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Sangue da Meia-Noite

Capítulo 1 — A Chegada a Valebris

A estrada era uma cicatriz na pele da floresta. Estreita, sinuosa, mal asfaltada. O vento assobiava entre as árvores, fazendo com que os galhos se curvassem em reverência ao carro solitário que avançava por entre a névoa. Helena apertava o volante com força, os dedos pálidos e tensos, como se a qualquer momento pudesse cair no abismo que parecia espreitar dos dois lados da estrada. A chuva batia no para-brisa em um ritmo quase ritualístico, como se a própria natureza sussurrasse que ela não era bem-vinda ali.

Valebris. A cidade esquecida no interior das montanhas, onde os invernos eram longos demais e o silêncio, profundo demais. Um lugar que há muito havia deixado de constar em mapas ou roteiros turísticos. O tipo de cidade que só aparece nas últimas páginas dos jornais, quando algo ruim acontece.

Foi exatamente por isso que Helena voltou.

A carta havia chegado três semanas após o desaparecimento de sua irmã, Isadora. Escrita à mão, em papel amarelado, as palavras pareciam ter sido grafadas com urgência — e medo.

"Helena, se você está lendo isto, é porque algo aconteceu comigo. Preciso que vá até Valebris. Encontre a Casa Vellmont. Lá você entenderá tudo. Mas cuidado: não confie em ninguém. Nem mesmo em mim."

Desde o momento em que leu aquelas palavras, Helena soube que a vida que conhecia havia terminado.

A entrada da cidade era marcada por um velho portão de ferro, parcialmente encoberto por trepadeiras e ferrugem. Um letreiro com letras góticas quase ilegíveis ainda sustentava o nome "Valebris", como um epitáfio. Ao cruzá-lo, a sensação foi imediata: algo a observava. Não alguém — algo. Algo antigo, enterrado sob camadas de história, terra e sangue.

As casas de pedra alinhadas nas ruas estreitas pareciam sussurrar segredos uns aos outros. As luzes, quando acesas, eram fracas. Os poucos rostos que Helena vislumbrou pelas janelas desviaram o olhar rapidamente, como se reconhecessem algo nela — ou temessem o que ela traria.

O carro subiu a colina lentamente, até que a Casa Vellmont surgiu, imponente, como um castelo assombrado. Era uma construção alta, de pedra negra, com torres pontiagudas, janelas estreitas e vitrais manchados pelo tempo. O portão rangeu ao ser empurrado. As plantas do jardim haviam crescido de forma selvagem, engolindo caminhos e bancos. A natureza reclamava seu domínio, mas a casa resistia, como se tivesse consciência própria.

Helena subiu os degraus da varanda e, com o coração martelando no peito, girou a maçaneta da porta.

Estava destrancada.

O interior da casa era silencioso, exceto pelo som do vento sussurrando através das frestas das janelas. Tudo estava coberto por poeira e lençóis. Móveis antigos, tapeçarias desbotadas, lustres opulentos. Um lugar suspenso no tempo. Mas havia algo mais... Um cheiro metálico no ar. Quase imperceptível, mas presente. Sangue?

Ela ligou a lanterna do celular e seguiu pelo corredor, os passos afundando no carpete empoeirado. Cada retrato nas paredes parecia observar seus movimentos. Um arrepio percorreu sua espinha.

— Tem alguém aí? — sua voz ecoou pelo casarão como um sussurro perdido. Nada respondeu.

Subiu a escada central com cautela, sentindo o peso da casa se intensificar a cada degrau. Ao alcançar o segundo andar, uma porta estava entreaberta, deixando escapar uma fresta de luz bruxuleante.

Ao empurrá-la, deparou-se com um quarto grande, iluminado por velas espalhadas por toda parte. E ali, diante da janela, estava ele.

Um homem alto, de costas, com cabelos escuros presos em um rabo de cavalo baixo. Vestia um casaco antigo, de corte nobre, e não se moveu ao notar sua presença. Helena sentiu o coração acelerar — e não por medo. Havia algo naquele homem que exalava uma aura magnética, perigosa e bela ao mesmo tempo.

— Você não devia estar aqui — disse ele, sem virar-se.

— E você? Quem é?

Ele virou-se lentamente, revelando um rosto pálido e perfeito. Olhos rubros e intensos a encararam com curiosidade — ou fome. Sua expressão era serena, quase triste.

— Adrian. Adrian Vellmont.

— Você... é um vampiro?

Ele esboçou um sorriso.

— E você, Helena, é uma irmã em busca de respostas.

Ela estremeceu. Não havia mencionado seu nome.

— Como sabe quem eu sou?

— Isadora me falou sobre você. Antes... antes de cruzar o limiar.

Helena engoliu em seco.

— Ela está viva?

— Não como antes. Está presa entre os mundos. Um feitiço antigo a impede de partir — e de voltar. Um castigo por desafiar os que caminham à noite.

— Quem a puniu?

Adrian hesitou.

— Os antigos. Um culto escondido nas entranhas de Valebris. Eles estão despertando algo que devia permanecer adormecido. E Isadora tentou impedi-los.

Helena sentiu o chão escapar sob seus pés. Sua irmã sempre fora impulsiva, mas corajosa. Enfrentar um culto de criaturas sobrenaturais parecia suicídio — e agora ela pagava o preço.

— Eu vim trazê-la de volta. Não importa o que custe.

Adrian a olhou por longos segundos. Seus olhos pareciam queimar com uma chama silenciosa.

— Cuidado com o que deseja. Alguns caminhos exigem sangue.

Antes que ela pudesse responder, um rugido rasgou a noite. Um som gutural, animalesco, vindo da floresta. Adrian se moveu como uma sombra.

— Eles nos encontraram — ele disse, sacando uma estaca de prata de dentro de um compartimento oculto na parede.

— Quem?

— Os convertidos. Servos dos antigos. Humanos que beberam do sangue errado e se tornaram bestas sem mente.

Helena foi até a janela. Na estrada que levava à casa, viu algo se movendo. Quatro patas. Olhos dourados. Garras negras. Um ser entre o homem e o monstro. Avançava com velocidade, rosnando.

Adrian desceu as escadas em silêncio absoluto. Helena o seguiu, ignorando o medo. A porta da frente se escancarou com a força do vento. A criatura saltou do mato, rugindo, e caiu diante deles.

Helena gritou. Mas Adrian foi mais rápido.

Movendo-se com a graça de um predador experiente, ele esquivou-se da investida da besta e cravou a estaca no peito dela. O monstro gritou, contorceu-se, e explodiu em cinzas.

— Isso foi... impossível — ela sussurrou.

— Para os fracos, talvez. — Ele virou-se para ela. — Mas você não é fraca, Helena. Eu posso sentir isso. Você carrega algo... antigo.

Ela franziu o cenho.

— O que quer dizer?

— Você tem sangue Vellmont. Uma linhagem antiga, esquecida. Mas seu corpo ainda lembra. Seu destino está entrelaçado ao nosso. Foi por isso que sua irmã veio até mim. Ela sabia que precisaria de você.

Helena recuou um passo.

— Isso é loucura.

— É o que chamamos de verdade. — Ele se aproximou. — E você não pode mais fugir dela.

Os olhos dele prenderam os dela por um momento. E então, o mundo pareceu sumir ao redor. Ela viu imagens... memórias? Uma igreja em chamas. Uma mulher de cabelos dourados gritando. Uma câmara subterrânea cheia de túmulos abertos. E uma voz sussurrando: "O sangue é a chave."

Helena cambaleou para trás, ofegante.

— O que foi isso?

— Fragmentos. Sua mente está despertando. Quando o sangue antigo começa a correr, ele quer ser lembrado.

Ela pressionou as têmporas, tentando organizar os pensamentos.

— Isso não pode ser real. Vampiros, monstros, linhagens esquecidas... Eu sou só uma mulher comum tentando salvar a irmã.

Adrian sorriu de lado.

— Não existe “comum” em Valebris.

A lua apareceu entre as nuvens, iluminando a mansão com uma luz fria e prateada. Helena sentia o peso do mundo nos ombros, mas também uma centelha dentro do peito — algo que não sentia havia muito tempo. Um propósito. Uma raiva antiga. Um chamado.

— Se minha irmã está presa entre os mundos, como eu a trago de volta?

Adrian hesitou.

— Há uma maneira. Mas é proibida. Um ritual antigo. Exige um pacto. E um sacrifício.

— Meu sacrifício?

— Talvez o seu. Talvez o meu.

Ela olhou para ele por longos segundos. Apesar de tudo, havia algo naquele vampiro que a fazia sentir... viva. E estranhamente segura.

— Por que está me ajudando?

Ele desviou o olhar.

— Porque há muito tempo, perdi alguém. E não tive coragem de lutar por ela. Com você, talvez eu possa corrigir esse erro.

O silêncio se instalou entre eles, pesado, cheio de significados não ditos. Lá fora, a floresta sussurrava segredos e perigos. Mas Helena não recuaria.

— Mostre-me o caminho, Adrian. Estou pronta.

Ele a encarou uma última vez, como se procurasse algo nos olhos dela — coragem, loucura, ou amor. Então assentiu.

— Então venha. A noite está apenas começando.

E assim, juntos, desapareceram na escuridão da Casa Vellmont.

Capítulo 2 — Ecos do Subsolo

As escadas desciam fundo, cada degrau um passo em direção ao desconhecido. Helena seguia Adrian com a respiração contida, os sentidos aguçados. A casa Vellmont era maior do que parecia por fora — e muito mais antiga. As paredes de pedra úmida revelavam inscrições em línguas esquecidas, algumas brilhando fracamente à luz das velas presas em suportes de ferro. Um cheiro de mofo, sangue seco e história impregnava o ar.

— Onde estamos indo? — ela perguntou, a voz ecoando nas paredes estreitas.

— Aos arquivos do clã. Tudo o que foi escondido dos olhos humanos... tudo o que foi esquecido... está aqui.

Helena engoliu em seco. Havia algo no tom de Adrian que soava como reverência — ou medo.

O corredor terminou numa porta circular de ferro, coberta por símbolos gravados com precisão obsessiva. Adrian passou os dedos sobre um deles e sussurrou algo em um idioma que arrepiou a nuca de Helena. A porta gemeu e, com um estalo, girou para dentro, revelando uma vasta câmara subterrânea.

Era uma biblioteca. Mas não como nenhuma que ela já tivesse visto. Prateleiras circulares se estendiam até o teto de pedra, repletas de livros encadernados em couro, pergaminhos selados e frascos contendo... líquidos estranhos. No centro, um altar de mármore negro com marcas de sangue seco.

— Bem-vinda à Cripta do Conhecimento — disse Adrian, com um toque de ironia amarga. — Aqui estão os registros do clã Vellmont. Nossas vitórias, nossos erros... e nossos monstros.

Helena caminhou lentamente entre as prateleiras, tocando os livros com dedos hesitantes.

— Por que tudo isso está escondido?

— Porque o mundo teme o que não entende. E os Vellmont fizeram muita coisa que nem mesmo os monstros ousariam.

Ela se virou para ele.

— Inclusive esse pacto que pode trazer minha irmã de volta?

Adrian assentiu lentamente.

— Está aqui, sim. Mas não é um ritual comum. É o “Vínculo Carmesim”. Um laço de sangue entre dois mundos. Um vivente e um morto. Uma troca de almas.

Helena arregalou os olhos.

— Você disse que exigiria um sacrifício...

— Sim. O ritual exige que o executante se conecte à alma perdida. E para isso, precisa cruzar o Umbral.

— O que é o Umbral?

Adrian hesitou antes de responder:

— Um lugar entre a vida e a morte. Um véu onde os mortos sussurram e os vivos se perdem. Uma vez lá, você terá pouco tempo. Se falhar, ficará presa... como Isadora.

Helena se sentou num banco de pedra, sentindo o peso da escolha prestes a fazer.

— E o que acontece se eu conseguir?

— Ela voltará. Mas marcada. Nem todas as partes de lá retornam com a alma. Às vezes, algo mais vem junto.

Um silêncio pesado pairou entre eles. A luz das velas tremulava como se sentisse o que se aproximava. Helena ergueu os olhos para Adrian, buscando mais do que respostas — buscando a verdade nos olhos do vampiro.

— Por que está me ajudando? De verdade.

Ele desviou o olhar, os traços do rosto endurecendo.

— Porque vi o que acontece quando se foge do passado. Eu já amei uma humana, há séculos. Prometi protegê-la. Mas no fim... ela foi levada. Não por monstros, mas por mim. Pela minha sede. Minha fraqueza. E nunca mais consegui salvá-la.

Helena se aproximou.

— E agora você acha que pode se redimir?

Adrian a encarou. Seus olhos vermelhos não tinham ódio. Tinham dor.

— Não. Mas talvez eu possa impedir que você cometa os mesmos erros.

O toque das mãos de Helena no braço dele foi sutil, mas cheio de significado.

— Não vou recuar. Me mostre o ritual.

Adrian se moveu até uma estante baixa, puxou um tomo antigo encadernado em pele escurecida. Abriu-o na página marcada com uma tira de tecido preto. As palavras estavam em latim arcaico, acompanhadas de diagramas e símbolos ritualísticos. No centro da página, um círculo com dois triângulos invertidos e uma serpente devorando a própria cauda.

— Precisamos de sangue, terra da cripta, uma vela negra... e um catalisador — ele disse.

— Que tipo de catalisador?

— Algo que pertença a Isadora. Algo carregado com a essência dela.

Helena pensou por um momento e tirou do pescoço um medalhão antigo — uma peça de prata que a irmã lhe dera no aniversário de 15 anos. Tinha uma foto das duas juntas, ainda adolescentes.

— Isso serve?

Adrian assentiu.

— Perfeitamente.

Eles passaram a próxima hora preparando o círculo ritual no centro da cripta. Adrian desenhou os símbolos com precisão enquanto Helena observava, tentando memorizar cada passo. Quando tudo estava pronto, ele estendeu a mão.

— O sangue. Para abrir o caminho, precisa vir de você.

Helena mordeu o lábio e puxou um punhal cerimonial de uma prateleira. Sem hesitar, cortou a palma da mão e deixou o sangue escorrer sobre o altar. O metal frio arrepiou sua pele, mas ela não recuou.

Adrian colocou o medalhão no centro do círculo e começou a entoar as palavras do ritual. A câmara escureceu. As velas tremularam como se sufocadas. O ar tornou-se denso, opressor. Sons distantes começaram a ecoar: sussurros, gritos abafados, choros.

Helena sentiu o chão tremer sob seus pés.

— Está começando — Adrian avisou. — Quando a névoa surgir, entre. Estarei aqui, vigiando. Mas o que acontece lá dentro... dependerá de você.

A névoa ergueu-se do círculo como um líquido prateado. Ela parecia viva, dançando no ar, envolvendo Helena. Seus olhos escureceram, o mundo à sua volta girou — e então, tudo se apagou.

O Umbral era um deserto de sombras.

Helena abriu os olhos e se viu em uma paisagem cinza, sem horizonte. Um céu escuro e estático pairava sobre ela, e o chão parecia feito de cinzas compactas. Vozes sussurravam em todas as direções, mas nenhuma clara. Ao longe, havia uma figura — ajoelhada, coberta por correntes de luz negra.

— Isadora! — Helena correu.

A figura ergueu a cabeça. Era ela. Pálida, os olhos apagados, os lábios rachados.

— Lena...? Você não devia estar aqui...

— Vim te buscar. Estou aqui por você.

Isadora balançou a cabeça.

— Não... você não entende. Ele está aqui. Ele me mantém presa...

— Quem?

O chão tremeu. Do nevoeiro, surgiu uma silhueta alta, encapuzada. Seus olhos brilhavam em vermelho profundo, mais intensos que os de Adrian. A criatura usava um manto feito de sombras em movimento.

— O vínculo foi quebrado — sussurrou a criatura. — A alma dela me pertence.

Helena se colocou entre a irmã e a entidade.

— Ela pertence a si mesma! Eu a chamei de volta. E vou levá-la!

— Então você tomará o lugar dela — respondeu a figura, estendendo uma mão feita de trevas.

Helena sentiu seu corpo sendo puxado, como se gravidade alguma além da física tentasse arrastá-la para um abismo sem fim. Mas então, lembrou-se do medalhão.

— Isadora! — ela gritou, jogando o objeto para a irmã. — Pegue isso! É seu!

A alma da irmã agarrou o medalhão e, num clarão, as correntes se partiram.

A criatura rugiu, dissolvendo-se em fumaça escura. As sombras se ergueram, rodopiaram — e o Umbral começou a ruir.

— Segure minha mão! — Helena estendeu o braço.

Isadora hesitou um instante, depois segurou. A luz tomou conta de tudo, e o Umbral desapareceu num estalo de silêncio.

Helena abriu os olhos com um suspiro.

Estava deitada na cripta, com Adrian ajoelhado ao lado. A irmã jazia a poucos metros, desacordada, mas viva.

— Conseguiu... — ele murmurou.

Lágrimas escorriam dos olhos de Helena. Ela se arrastou até Isadora e a abraçou com força.

— Ela está viva... ela está aqui...

— Sim. Mas algo veio junto.

Adrian olhava ao redor. As chamas tremulavam inquietas. O ar parecia... diferente.

— O quê?

— O Umbral foi aberto. E algo escapou. Um fragmento... ou uma consciência.

Helena franziu a testa.

— Está dizendo que libertamos mais do que a Isadora?

— Estou dizendo que a noite em Valebris está apenas começando.

A irmã começou a se mexer. Olhos se abriram, revelando íris... douradas?

Helena recuou. Isadora parecia confusa — e faminta.

— Lena...? Por que estou com tanta sede?

Adrian se colocou entre as duas.

— Precisamos sair daqui. Agora.

— Mas ela...

— Ainda é sua irmã. Mas agora... ela carrega uma marca do Umbral. E isso pode mudar tudo.

Helena ajudou a irmã a se levantar. O peso da realidade ainda caía sobre seus ombros, mas ela sentia algo novo: determinação. Nada mais seria como antes. Nem a casa. Nem a cidade. Nem ela mesma.

Ao saírem da cripta, Helena se virou para Adrian.

— Vamos lutar juntos contra isso?

O vampiro a observou. Por um instante, seus olhos brilharam de um jeito diferente. Não apenas desejo. Esperança.

— Até o fim.

E, assim, o trio subiu as escadas, deixando a cripta para trás — mas não os segredos que haviam sido despertados.

Porque, em Valebris, todo ritual tem um preço.

E o sangue ainda não havia sido totalmente cobrado.

Capítulo 3 — A Marca do Umbral

O sol jamais tocava a mansão Vellmont da maneira que tocava o restante da cidade. Mesmo em plena manhã, sombras densas se acumulavam nos vitrais, como se recusassem a ceder à luz. Do lado de fora, os moradores de Valebris continuavam suas rotinas, ignorando — ou fingindo ignorar — o que se escondia por trás dos muros de pedra antiga.

Dentro da mansão, Helena observava a irmã dormir. Isadora estava pálida, os traços antes suaves agora levemente mais afiados, como se o tempo tivesse sido cruel em sua breve ausência do mundo dos vivos.

— Ela ainda não acordou? — perguntou Adrian, surgindo à porta com um cálice de líquido escuro.

— Não desde ontem à noite — respondeu Helena, sem tirar os olhos de Isadora. — Mas a pulseira dela...

Adrian seguiu o olhar de Helena até o pulso da irmã. Havia uma marca nova ali: um símbolo em espiral, envolto em runas. Era como uma tatuagem feita de luz dourada, mas pulsava como carne viva.

— Isso é do Umbral. Um selo de passagem.

— Ela está amaldiçoada?

Adrian balançou a cabeça lentamente.

— Não exatamente. Ela está marcada. Um elo entre este mundo e o outro. Talvez esteja sendo observada. Ou pior... guiada.

Helena se afastou da cama e olhou para Adrian com os olhos cheios de determinação.

— Então vamos descobrir o que é essa marca. Vamos entender e destruir se for necessário.

— Isso pode atrair atenção indesejada. A marca pode reagir.

— Você acha que já não fomos notados? — Ela ergueu o tom. — Um ritual antigo, uma alma arrancada do Umbral... Você mesmo disse: algo escapou junto.

Adrian se calou por um instante, depois assentiu.

— Há alguém que pode nos ajudar. Mas ele não é confiável. Nem um pouco.

— Quem?

— Um exilado. Alguém que já foi parte da Ordem das Veias Ocultas. Um leitor de marcas.

— Onde ele está?

— Nas catacumbas sob a cidade. Onde as igrejas antigas guardavam seus pecados.

Helena pegou seu casaco, prendendo os cabelos em um coque rápido.

— Então vamos. Quanto mais esperarmos, mais risco corremos.

As ruas de Valebris estavam úmidas e silenciosas. O inverno anunciava sua chegada com ventos cortantes e céu de chumbo. A catedral da cidade, uma construção gótica esquecida pelo tempo, ainda mantinha seus vitrais intactos — mas ninguém entrava ali há décadas.

Adrian e Helena desceram pelos fundos do antigo cemitério, passando por mausoléus de mármore e túmulos desfeitos pelo tempo. Um alçapão de ferro os levou a uma escada espiral que descia fundo, o ar se tornando mais pesado a cada degrau.

— Ele mora aqui embaixo? — Helena perguntou, sentindo o cheiro de pedra molhada e ossos antigos.

— Mora não. Sobrevive.

No fim da escada, havia uma sala iluminada por lamparinas a óleo. Livros empilhados, frascos com líquidos vibrantes, e no centro, um homem de cabelos brancos como neve, usando um sobretudo manchado de tinta, sangue e fuligem. Seus olhos, porém, eram vivos — e completamente pretos.

— Adrian Vellmont... — disse o homem, sem se virar. — Pensei que estivesse morto.

— Estou. Mas ainda mais útil do que você.

O homem riu, com um som seco como folhas mortas.

— E quem é a flor ao seu lado?

— Helena.

— Hm. Nome de rainha. E por que está aqui?

Helena mostrou o medalhão e depois a marca no pulso de Isadora, que agora caminhava devagar atrás deles, envolta em um manto escuro. O velho deu um passo à frente, olhos arregalados ao ver a marca.

— O Umbral tocou essa criança. E ela voltou viva. Admirável. Mas perigoso.

— O que significa essa marca? — Helena perguntou.

— Significa que ela é um farol.

— Farol?

— Para o que vive lá. Ela acendeu uma chama. E agora as criaturas do véu virão em busca da luz.

Isadora falou pela primeira vez desde que acordara:

— Eles sussurram quando durmo. Me chamam pelo nome. Prometem liberdade.

O velho a encarou.

— É porque você agora é um entre dois mundos.

Ele foi até uma prateleira e tirou um livro coberto de runas. Abriu em uma página com um símbolo idêntico ao da marca de Isadora.

— Isso é o Olho do Véu. Um selo colocado por uma entidade que não deseja perder sua presa. Você a arrancou dele, e ele... não gostou.

— E como tiramos isso dela? — Helena exigiu.

— Só há uma maneira: completando o ciclo.

— Que ciclo?

O homem fechou o livro com força.

— A criatura virá. E tomará algo em troca. Ou vocês irão até ela... e enfrentarão o que deixaram escapar.

Adrian cruzou os braços.

— Acha que pode nos guiar até o coração do Umbral?

O velho riu.

— Posso abrir a porta. Mas não sei se vocês voltarão.

Helena se aproximou da irmã.

— Vamos fazer isso juntas. Eu prometo que vou te proteger.

Isadora a olhou com os olhos dourados — um brilho estranho reluzia ali, entre gratidão e... algo mais.

— Não posso mais ficar aqui, Lena. As vozes estão ficando mais altas.

O velho tirou um pingente em forma de espelho de um cofre de pedra.

— Isso é um fragmento do Véu. Um reflexo da porta. Se ela meditar diante dele, talvez consiga enxergar o caminho. Mas cuidado: espelhos do Umbral nunca mostram só o que se quer ver.

Helena pegou o espelho, sentindo um frio intenso ao tocá-lo.

— Obrigada.

O velho sorriu, mas havia pena em seus olhos.

— Preparem-se. O Umbral sempre cobra com juros.

Naquela noite, de volta à mansão, Isadora se sentou diante do espelho em um círculo de sal e velas negras. Adrian e Helena observavam em silêncio enquanto a jovem respirava fundo, os olhos fixos no reflexo enevoado.

Por longos minutos, nada aconteceu. Então o espelho brilhou.

— Estão vindo... — Isadora murmurou.

O vidro rachou, liberando uma névoa espessa e escura que preencheu o quarto. Vozes começaram a sussurrar pelos cantos, chamando nomes em línguas perdidas.

De repente, o espelho explodiu, e da névoa surgiu uma criatura. Alta, encapuzada, os olhos como buracos em brasa. A mesma do Umbral.

Adrian se colocou entre elas num movimento rápido, as presas à mostra.

— Ele nos seguiu — disse ele. — Ele deixou parte de si com ela.

A criatura estendeu a mão e apontou para Isadora.

— Devolva.

Helena agarrou a irmã.

— Nunca!

O ser moveu os dedos, e os vidros estilhaçados do espelho começaram a levitar, girando no ar como lâminas.

Adrian avançou. Com um movimento de mãos, invocou um selo de sangue que queimou no ar. As lâminas caíram.

— Volte para o Umbral, demônio. Aqui, você não é soberano.

Mas a criatura apenas sorriu. E então sumiu na névoa, deixando para trás um símbolo queimado no chão: o mesmo da marca de Isadora.

— Ele agora sabe onde estamos — disse Adrian.

— E o que fazemos? — Helena perguntou, o coração disparado.

— Vamos até ele. Selamos esse elo. Destruímos a porta que deixamos entreaberta.

Isadora se levantou.

— Eu vou com vocês.

Helena hesitou.

— Não.

— Eu preciso, Lena. Isso começou comigo. E terminará comigo.

Adrian olhou para as duas. Havia orgulho e preocupação em seu rosto.

— Então vamos reunir o que é necessário. E atravessar a noite.

Enquanto o trio descia novamente à cripta para preparar o próximo ritual, as ruas de Valebris começaram a sentir os primeiros efeitos da abertura do Véu. Morcegos surgiam em bando em pleno dia, animais se escondiam e crianças tinham pesadelos com olhos brilhantes na escuridão.

O mal não esperaria.

E a guerra estava apenas começando.

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