Capítulo 1 – A Casa da Rua das Amoreiras
O carro ainda nem tinha parado completamente e Pietra já estava com o rosto colado no vidro, olhando a nova casa com uma mistura de curiosidade e receio. Era uma rua tranquila, cheia de árvores com flores cor-de-rosa que caiam como chuva sobre a calçada. A placa dizia: Rua das Amoreiras. O nome parecia saído de um conto de fadas.
— Chegamos — disse sua mãe, com um sorriso forçado que tentava esconder o cansaço da mudança.
Pietra tinha nove anos e odiava mudanças. Gostava de saber onde ficava cada coisa, do cheiro da escola antiga, das amigas do prédio. Mas ali estava ela, em uma cidade nova, em uma casa que ainda cheirava a tinta fresca e caixas de papelão.
Na primeira tarde, enquanto os adultos desembalavam panelas e livros, Pietra se aventurou pelo quintal. E foi ali, do outro lado da cerca baixa que separava os fundos das casas, que ela viu pela primeira vez a menina de vestido azul correndo atrás de uma bola vermelha.
— Ei! — Pietra chamou, quase sem pensar.
A menina parou. Tinha o cabelo castanho-escuro preso num rabo de cavalo meio torto e olhos grandes que brilharam ao ver a desconhecida do outro lado da cerca.
— Oi! Você é a nova vizinha?
— Sou. Me chamo Pietra.
— Eu sou a Isabela. Tenho sete anos e sei fazer castelo de areia que não desmorona.
Pietra riu.
— Duvido.
Isabela franziu a testa com desafio.
— Vem aqui amanhã depois do almoço. Eu provo.
Foi assim, simples e rápido, como nascem as amizades que duram uma vida inteira.
Na manhã seguinte, Pietra apareceu com um baldinho velho que encontrou na garagem, e as duas passaram horas se sujando na terra, rindo e inventando histórias sobre fadas, rainhas e cavernas secretas.
A partir daquele dia, elas não se desgrudaram mais.
Dividiram tardes de chuva debaixo de cobertores, brincaram de cabana até tarde e juraram segredos que só elas sabiam. As mães se tornaram amigas também, rindo do jeito como uma parecia completar a outra.
— Elas são inseparáveis — dizia a mãe de Isabela.
— É como se sempre tivessem se conhecido — respondia a mãe de Pietra.
E talvez tivessem. De algum jeito que só o coração entende.
Naquela tarde, o sol batia de leve no quintal, e as duas meninas estavam sentadas lado a lado na sombra de uma amoreira. Isabela bebia suco de melancia num copo com canudinho amarelo, enquanto Pietra dividia com ela um pacote de biscoitos amanteigados que havia trazido de casa.
— Você sabia que os gatos podem ver fantasmas? — perguntou Isabela, como se dissesse a coisa mais normal do mundo.
Pietra arregalou os olhos.
— Sério?
Isabela assentiu com a cabeça cheia de convicção.
— Eu li num livro da minha mãe. Se o gato ficar olhando fixo pra um canto, é porque tem um fantasma ali.
As duas olharam para o quintal. O gato da Isabela, um siamês preguiçoso chamado Mingau, estava esparramado dormindo perto da varanda.
— Então não tem nenhum fantasma hoje — disse Pietra, aliviada.
Isabela riu, mostrando a janelinha que faltava no dente da frente.
— Ainda bem. Porque você dorme aqui hoje.
Pietra piscou.
— Sério?
— Minha mãe deixou. Ela disse que a gente merece comemorar a nova vizinhança.
E assim foi. As duas dormiram no colchão na sala, entre almofadas e lanternas, contando histórias inventadas, tentando não cochilar antes da meia-noite. Pietra nunca tinha rido tanto em uma noite. E, antes de dormir, Isabela sussurrou:
— Posso te contar um segredo?
Pietra virou de lado, interessada.
— Pode.
— Quando eu crescer… quero morar numa casa igual a essa. E quero que você more do lado, pra gente nunca se separar.
O coração de Pietra bateu um pouco mais forte, mas ela não soube por quê. Só assentiu com um sorrisinho.
— Combinado.
Capítulo 2 – Promessa de Coragem
Era sexta-feira e, como toda sexta do mês, teria apresentação na escola. As turmas pequenas encenavam pequenas peças, cantavam músicas e os pais vinham assistir. Pietra estava animada — ela adorava palco. Isabella, nem tanto. Tinha pavor de se apresentar, mas naquele mês as duas haviam sido escolhidas para cantar uma música juntas.
— E se eu errar a letra? — sussurrou Isabella, segurando a mão de Pietra com força, já nos bastidores.
— Eu te dou um apertãozinho com o dedo. Igual ensaiamos. Aí você lembra. Vai dar tudo certo.
Isabella confiava nela. Sempre confiava. Então respirou fundo e assentiu.
A professora fez sinal, e elas subiram ao palco. A música era simples, falava de amizade e de coragem. E, mesmo com a plateia cheia de pais e celulares gravando, Isabella cantou direitinho. No fim, Pietra puxou sua mão para o alto, como se dissessem juntas: “A gente venceu.”
Aplausos. Fotos. Risadas.
Mais tarde, no pátio, enquanto comiam bolo com as outras crianças, uma colega da turma se aproximou.
— Você e a Pietra cantaram bem. Mas ela canta melhor — disse, apontando para Isabella com um certo desdém.
Isabella ficou sem graça. Mas Pietra, sem pensar duas vezes, respondeu:
— A gente canta melhor juntas. Sozinha eu nem queria.
A menina deu de ombros e foi embora. Isabella mordeu o lábio, tímida.
— Você só falou isso pra me defender?
Pietra pensou por um segundo.
— Não. Falei porque é verdade.
Isabella ficou em silêncio. Depois olhou para a amiga com um brilho novo nos olhos.
— Se um dia eu ficar com medo de novo, você canta comigo?
— Sempre.
Isabella então estendeu o mindinho.
— Promete?
— Prometo.
Algumas semanas depois
A primavera chegou com cheiro de flor e terra molhada. E junto com ela, uma ideia maluca da mãe de Pietra: construir uma casa na árvore no quintal. Não era enorme, mas tinha um charme especial — uma escada de corda, um tapetinho colorido e uma janelinha por onde o vento entrava sem pedir licença. Era, acima de tudo, só delas.
— Aqui vai ser o nosso clube secreto — anunciou Pietra, puxando Isabella pela mão para dentro da casinha. — Só entra quem prometer nunca contar nossos segredos.
— E se a gente brigar?
Pietra fez uma careta.
— A gente não vai brigar. Mas… se brigar, a gente jura que vem aqui e faz as pazes.
Isabella sorriu, convencida. Estavam sentadas lado a lado, olhando pelas ripas da janelinha, quando Pietra perguntou, do nada:
— Você acha que vai se mudar um dia?
— Mudar de quê?
— De cidade. De casa. De mim.
Isabella franziu o cenho, sem entender direito. Depois respondeu, com a certeza simples que só as crianças têm:
— Não. Você é minha melhor amiga. Por que eu mudaria de você?
O silêncio caiu por alguns segundos. Um silêncio quente, confortável. Pietra sentiu um negócio estranho no peito — uma coisa boa, apertadinha.
Elas foram dar um beijo na bochecha uma da outra e erraram. Deram um selinho sem querer, rindo. As duas riram, e Isabella encostou o ombro no de Pietra, e ficaram ali por muito tempo, sem falar nada, apenas ouvindo os passarinhos e o mundo girando devagar.
Na escola, a amizade das duas já era conhecida. Sentavam juntas, jogavam amarelinha juntas, desenhavam corações e gatinhos no caderno uma da outra. Mas quanto mais cresciam, mais Pietra notava o olhar curioso das outras crianças.
— Você e a Isabella são namoradinhas?
Ela ouviu isso no recreio e não soube o que responder. Sentiu o rosto quente, não de raiva, mas de alguma coisa que ela não conseguia explicar. À noite, no banho, ficou pensando naquilo. Não gostava quando os meninos falavam com Isabella. E sentia falta dela até nos finais de semana. Será que era isso que chamavam de “gostar”?
No sábado seguinte, estavam deitadas dentro da casa da árvore, ouvindo música no celular antigo da mãe de Isabella.
— Você acredita em alma gêmea? — perguntou Pietra de repente.
Isabella rolou os olhos, rindo.
— Minha mãe fala isso quando assiste novela. Diz que é coisa de adulto bobo.
— E se for verdade?
— Você acha que a gente tem uma?
— Eu acho que... talvez seja você — disse Pietra, baixinho, olhando para o teto de madeira.
Isabella ficou quieta. Não respondeu. Apenas entrelaçou seus dedos nos de Pietra e ficou assim até o sol baixar.
Naquela noite, Pietra sonhou com Isabella. Estavam grandes, com vestidos longos, dançando em um lugar que ela não conhecia. Quando acordou, ficou olhando pro teto, sem entender direito o que aquele sonho queria dizer.
Mas uma certeza nascia, lenta e firme, dentro dela: se existia um lugar no mundo onde ela se sentia inteira, era ao lado de Isabella.
Capítulo 3 – Coisas que não se explicam
Pietra completou 10 anos com uma festa simples no quintal. Balões roxos, brigadeiro enrolado pela avó, bolo com cobertura de chocolate. Mas pra ela, o mais importante era que Isabela estivesse lá.
E ela estava. Com um presente embrulhado em papel azul claro e uma fita torta, feita pela mãe. Quando Pietra abriu, viu um caderninho com capa de glitter e uma caneta roxa com tinta que brilhava.
— Pra você escrever seus segredos — disse Isabela, sorrindo tímida. — Só seus. Ou… nossos.
Pietra abraçou forte. E foi ali, naquele abraço apertado, que a mãe de Pietra olhou de longe, emocionada, sussurrando pra si mesma: “Essas duas vão crescer juntas. Eu sei.”
O tempo passou mais um pouco, e aos 11 anos, Pietra começou a notar algumas mudanças. Não no corpo — isso vinha devagar. Mas no mundo à sua volta.
Algumas meninas começaram a falar de crushes, de “ficar”, de beijos roubados atrás do parquinho. Pietra ouvia e ria junto, mas sentia que tinha algo nela que ainda não encaixava ali. Quando perguntaram se ela gostava de algum menino, ela deu de ombros.
— Ah, sei lá. Ninguém em especial.
Mas era mentira. Tinha alguém. E esse alguém tinha o nome mas ela fingia.
Não que ela entendesse isso ainda. Só sabia que se Isabela falava demais com o Gustavo da turma de ciências, ela se irritava. Se Isabela ficava doente e não ia pra aula, Pietra sentia o dia mais vazio.
— Você sente ciúmes de mim? — perguntou Isabela um dia, sem aviso, enquanto brincavam com esmaltes coloridos na varanda.
— Não. Claro que não — respondeu Pietra rápido demais.
Isabela a encarou por um segundo, depois voltou a pintar suas unhas com cuidado.
— Porque às vezes parece.
Silêncio.
— Talvez um pouco — confessou Pietra, num fio de voz.
Isabela sorriu de canto. E disse algo que ficou ecoando por dias na cabeça da amiga:
— Que bom. Porque eu também sinto amiga.
Na semana seguinte, as mães decidiram fazer um “dia das meninas” só entre elas e as filhas. Foram ao cinema, comeram pipoca demais, tiraram fotos bobas e terminaram a noite com sorvete e risadas.
Na volta, no banco de trás do carro, Pietra e Isabela estavam cansadas, mas abraçadas. Deitadas uma na outra. E quando a mãe de Isabela olhou pelo retrovisor, viu as duas cochilando juntas, como se fossem parte da mesma alma.
— Elas ainda vão dar muito trabalho — murmurou.
— Ou muito orgulho — respondeu a mãe de Pietra, sorrindo.
E naquela noite, quando se despediram com um “até amanhã”, o beijo na bochecha demorou um segundinho a mais. Pequeno. Inocente. Mas cheio de um sentimento que nenhuma das duas ainda ousava nomear.
Porque havia coisas que não se explicavam.
Mas que, mesmo assim, faziam o coração bater diferente.
alguns mesas depois
A Primeira Fresta
O sexto ano chegou com carteiras maiores, matérias mais difíceis e professores que não sabiam os nomes de todo mundo. Pietra e Isabela continuavam inseparáveis, mas agora havia novos grupos, novas amizades, e com elas… uma nova distância. Pequena. Quase imperceptível. Mas ali.
Isabela começou a andar com Júlia e Carol nos intervalos. Riam alto, faziam vídeos bobos no celular, usavam pulseirinhas coloridas combinando. Pietra não se incomodava — ou pelo menos fingia que não. Mas era como se, de repente, estivesse de fora de uma brincadeira que antes era só delas.
Na aula de artes, quando a professora pediu um trabalho em dupla, Pietra se virou para chamar Isabela… mas ela já estava com Carol.
— Desculpa — disse Isabela, hesitando. — A gente combinou ontem…
Pietra forçou um sorriso.
— Tudo bem. Eu faço com a Bia.
Mas não estava tudo bem.
Pela primeira vez, ela sentiu uma coisa dura no peito. Não era raiva, nem tristeza. Era uma espécie de vazio — como se uma parte do dia tivesse apagado. Como se a casa da árvore estivesse trancada, e ela tivesse esquecido a senha.
No fim de semana, Isabela foi dormir na casa de Pietra. Fazia tempo que não faziam isso. Levaram travesseiros pro chão do quarto, pipoca pra dentro do edredom e riram de um filme antigo até o sono chegar.
— Você tá estranha — disse Isabela, deitada de lado, encarando a amiga na penumbra.
— Não tô, não.
— Tá sim. Tá quieta.
Pietra respirou fundo.
— Você mudou. Anda com outras pessoas. Nem me conta mais as coisas.
Isabela ficou em silêncio por um tempo. Depois, se aproximou devagar, encostando a testa na de Pietra.
— Você ainda é minha pessoa favorita. Só… às vezes fico com medo que você canse de mim.
— Como assim?
— Sei lá. Você é boa em tudo. E eu fico tentando ser legal com todo mundo pra não parecer… sei lá, pequena.
Pietra segurou sua mão, firme.
— Eu gosto de você exatamente do jeito que você é. Você não precisa ser mais nada.
Elas ficaram assim, de mãos dadas, com os corações se acalmando juntos. E, naquela noite, dormiram de novo como parte da mesma alma, mesmo com a fresta do mundo começando a se abrir.
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