Como se minhas palavras tivessem tocado num lugar que ninguém mais sabia alcançar.
— Talvez eu tenha — disse ela, mais para o céu do que para mim. — E talvez seja a primeira noite em que percebo isso.
Sentei na espreguiçadeira ao lado. Não pedi permissão, mas também não invadi. Apenas fiquei ali. Ao lado dela. Sob as mesmas estrelas.
E, naquele silêncio confortável que só existe entre dois desconhecidos destinados a se reconhecer, eu soube: aquela mulher de vermelho ainda não sabia, mas estava prestes a mudar o rumo da minha viagem.
E talvez, da minha vida.
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