Era uma noite silenciosa. Daquelas em que tudo ao redor parece estar dormindo, menos a minha cabeça. As luzes suaves do abajur derramavam um tom dourado pelas paredes claras do meu quarto. As cortinas de linho balançavam levemente por causa da brisa que entrava pela janela entreaberta. Eu estava ali, sentada na poltrona ao lado da cama, com um exemplar gasto da trilogia Acotar entre as mãos. A mesma edição que li pela primeira vez com ele. Ainda lembro o cheiro das páginas quando Lorenzo me emprestou o primeiro volume.
Minha vida mudou tanto durante esses quinze anos. Tanto.
Fechei o livro por um momento, pressionando os olhos com os dedos. Quando a saudade batia, ela não pedia licença.
Me lembrei exatamente do dia em que tudo começou a mudar. Eu estava andando com a minha mãe pela rua, voltando da feira. A sacola dela estava rasgando, e eu reclamava do calor, da fome, do mundo. Quando um homem me parou. Um olheiro da Vista Models. Ele ficou parado por um tempo, encarando meu rosto. E então disse:
— Seus olhos… São como laços. Você já pensou em modelar?
Na hora, achei que fosse uma piada. Ou algum tipo de golpe. Mas o cartão dele era verdadeiro. Ele representava uma das maiores agências de Nova York. A Vista Models, famosa por descobrir beleza onde o mundo via "estranho". Eles não buscavam perfeição. Eles apostavam no autêntico. E, por algum motivo, viram isso em mim.
Depois daquele dia, tudo mudou.
Eu comecei a fazer testes. Aprendi a desfilar, a posar, a manter o olhar firme diante das câmeras. Dei entrevistas, fui chamada para campanhas. De repente, meu rosto estava estampado em revistas que minha mãe só folheava nas bancas. A gente ria juntas no começo. Mas quando o dinheiro começou a entrar, quando a casa mudou, quando o aluguel deixou de ser uma preocupação… Ela chorou.
Minha mãe. A mulher mais forte que conheço. Não é mais costureira. Não precisa mais passar noites costurando roupas alheias para pagar contas atrasadas. Hoje ela tem uma casa linda, vive em paz, cuida do jardim e assiste às novelas antigas que ama. E tudo isso, eu consegui dar pra ela. Graças aos meus olhos — os mesmos que Lorenzo viu primeiro.
Mas não. Eu não quero pensar nele.
Sacudi a cabeça, tentando afastar o pensamento. Só que era inevitável.
— A primeira pessoa que reparou nos meus olhos foi ele. — murmurei para mim mesma, com a voz falha.
Foi naquela biblioteca. Lorenzo tirou meus óculos de um jeito irritante, como ele sempre fazia, só pra me provocar. E então ele parou. Ficou olhando. Seus olhos encontraram os meus como se tivesse visto algo raro.
Mas tudo aquilo foi uma farsa, não foi? Eu repeti isso pra mim por anos. Que ele só se aproximou por causa daquela aposta idiota. Que tudo não passou de um plano para me humilhar. E mesmo que uma parte de mim tivesse visto verdade no olhar dele, no toque dele… Não importava. O dano já tinha sido feito.
Fechei os olhos por um segundo.
Quinze anos. Quinze anos desde que ele quebrou meu coração. E mesmo assim, foi o único homem que beijei. Que me tocou. Que me fez sentir algo.
Fui cortejada por atores, diretores, empresários. Eu sorri, fui educada, tirei fotos, fiz o jogo da mídia. Mas nunca deixei ninguém se aproximar de verdade. Nunca mais.
Eu foquei na carreira. E isso me trouxe ao topo.
Hoje eu sou conhecida mundialmente. Faço parte das maiores campanhas. Já desfilei em Paris, Milão, Tóquio. E mais do que isso… Eu construí meu próprio império. A Lilás Models. Nome escolhido por mim, claro. Em homenagem à cor dos meus olhos. Aqueles que abriram portas, que me trouxeram até aqui.
A Lilás Models é mais do que uma agência. É um estúdio de fotografia, é uma casa para novos talentos. Modelos que, assim como eu, não se encaixavam nos padrões. E hoje brilham. Eu criei algo meu. Algo que ninguém pode tirar de mim.
Meu celular vibrou em cima da mesinha. Ignorei.
Voltei o olhar para o livro no colo. A página que eu lia antes ainda falava sobre redenção. Sobre segundas chances. Sorri, amarga.
— Redenção, hein? — sussurrei. — Será que ele teve?
Será que Lorenzo mudou?
Será que ele conseguiu pagar a dívida do pai? Será que ele encontrou alguém? Será que foi feliz?
Respirei fundo. Fechei o livro.
— Eu espero que ele esteja bem… — falei para o silêncio. — Espero que tenha formado uma família. Que a mulher que ele escolheu não tenha feito com ele o que ele fez comigo. Que tenha dado amor. Paz.
E talvez… só talvez… ele ainda pense em mim. Nem que seja uma vez por ano.
Mas isso não importa mais, não é?
Sou feliz assim. Ou pelo menos aprendi a ser. A sorrir para os flashes, a assinar contratos milionários, a dar conforto para quem me deu tudo. Minha mãe.
Mas lá no fundo… ainda existe um espaço vazio. Um espaço com nome e rosto.
Lorenzo.
E por mais que eu tente negar… toda vez que abro esse livro, é dele que eu lembro. E do que poderia ter sido.
O estúdio estava mergulhado no silêncio confortável das noites em Nova York. A luz amarelada da luminária de mesa refletia nas fotos espalhadas pela bancada. O cheiro de café requentado misturado com o leve aroma de produtos químicos usados na revelação de fotos preenchia o ar. Eu estava ali, como sempre, sozinho, revelando alguns arquivos. Sentado na minha cadeira preferida de couro desgastado, o som do clique do mouse e do leve zumbido do computador me faziam companhia.
Foi quando aconteceu. Eu revelei uma por engano. Uma foto dela. Uma foto da nossa adolescência. Provavelmente, quando eu estava revendo aquelas fotos no computador, devo ter baixado essa junto com outras. Não era pra estar ali. Mas ali estava. O sorriso dela. Os olhos lilases — sim, os mesmos olhos que eu sabia que fariam sucesso um dia.
Fiquei parado por longos segundos olhando praquela imagem. Não sabia se queimava, se jogava fora, ou se guardava em uma caixinha, trancada num cofre, pra nunca mais ser tocada, nunca mais ser olhada, mas guardada como um tesouro. Pensei em simplesmente descartá-la, quem sabe pra tentar me esquecer dela. Mas era inútil. Toda vez que vejo alguma foto dela, meus olhos enchem de lágrimas. Por isso evito. Evito saber qualquer coisa dela na mídia. Desde que ela fez sucesso.
Sempre que tem algo sobre ela em algum canal, em alguma entrevista, em algum programa, eu desligo a TV. Me levanto. Saio. Finjo que o mundo parou. Que não existe mais Joyce. Que não existe mais o que eu perdi. Porque lembrar dela... olhar praqueles olhos... me destrói.
Me faz lembrar do idiota que eu fui.
Senti meus olhos se encherem de lágrimas. De novo. Por lembrar da besteira que cometi. Do quanto fui babaca. Do quanto apostei com meu melhor amigo os sentimentos dela. Do quanto parti um coração puro. Do quanto desperdicei o amor da única mulher que eu jamais conseguiria esquecer.
A porta do estúdio se abriu de repente. Eduardo entrou. Sim, Eduardo. Aquele meu amigo idiota. Carregando duas sacolas de supermercado e com cara de quem passou por um furacão.
— Lorenzo... — ele largou as sacolas na bancada — Toda vez que eu entro aqui, me bate aquele déjà vu dos velhos tempos.
— Bons ou ruins?
— Os dois — ele sorriu de canto.
Eu dei um suspiro e voltei meus olhos pra foto. Ele percebeu.
— Você imprimiu essa foto?
— Sem querer. Estava entre as outras.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos. Depois suspirou.
— Você ainda sente, né?
— Claro que sinto, Eduardo. Você me viu quebrado. Com 18 anos, caído nos campos, bêbado. Abandonado por minha mãe. Sozinho com meu pai. Você viu o que me tornei.
— Eu achava que era só uma brincadeira. Que você tinha defendido ela por... sei lá, implicância. Não achei que você tava apaixonado de verdade. Achei que era só mais uma zoeira.
— Pois é. A feia da escola. Aquela que a gente apostou quem conseguiria conquistar primeiro. Que tipo de idiota faz isso?
— Dois idiotas — ele murmurou —. Eu e você.
Ficamos em silêncio. O som distante de buzinas vindo da rua preenchia os espaços entre nós. O estúdio era pequeno, aconchegante. Tinha paredes de tijolos aparentes, uma estante com algumas câmeras antigas, e um cheiro constante de papel fotográfico e café frio. Era o lugar que construímos juntos. Onde montamos nosso pequeno negócio de fotografia. E mesmo pequeno, meu nome começava a ganhar espaço. Fui chamado para esse trabalho nos Estados Unidos, e aqui estou. Três meses.
Eduardo se encostou na parede e cruzou os braços.
— Lembra quando a gente brigou feio? — ele perguntou, mexendo distraidamente em uma lente da prateleira.
Assenti. Como esquecer?
— Claro. Foi quando eu descobri que meu pai tinha perdido tudo. Toda a fortuna. Toda a estrutura. E você ainda não sabia. Achei que você tinha mentido pra mim. Que tinha escondido. Eu tava um caos... e descontei em você.
— E eu também fui um imbecil, não vou negar — ele disse com um suspiro —. Demorei pra entender o tamanho da bomba. Quando meu pai me contou que os dois tinham falido juntos... que o império tinha ido embora... eu fiquei sem chão. E foi naquele momento que percebi que você era a única pessoa que eu ainda tinha. Que me restava.
— Foi o fundo do poço. Mas também foi quando a gente se reencontrou.
— Há 15 anos... — ele disse, como se só agora percebesse a quantidade de tempo que passou.
— Quinze anos desde que perdemos tudo. Quinze anos desde que recomeçamos. Mas algumas perdas, Eduardo... nem o tempo cura.
Ele me olhou com pena, mas sem dizer nada. Já tinha insistido muito pra eu tentar outro relacionamento. Mas não adiantava. Desde que Joyce se foi, ninguém mais preencheu esse espaço. Era como se só existisse ela. Como se meu coração tivesse sido moldado pra caber só ela ali dentro.
Depois de um tempo, Eduardo disse que ia fazer algo pra gente comer. Disse que eu precisava alimentar o corpo pra tentar acalmar o coração. Fiquei ali. Sozinho. Me levantei. Fui até a varanda do apartamento.
A noite estava fresca. O céu estrelado. O cheiro das árvores lá embaixo misturado com o asfalto quente ainda subia até aqui. Sentei na cadeira, respirei fundo.
Pensei nela.
Na forma como ela sorria sem mostrar os dentes. No jeito que ela mexia nos cabelos. No som da risada dela. No abraço. No beijo. Em tudo que eu perdi.
E chorei.
Porque ainda dói. Porque ainda amo. Porque sei que nós dois nunca mais seremos os mesmos. Porque não importa quanto tempo passe, eu nunca a esqueci.
E aquela foto... aquela simples foto impressa sem querer... foi o suficiente pra me desmoronar de novo. Pra fazer tudo voltar. A dor. A saudade. O arrependimento.
Porque mais do que ter sido rejeitado, eu fui um covarde. Um idiota. Um garoto babaca que apostou com um amigo o amor da mulher da vida dele.
E perdeu tudo.
Eu acordei com a coragem que só Deus sabe. O corpo todo moído. Ontem à noite teve um evento da Gucci — e adivinha quem era a estrela da noite? Isso mesmo: eu. A principal modelo do evento. Foram tantas fotos, tantos flashes, tantos famosos querendo me cumprimentar, tantos sorrisos distribuídos… que eu acho que dormi sorrindo. Juro. Minha bochecha ainda tá doendo. Tenho quase certeza de que meu rosto paralisou.
Levantei com o cabelo todo bagunçado, parecendo que um furacão tinha passado só na minha cabeça. Tomei meu banho, vesti minhas roupas — hoje, um look casual-chique, porque eu posso. Não escondo mais minhas curvas. Aliás, algumas dessas curvas foram um presente da ciência e do meu bolso. Lipoled, silicone, aumento no quadril... e o aplique? Vai até a bunda. Eu mesma digo: o dinheiro compra beleza sim. E se bem investido, compra até presença.
Desci as escadas da minha mansão — sim, mansão. Um casarão branco com colunas em mármore italiano, janelas panorâmicas de vidro fumê, jardim de revista, piscina aquecida, spa particular, e um closet que daria inveja na própria Barbie. Uma daquelas casas que, quando eu era pequena, eu via na TV e pensava: “um dia a gente vai morar num lugar assim, mãe.” E agora a gente mora. Há 15 anos.
Na cozinha gourmet, toda planejada, com bancada de mármore preto e eletros dourados da Smeg, lá estava ela: minha mãezinha. Sentada à mesa enorme, com uma cestinha de pães de queijo e o cheirinho de cuscuz no ar.
— Mãe, as empregadas não vieram hoje, não? — perguntei, bocejando enquanto servia café.
— Dispensai, minha filha... hoje é feriado aqui — ela respondeu, no inglês todo tortinho dela, misturado com o português de sotaque do interior.
— E por que a senhora não me chamou pra ajudar?
— Ô minha filha, você tava tão cansada... roncando alto que só vendo. Fiquei com dó de te acordar.
Sentei com ela e começamos a almoçar ali mesmo, numa mistura de café da manhã com almoço. Arroz, ovo frito, salada, cuscuz com carne seca... coisa que nenhuma chef estrelada faz igual.
— A senhora ainda se enrola com o inglês, né?
— Ah, minha filha... você que sempre foi a inteligente da casa. Sempre entendeu tudo rapidinho. Até hoje eu me atrapalho com esse povo falando depressa demais.
— Pois é, QI acima da média. Nunca foi sorte, sempre foi inteligência.
Ela riu, e eu também. Era bom estar ali. Era bom olhar pra ela e saber que eu tinha conseguido. Que eu dei pra minha mãe a vida que ela sempre sonhou, sem nunca precisar pedir nada pra ninguém. Nem pra homem. Nem pra ricaço. Nem pra empresário querendo vantagem.
Terminei de comer, troquei de roupa e fui trabalhar. Porque a vida de uma empresária não para. Adivinha onde? No meu estúdio de moda e fotografia: Lilas & Moda. Um império. Meu império.
Criei ele do zero. Com o meu dinheiro. Com os meus olhos — sim, os mesmos olhos lilases que chamaram a atenção de um olheiro, anos atrás. Mas, claro... nunca esqueço quem foi o primeiro a ver esses olhos. Quem viu antes de todo mundo. Mas quando esse nome tenta aparecer na minha cabeça, eu mesma dou um chute mental e expulso. Não vou cair nessa armadilha de novo.
Minha secretária, Fernanda, me mandou mensagem dizendo que estavam faltando fotógrafos no estúdio. E que uns nomes novos tinham surgido, nomes interessantes. Mas eu tô tão ocupada hoje, que talvez só passe lá rapidinho, dê uma olhadinha, e depois volte pro escritório resolver o resto.
Cheguei no estúdio.
Ah, o estúdio... o meu verdadeiro templo. Piso preto brilhante, paredes em cimento queimado com painéis de LED que mudam de cor conforme o clima do dia. Uma recepção espelhada, com um letreiro em neon dizendo “Be bold, be lilas.” E ali, atrás das cortinas automáticas, estão os três sets de fotografia principais. Cada um com iluminação controlada por inteligência artificial, fundos intercambiáveis, armários de figurino e maquiagem assinada por marcas de luxo. Modelos andando de um lado pro outro, estilistas correndo com tecidos, fotógrafos ajustando lentes.
É um caos organizado. E eu sou o centro dele.
Porque aqui... aqui eu sou a Joyce. Não a garota da escola que ninguém olhava. Não a filha de mãe solteira que vendia trufas na rua. Aqui, eu sou o nome. O rosto. A marca.
E hoje, mais uma vez, vou mostrar pra todo mundo o que significa ser Lilas & Moda.
Assim que eu entrei no estúdio, o burburinho cessou por alguns segundos. Era sempre assim quando eu aparecia. Os funcionários todos deram bom dia quase em coro, alguns com sorriso, outros com aquela reverência de quem sabe quem manda ali. Eu apenas acenei com a cabeça, confiante, segura, e caminhei direto até a sala envidraçada que dava vista pro set principal.
Fernanda, minha secretária, já estava me esperando com uma pasta nas mãos e a típica expressão de quem quer falar tudo ao mesmo tempo.
— Joyce, aqui estão os dois nomes dos fotógrafos que a gente selecionou pra aquele projeto nos Estados Unidos, lembra?
Peguei a pasta da mão dela sem muita cerimônia. Comecei a folhear. Um dos nomes: Enzo Fotografia. E, logo abaixo, Edu - assistente. Sem fotos. Nada além de um currículo resumido e referências. Mas eram boas. Eram ótimas. Uma sequência de trabalhos com elogios absurdos.
Não tinha imagem, não tinha sobrenome. Só tinha competência.
E eu? Eu nem me dei o trabalho de perguntar mais.
— Esse aqui tem a minha cara. Pode contratar — falei, entregando a pasta de volta pra Fernanda.
Mas agora, chega.
Agora eu vou começar meu dia de trabalho, finalmente.
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