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Instinto Brutal

O Encanto Podre de Seul

Ah, Seul.

A joia reluzente da Coreia do Sul. A terra das promessas modernas. Dos arranha-céus que tocam os céus como se quisessem cuspir na cara dos deuses. Do K-pop plastificado exportado como símbolo de pureza e juventude. Da pele perfeita, da moda minimalista, das cafeterias que vendem sonhos em copos com glitter. Seul, a cidade onde até a sujeira parece planejada para combinar com o feed do Instagram.

Curioso, não?

Você, leitorzinho esperançoso, talvez tenha imaginado essa história embalada por luzes neon, por romances proibidos e por ídolos torturados por sentimentos profundos, mas ainda assim bonitos. Talvez estivesse esperando por uma Coreia encantada, com amor adolescente sob a chuva artificial de Gangnam.

Pois se prepare, porque essa Coreia não existe aqui.

Não neste livro. Não nesta vida.

A realidade?

Seul fede.

Não o fedor das ruas movimentadas e dos fritos ao óleo requentado — falo do fedor da desigualdade que apodrece em silêncio. O cheiro azedo dos becos onde a beleza morre antes mesmo de nascer. Abaixo dos brilhos e das vitrines está o que nunca aparece nas propagandas de turismo: o ventre escuro da cidade, onde a esperança é um delírio perigoso.

Lá embaixo, nos bairros esquecidos, onde a arquitetura parece chorar mofo e o concreto sangra rachaduras, a cidade revela seu verdadeiro rosto.

Yeongdeungpo, Guryong, partes de Sillim... Lugares onde nem os ratos têm coragem de correr à noite. Onde as casas são feitas de papelão coberto por promessas rasgadas. Onde as crianças aprendem a evitar olhares antes mesmo de aprender a escrever o próprio nome.

E é aqui que ele vive.

Ou melhor: sobrevive.

Kang Ryu.

Um nome que ninguém se atreve a chamar em voz alta nesses becos, a menos que esteja disposto a ver sangue. Um alfa de 19 anos com mais cicatrizes que aniversários. Ele não tem documentos, não tem pais, não tem porra nenhuma. Só tem punhos. E uma raiva velha, úmida, grudada na pele como o cheiro de ferrugem e suor.

Ele sai do galpão abandonado onde dormiu com a cabeça apoiada em uma sacola de roupas sujas. A respiração ainda pesada da última luta. O gosto metálico de sangue seco na boca. O ombro enfaixado de forma porca. Mais um dia. Mais um round contra a vida. Ele pisa nas ruas rachadas com o mesmo tédio de quem já perdeu qualquer ilusão.

Em volta dele, a cidade respira como uma besta gigante e doente. Os postes piscam como se zombassem da falta de energia nas casas. Os anúncios ainda brilham, oferecendo plásticas e felicidade parcelada em 36 vezes — para aqueles que vivem longe o bastante para acreditar nisso.

Mas ali, onde Kang Ryu vive...

Não há glitter.

Só asfalto quente, a fumaça de cigarros ruins, o som de socos abafados em porões sujos e o constante, insuportável, apelo do instinto.

O instinto de vencer.

De machucar.

De continuar vivo, custe o que custar.

E é exatamente aí que essa história começa.

Com a cidade de Seul sorrindo — não para você, leitor, mas de você.

Como uma bela vadia maquiada demais, que te seduz com promessas falsas, só para te enfiar uma faca entre as costelas e roubar seu último centavo enquanto você sangra no chão, perguntando onde foi que se perdeu.

Bem-vindo à Coreia real.

Onde até a sobrevivência tem gosto de derrota.

E Kang Ryu está prestes a te mostrar o quanto dói mastigar o próprio destino.

Sangue, Metal e Sobrevivência

O chão do porão era feito de concreto rachado, sujo de óleo, suor e histórias que ninguém ousava contar em voz alta. As lâmpadas fluorescentes piscavam no teto baixo, zumbindo como insetos irritados, lançando luz pálida demais para esconder o horror, mas forte o bastante para escancarar cada gota de sangue. O ar era denso. Quente. Umidade misturada com fumaça barata e a tensão de dezenas de corpos apertados ao redor de uma jaula improvisada.

A multidão em volta urrava como uma matilha de cães famintos. Camisas rasgadas, dentes amarelados, olhos injetados de adrenalina e apostas ilegais. Eles não estavam ali por esporte — estavam ali por violência. Queriam ver carne rasgada, ossos quebrando como galhos secos. Queriam a queda. A humilhação. O grito final. Mas havia algo que queriam mais ainda: ver Kang Ryu sangrar.

E ele sabia disso.

Ryu estava no centro da jaula. Nu da cintura para cima, com o tronco esculpido em dor. Cada músculo seu parecia estar ali não por genética, mas por necessidade. Veias saltadas. Pele molhada de suor. Marcas e cortes se cruzavam como mapas de uma guerra contínua, como se cada parte do corpo dele já tivesse perdido e vencido ao mesmo tempo. Seus ombros largos sustentavam o peso de um mundo que ele nunca pediu. E seus olhos… ah, os olhos.

Olhos frios.

Opacos.

Sem vida.

Não havia ódio neles. Só vazio.

Como o de uma arma descarregada, que ainda assim assusta pelo que já fez.

A boca de Ryu estava entreaberta, respiração controlada, lenta. Ele girava os punhos enfaixados com faixas manchadas, os dedos feridos, os nós dos dedos rachados como vidro trincado. E ainda assim... firme. Letal. Um deus caído. Um monstro domesticado só o bastante para entreter.

Do outro lado da jaula, o oponente rugia. Um brutamontes chamado Jun-Ho, conhecido por esmagar maxilares como se fossem frutas. Careca, com uma tatuagem de dragão desbotada no pescoço, os olhos brilhando com a ilusão de vitória. Idiota.

O treinador de Ryu, um velho chamado Seo-Gwan, observava com um cigarro apagado entre os lábios, sempre mastigando o filtro com os dentes como se quisesse matar o gosto da decepção. Ele não falava muito — sabia que Ryu não ouvia ninguém. Era um cão que só respondia à própria dor.

— Sem misericórdia, moleque — murmurou Gwan, mais por hábito do que por instrução.

Ao redor, os companheiros de treino, todos menores, mais jovens, mais humanos, batiam os pés no chão. Eles torciam por Ryu, mas sabiam que ele não era como eles. Ryu era diferente. Um animal ferido que nunca voltou ao estado selvagem porque nunca saiu dele. Dormia com os olhos abertos, comia como se alguém fosse roubar, treinava até sangrar os dedos dos pés. Eles o respeitavam. Temiam. Admiravam. E mantinham distância.

O gongo bateu.

Jun-Ho partiu como um touro. Ryu não se mexeu. Esperou. Calculou. O primeiro soco passou raspando. O segundo, ele absorveu com o ombro. Sentiu o impacto vibrar nos ossos, mas não cedeu. Não piscou. Não gemeu.

Fraco, pensou.

Todos são. Quando têm algo a perder.

Ryu revidou. Um direto seco, sem aviso. O som foi algo entre carne esmagada e osso cedendo. Jun-Ho cambaleou, surpreso. Um corte abriu-se no supercílio. Sangue escorreu. A plateia vibrou.

Ryu avançou. Silencioso. Metódico.

Dois chutes baixos, um gancho na costela.

Jun-Ho recuava, mas Ryu não era uma tempestade. Era um veneno. Lento. Preciso. Fatal.

Não penso, só destruo, disse a si mesmo, desviando de outro soco com um giro sutil.

Penso demais fora da jaula. Aqui, sou o que sou.

A parede da jaula parecia assistir com olhos invisíveis. As correntes rangiam como se sofressem com cada pancada. Uma garrafa de soju caída no canto refletia a luz como se também estivesse bêbada do ambiente. O sangue de Jun-Ho respingava no chão e se misturava com o suor de lutas antigas, como se os fantasmas anteriores dançassem em círculos invisíveis, aplaudindo Ryu em silêncio.

Por fim, ele terminou.

Um cotovelo seco no maxilar.

Um estalo. Um grito. Um silêncio breve.

Jun-Ho caiu como um saco de carne.

A plateia explodiu.

Gritos. Apostas pagas. Cigarros sendo acesos. Mãos batendo em barras de ferro.

Ryu permaneceu de pé.

Respiração regular. Os olhos ainda vazios.

Seu corpo tremia, não de esforço, mas de adrenalina contida. Ele se abaixou, passou a mão no sangue fresco e limpou na própria calça. Nem olhou para o treinador. Nem para o derrotado. Nem para o dinheiro.

Ele saiu da jaula sozinho.

Frio como o aço.

A multidão o seguia com os olhos, mas nenhum deles se aproximava. Porque mesmo entre monstros, havia lendas. E Kang Ryu era uma.

Uma lenda suja, cansada e prestes a explodir.

Amargor na Garganta

O som da luta ainda ecoava nas paredes de concreto quando Kang Ryu subiu os degraus do porão. As luzes da cidade não chegavam ali. Era um corredor apertado, com encanamentos expostos e cheiro de mofo misturado com cigarro. As paredes tinham marcas de punhos, assinaturas silenciosas de brigas antigas. Sangue seco. Rachaduras. História demais para um espaço tão pequeno.

— Caralho, Ryu! — uma voz jovem, rouca de emoção, chamou atrás dele. Era Minjae, magro, cabelos descoloridos malfeitos e um sorriso que sempre parecia pedir desculpas por existir. — Aquilo foi surreal, mano. O cotovelo final... Puta que pariu.

Logo atrás, vieram Taesung e Doohyun, ambos vestidos como se estivessem indo para uma rave dos anos 90. Um deles já acendia um cigarro, rindo alto, ainda com os olhos arregalados pela adrenalina alheia.

— Parecia um animal solto, hyung. Tu viu o cara caindo com a boca aberta? Quase vomitei, mas foi foda demais — disse Taesung, gesticulando exageradamente.

Ryu não respondeu. Nem olhou.

Só puxou a toalha velha jogada em cima de uma cadeira de ferro, secou o rosto suado e se sentou em um caixote.

Pegou a pequena caixa de primeiros socorros jogada embaixo de uma escada e começou o ritual que já conhecia de olhos fechados: limpar os cortes, pressionar as faixas, selar as rachaduras dos próprios punhos. Seus dedos tremiam, mas o rosto continuava uma máscara de gelo. A dor? Presente. Sempre. Mas ele já tinha aprendido a respeitá-la como se fosse parte da família.

— Ei, vamos sair, porra — disse Doohyun. — Hoje é por minha conta. Peguei o salário. Finalmente.

Minjae deu um soco leve no braço do amigo e gritou com empolgação.

— Barzinho da tia Soo! Churrasco de gato, cerveja quente e farofa de pacote. Clássico.

Taesung riu e apontou pro celular.

— Já chamei as minas. A Juri, a Haeun, e a minha... aquela vadia linda de sempre. Ryu, tu vai chamar a tua também?

Ryu olhou por um segundo, depois voltou a cuidar do ferimento no ombro.

— Ela vai aparecer. Sempre aparece. — disse seco.

A tal “namorada” de Ryu — se é que aquela palavra ainda servia pra definir o que tinham — era Jiwoo. Bonita de um jeito perigoso, daquelas que sabiam da própria aparência e sabiam como usá-la. Ciumenta. Escandalosa. Grudenta. O tipo de garota que gritava com você no meio da rua e depois te beijava com ódio na boca. Eles transavam como se brigassem e brigavam como se fossem morrer no dia seguinte. Era tóxico. Era doente. Era real o suficiente para Ryu se importar... o mínimo possível.

Ela servia pra ocupar o tempo.

E Ryu tinha tempo demais pra desperdiçar com alguém que implorava por atenção.

---

Mais tarde, o grupo se encontrava em um canto qualquer de Seul, em um beco com cadeiras plásticas tortas, uma churrasqueira improvisada e latas de cerveja empilhadas como torres medievais. A rua era viva. Gente demais. Risos falsos. Músicas ruins em alto volume. E aquele cheiro inconfundível: carne queimada, gordura estalando, e o amargor de sonhos frustrados evaporando no ar.

Ryu se sentou na ponta da mesa, uma garrafa de cerveja suada entre os dedos, o olhar perdido entre as faíscas da churrasqueira e o nada absoluto. Minjae e Doohyun dançavam entre as cadeiras, animados demais. As garotas chegavam, maquiadas, bêbadas e cheias de vontade de mostrar quem era de quem.

Jiwoo chegou por último. Calça colada, batom borrado e um olhar que desafiava tudo e todos. Se atirou no colo de Ryu como se fosse dona do mundo — e dele. Ele não reagiu. Só bebeu mais um gole.

Ela sussurrou algo no ouvido dele.

Riu sozinha.

Depois apertou o rosto dele com ciúmes ao ver uma garçonete jovem demais sorrir de canto.

Ryu não disse nada.

Porque no fim... nada daquilo importava.

Ele estava ali por inércia. Pelo costume. Pela cerveja barata e o sal da farofa falsa grudando nos dentes.

Ali, naquela esquina esquecida por Deus, Ryu não era um lutador.

Era só mais um fantasma vivo bebendo com outros zumbis, à espera da próxima briga.

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