A cidade respirava cansaço sob a chuva fina de outono. As luzes dos postes se refletiam em poças turvas, e os rostos que passavam apressados eram borrões silenciosos — todos com pressa, todos com medo de olhar para os lados. Quase ninguém percebia a mulher parada diante da vitrine de uma floricultura fechada, com o guarda-chuva virado pelo vento e um sorriso educado no rosto.
O nome dela era Isadora.
Ela era o tipo de pessoa que todos conheciam superficialmente: a moça simpática da cafeteria da esquina, sempre com uma piada gentil, sempre com uma flor no cabelo. Ninguém notava que os olhos dela, por trás do rímel e dos sorrisos, guardavam uma solidão fria como o mármore de um túmulo.
Isadora havia perdido os pais cedo. Muito cedo. Um incêndio levou tudo — casa, família, infância. Aos nove anos, aprendeu que o mundo não se importa com a dor de uma criança. Que chorar é um luxo que poucos podem se dar. Desde então, sorria. Não por estar feliz, mas para manter os outros afastados da tristeza que morava em seus ossos.
Naquela noite, porém, alguém a observava.
Kael, nascido das entranhas do Inferno, moldado para colher almas marcadas pelo sofrimento, espreitava entre as sombras. Diferente dos outros demônios, ele não era feito só de ódio. Algo dentro dele — uma fagulha esquecida de humanidade — o fazia curioso. Sentia a dor humana como ecos longínquos. E a dor de Isadora... era um canto doce e trágico, como uma melodia tocada por mãos trêmulas.
Ela não era como os outros. A maioria gritava, suplicava, amaldiçoava os céus. Mas Isadora sorria. Mesmo quando a alma dela chorava em silêncio. E isso o fascinava. Ele a observou por semanas. Na cafeteria. No mercado. No cemitério onde deixava flores sem nome. E, cada vez mais, sentia um incômodo que não compreendia — um desejo de vê-la não sofrer.
Era insano. Um demônio sentir empatia. Mas a insanidade tinha nome. E Kael a repetia mentalmente, noite após noite.
Isadora.
—
Naquela noite, ela chegou ao pequeno apartamento alugado, como sempre. Acendeu a luz, tirou os sapatos, ligou a chaleira. Cada gesto meticuloso, como uma dança repetida milhares de vezes. Ela colocou uma segunda caneca sobre a mesa — um hábito herdado da infância. Ainda esperava, inconscientemente, que alguém a acompanhasse.
Quando se sentou no sofá, abraçada a uma almofada, algo mudou. O ar ficou mais denso, como se as paredes segurassem a respiração. A luz oscilou levemente. E ele apareceu.
Kael não fez alarde. Não veio envolto em chamas ou fumaça. Surgiu do canto mais escuro da sala, como se sempre estivesse ali, invisível. Seus olhos eram abismos em brasa, e sua presença era o oposto de tudo que Isadora conhecia: perigosa, intensa, impossível de ignorar.
Ela não gritou. Não correu. Apenas o encarou, surpresa — e curiosamente calma.
“Você é real?”, perguntou, a voz baixa.
Kael inclinou a cabeça. “Mais do que gostaria.”
Isadora sorriu. “Então é assim que termina? Um demônio no meu sofá?”
Ele a observou com intensidade. “Você não parece surpresa.”
“Não estou. Às vezes, a solidão parece tão grande que qualquer coisa diferente é bem-vinda. Mesmo um demônio.”
Kael se aproximou. Os passos não tinham som. A sombra dele se estendia como um manto pela sala. Mas havia algo em seus olhos — uma hesitação incomum. Como se estivesse... nervoso?
“Você não me chamou”, ele disse. “Não fez pacto. Nem rezou. Por que eu vim até você?”
“Não sei”, respondeu Isadora. “Mas você está aqui. E isso já diz alguma coisa.”
Kael sentou-se à sua frente, os olhos ainda fixos nos dela. “Você sofre. Mas não grita. Isso é... incomum.”
Ela abaixou os olhos. “Gritar não muda nada. Nem chorar. As pessoas se afastam quando você mostra que está quebrado. Então eu finjo. E todo mundo prefere assim.”
“Mas eu vejo.”
“Eu sei.”
Um silêncio estranho se instalou. Kael se inclinou um pouco. “Você tem cheiro de flor que murcha por dentro, mas continua perfumada. Por que ainda tenta viver?”
Ela respirou fundo. “Porque morrer dói mais do que fingir.”
Kael sentiu aquilo como uma lâmina em seu próprio peito. Um demônio não deveria sentir empatia. Mas ali estava ele — com os olhos ardendo não de poder, mas de algo mais antigo e mais puro.
“Eu não vim buscar sua alma, Isadora.”
“Então por que veio?”
Ele hesitou. “Porque eu... sinto algo que não deveria.”
Ela ergueu uma sobrancelha. “Você está dizendo que... se apaixonou por mim?”
Kael ficou em silêncio. Mas não negou.
Isadora riu, e havia dor naquela risada. “Um demônio apaixonado por uma mulher solitária. Parece uma piada ruim.”
“Talvez seja. Mas é a única coisa verdadeira que já senti.”
Ela o encarou, séria. “E o que acontece agora?”
Kael olhou para suas mãos. “Se eu ficar... outras coisas virão. Meus irmãos. Criaturas piores. O Inferno não aceita deserções. E amar um humano é a pior traição.”
“Você pode ir embora.”
“Posso. Mas não quero.”
Ela engoliu em seco. Pela primeira vez em muito tempo, sentiu medo de perder algo que nunca teve. E, ainda assim, ela sorriu. Um sorriso novo — sem disfarce. Frágil. Humano.
“Então fique. Mas me prometa uma coisa.”
“O quê?”
“Quando a escuridão vier... lute por mim.”
Kael se aproximou mais. E, pela primeira vez, tocou a mão dela. Seu toque era quente, real. E pela primeira vez em sua existência infernal, ele sussurrou algo que jamais pensou pronunciar:
“Por você... eu enfrentaria o próprio Inferno.”
—
No plano inferior, algo desperto sussurrava o nome de Kael com ódio.
E marcava Isadora como o próximo erro que deveria ser apagado.
Isadora não conseguia dormir naquela noite.
Ela ficou horas deitada, encarando o teto manchado, ouvindo o som do mundo lá fora — a chuva batendo suave na janela, o latido de um cachorro ao longe, o motor de um carro solitário passando na rua molhada. Tudo tão normal… exceto pela presença sentada à sua janela.
Kael.
O demônio não se mexia. Parecia esculpido em sombra. Os olhos dele brilhavam suavemente no escuro, como brasas famintas que se recusavam a apagar. Mas mesmo ali, envolto em escuridão, ele não era ameaçador. Pelo contrário — havia algo reconfortante na forma como ele simplesmente… existia. Como se estivesse guardando-a.
“Você não dorme?”, ela sussurrou, ainda deitada, com os olhos semicerrados.
Kael respondeu depois de um longo silêncio. “Não como vocês. O sono é humano. Sonhar… é um luxo que perdi há milênios.”
Ela se virou na cama para encará-lo. “E o que fazia antes de mim? Ficava vagando? Causando dor?”
“Sim. Era o que fui criado para fazer. Mas era vazio. Mecânico. A dor alheia me alimentava, mas não me preenchia. Eu era só um reflexo do sofrimento humano.” Ele a observou por alguns segundos. “Você foi… diferente.”
Ela não disse nada. Apenas encarou aquele ser de olhos incandescentes e alma quebrada, e por um momento, viu nele o mesmo tipo de dor que carregava. Mas ao contrário da dela, ele nunca aprendeu a esconder.
“Por que agora?”, ela perguntou, baixinho. “Por que você sentiu algo por mim, e não por todos os outros que você já viu sofrer?”
Kael hesitou. Quando respondeu, sua voz era quase um sussurro. “Porque você não gritava. Sua dor... não era revolta. Era resistência. Silenciosa, paciente. Como um rio que continua correndo mesmo que todas as margens tenham desabado. Eu nunca vi isso.”
“Isso é força?”
“É algo além.”
—
Na manhã seguinte, Isadora tentou voltar à rotina. Tomou banho. Preparou café. Vestiu seu uniforme da cafeteria. E Kael — Kael a observava em silêncio, como uma sombra fiel que não ousava tocá-la sem permissão.
“Você vai me seguir até lá?”, ela perguntou, servindo duas xícaras como sempre. Uma agora para ele.
Kael aceitou a bebida, embora não precisasse. “Se quiser, eu fico.”
Ela deu de ombros. “Pode vir. Mas me promete uma coisa.”
“Qualquer coisa.”
“Não faça ninguém sofrer.”
Kael a observou longamente. “Nem se for por você?”
Ela parou por um segundo, surpresa. Depois, desviou o olhar. “Principalmente se for por mim.”
—
A cafeteria era pequena, mas charmosa. Paredes forradas com quadros antigos, cheiro constante de canela e café, e uma playlist suave que preenchia o ambiente sem incomodar. Os clientes habituais sorriram para Isadora como sempre. E ela, como sempre, sorriu de volta. A diferença é que, desta vez, ela sabia que estava sendo observada por olhos do outro mundo.
Kael sentou-se em um canto, onde a luz do sol não tocava diretamente. A maioria das pessoas parecia ignorá-lo. Alguns o olhavam brevemente e depois desviavam o olhar, como se algo os fizesse esquecer que ele estava ali. Um instinto antigo, talvez — de que o que se esconde na sombra, deve permanecer ignorado.
Isadora o observava entre uma mesa e outra, com uma curiosidade crescente. Ele não falava com ninguém. Não tocava em nada. Apenas a observava. Como se estar perto dela fosse suficiente.
Naquele dia, algo estranho aconteceu.
Uma mulher entrou na cafeteria — alta, elegante, vestida de preto como um luto eterno. Os olhos dela eram escuros demais para serem naturais. Assim que ela cruzou a porta, Kael se enrijeceu.
Isadora notou a tensão dele imediatamente. A mulher se aproximou do balcão, sorrindo.
“Bom dia, querida”, disse com voz sedosa. “Um chá de hibisco, por favor.”
Isadora serviu com gentileza, mas algo nela se arrepiou. A mulher tinha um olhar... invasivo. Como se estivesse vendo além da pele. Além da alma.
Quando ela saiu, Kael estava em pé.
“Ela não é humana”, disse.
“Quem era ela?”
Kael olhou para a porta, como se esperasse que ela voltasse a qualquer instante. “Uma mensageira. Do outro lado. Eles já sabem que estou aqui.”
“Ela vai voltar?”
“Provavelmente com reforços.”
Isadora sentiu o chão se mover sob seus pés. Pela primeira vez, sentiu medo real. Não por ela, mas por Kael. Ele a havia salvado da solidão, mesmo sem perceber. E agora, por causa disso, estava sendo caçado.
“Se você for embora, eles param de vir?”
Kael a olhou. “Sim.”
Ela o encarou por longos segundos. Então, disse: “Então você fica.”
Ele se aproximou dela, devagar, como se temesse quebrá-la. “Você não entende o que isso significa.”
“Entendo o suficiente.”
A marca apareceu como uma chama fria na pele de Isadora, entre as clavículas. Um traço vermelho-escuro, em forma de espiral entrelaçada com linhas finas como raízes — viva, pulsante. Assim que Kael terminou o gesto, ela sentiu como se algo antigo e invisível tivesse se entrelaçado à sua essência.
“Está feito”, ele disse com a voz baixa, ofegante. “Agora eles não podem tocá-la sem se queimarem.”
Ela tocou a própria pele com cuidado. Não havia dor. Apenas a sensação de algo sagrado e profano, coexistindo em silêncio.
“O que é isso exatamente?”
“Uma antiga runa de proteção. Proibida, mesmo entre os meus. Para colocá-la, eu precisei ceder parte do meu próprio poder. Ela te protege, mas também... nos liga.”
“Nos liga?”
“Se você morrer… eu também morro.”
O silêncio que se seguiu foi mais intenso que qualquer palavra.
“Por quê?”, ela sussurrou.
Kael desviou o olhar, mas não mentiu. “Porque eu não conseguiria continuar existindo num mundo sem você.”
Isadora não sabia o que responder. Um demônio, uma criatura feita de tormento e sombra, acabara de entregar a própria imortalidade por ela. E, mesmo que quisesse, ela não podia fingir que aquilo não a tocava.
—
Naquela noite, ela sonhou.
Mas não era um sonho comum.
Estava em um corredor longo e escuro, com paredes cobertas por espelhos rachados. Cada espelho refletia versões distorcidas dela mesma — algumas choravam, outras sangravam, outras sorriam com olhos vazios. No fim do corredor, uma porta vermelha pulsava como um coração doente.
Ao tentar se aproximar, ouviu uma voz.
“Você não devia tê-lo deixado entrar.”
Era a mulher da cafeteria — a mensageira. Ela surgia atrás dos espelhos, multiplicando-se em cada superfície como um pesadelo repetido.
“Ele vai te destruir. Como destruiu todos os outros.”
Isadora correu. Tentou ignorar. Mas a voz ecoava como se estivesse dentro de sua cabeça.
“Demônios não amam. Eles apenas tomam.”
Quando abriu a porta vermelha, o mundo caiu.
E ela acordou.
—
Kael estava ajoelhado ao lado da cama. Ele parecia tenso, os olhos brilhando mais do que nunca.
“Você gritou.”
Ela tocou o próprio rosto. Estava molhado de suor e lágrimas.
“Foi ela, não foi?”, ele perguntou.
“Sim. Ela falou comigo. No sonho. Disse que você... destruiu outros antes de mim.”
Kael não negou. Mas seu silêncio era diferente de culpa.
“É verdade?”, Isadora perguntou.
Ele se levantou devagar. “Sim. Mas não como você pensa.”
“Então me diga.”
Kael caminhou até a janela, encarando o céu nublado que ainda ameaçava tempestade. “Muitos antes de você cruzaram meu caminho. Alguns me chamaram. Outros eu apenas observei. Havia desejo, curiosidade... mas nunca amor. Nunca essa ligação. Eles queriam poder, vingança, salvação. E eu... dava a eles o que pediam. Mas toda troca tem um preço. E eles não suportavam o peso.”
“Você os matou?”
“Não com minhas mãos. Mas sim, eu os destruí. Com promessas, com verdades que não suportaram. O amor… nunca foi parte disso. Até agora.”
Isadora se aproximou. Tocou o braço dele, e ele tremeu sob o toque.
“Você tem medo?”
Kael virou-se para ela. “Do que eu posso me tornar… sim.”
Ela sorriu, triste. “Então somos dois.”
—
Naquela manhã, a cidade estava mais cinzenta do que nunca. Isadora decidiu não ir trabalhar. Ficaram em casa, ela e Kael, em um silêncio confortável.
Ela cozinhou. Ele observou, curioso, como se os pequenos rituais humanos fossem um espetáculo ancestral. A forma como ela cortava os legumes, soprava o chá antes de beber, cantarolava sem perceber.
“Você é mais mágica do que qualquer demônio que conheci”, ele murmurou.
Ela riu, com a colher de pau na mão. “E você é mais trágico do que qualquer poeta que já li.”
—
Mas a trégua não duraria.
Naquela tarde, as luzes da casa piscaram.
O ar ficou denso. A marca no peito de Isadora ardeu, como se algo tentasse forçá-la a se apagar.
Kael arregalou os olhos. “Eles chegaram.”
Um espelho no corredor trincou de repente. Da rachadura, uma sombra começou a escorrer como sangue negro.
Isadora recuou. “O que é isso?”
Kael se posicionou diante dela. “Caçadores de almas. Meus irmãos. Aqueles que recusam a luz.”
A sombra se moldou em uma figura de braços longos e olhos brancos. Ela sibilou algo em uma língua que Isadora não compreendia, mas sentia na pele: raiva, traição, fome.
“Kael, por favor…”
Ele avançou.
O impacto entre Kael e a criatura fez as paredes tremerem. Garras rasgaram o ar. Chamas escuras colidiram com relâmpagos vermelhos. Era como ver a própria guerra dos infernos materializada na sala de estar.
Isadora caiu de joelhos, a marca em seu peito pulsando de dor. Mas não se importava. Tudo o que via era Kael lutando por ela.
Por ela.
Ele gritou um comando. A sombra explodiu em fumaça escura e desapareceu.
A casa ficou em silêncio. Apenas os dois ali. Ofegantes. Quebrados.
Isadora correu até ele. Kael estava de joelhos, ferido, o ombro aberto em uma ferida que fumegava trevas.
Ela o abraçou.
“Eu não vou deixar que levem você”, ela sussurrou.
E ele, com a voz fraca, respondeu: “Já levaram quase tudo, Isadora. Só me resta você".
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