O Doce Gosto Do Morango(Short Story)
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O carro balançava leve pelas curvas da estrada de terra, levantando poeira que se grudava no vidro e escondia a paisagem. Lilo apoiava a testa na janela, os olhos perdidos no amarelo seco das folhas e no céu cinza de fim de tarde. Fazia calor, mas o ar parecia parado — abafado, como se o tempo ali também tivesse desacelerado.
A voz da irmã quebrou o silêncio.
Ele assentiu sem tirar os olhos da janela. Luh voltou a se calar. Era sempre assim: falas curtas, silêncios longos. Eles se entendiam naquele espaço meio quebrado entre as palavras não ditas.
A casa apareceu na curva seguinte: velha, pintada de azul claro descascado, com uma varanda onde a mãe deles os esperava. Lilo sentiu um nó no estômago. Não era ódio, nem tristeza. Era medo. Medo de se aproximar de algo que ele nunca teve. Medo de se tornar alguém que ele não conhecia.
Desceram do carro. A mãe os recebeu com um sorriso tenso, um abraço meio desajeitado. Era bonita, jovem demais pra ser mãe de dois adolescentes. Tinha cheiro de terra e morango — provavelmente do jardim. Lilo hesitou, mas retribuiu o abraço, sentindo os braços dela como um campo desconhecido.
mãe de Lilo/luh
O quarto de vocês é no andar de cima. Preparei tudo, mas se quiserem mudar, fiquem à vontade.
Disse ela, tentando soar acolhedora.
Luh subiu primeiro. Lilo ficou parado no hall, os olhos presos nos retratos empoeirados da parede. Nenhum deles o incluía.
Mais tarde, enquanto desfazia as malas, Lilo sentiu o cheiro vindo da cozinha: bolo de morango. A ironia era cruel — ele era alérgico.
“Ela não sabe”, pensou, com os olhos marejando.
No dia seguinte, a escola. Uniforme novo, caderno novo. Pessoas novas. E a sensação de ser invisível não era nova.
Ele andava pelos corredores tentando evitar contato visual. Só queria passar despercebido. Até que chegou na quadra.
Ali, sob o sol de meio-dia, um grupo assistia um jogo de tênis. No centro, um garoto de presença impossível de ignorar. Alto, pele bronzeada, cabelos castanhos bagunçados e olhos escuros como tempestade. Jogava com raiva, como se estivesse punindo a bola a cada saque.
Quando a bola escapou da quadra e rolou até os pés de Lilo, ele a pegou sem jeito.
Disse Bruno, com a voz grossa, firme.
Lilo hesitou. E então, por impulso, lançou a bola de volta com precisão cirúrgica. A bolinha quicou exatamente na frente de Bruno.
Silêncio. Depois, um sorriso debochado.
Bruno
Tem mira, hein? Vai jogar comigo qualquer dia desses.
Lilo gaguejou algo inaudível e saiu rápido, o coração disparado.
Ele não sabia, mas naquele momento, o destino acabava de marcar seu primeiro ponto.
××
Na manhã seguinte, Lilo acordou com o som do vento soprando contra a janela e o canto insistente de um passarinho que parecia rir dele. Colocou o uniforme devagar, como quem vestia uma armadura — não para enfrentar uma guerra, mas para tentar sobreviver a mais um dia invisível.
A mãe já tinha saído. Luh estava na mesa, mexendo no celular, uma torrada quase intocada ao lado da caneca de café preto. Ela nem olhou quando ele se sentou.
Luh
Você sonhou alto essa noite.
comentou, ainda encarando a tela.
Luh
Falou o nome de alguém... “Bruno”, talvez?
Lilo congelou, o rosto pegando fogo.
Lilo
Deve ter ouvido errado.
respondeu rápido, desviando o olhar.
Luh sorriu de canto, e foi só isso.
A escola parecia maior naquele segundo dia. Como se os corredores tivessem se esticado, e as pessoas, se multiplicado. Lilo andava com os fones no ouvido, mesmo sem música. Era só uma desculpa pra evitar conversas.
Bruno
Ei, o garoto da quadra!
uma voz masculina chamou atrás dele.
Lilo travou. Quando se virou, Bruno estava encostado na parede, cercado de dois colegas risonhos. Usava a blusa do uniforme amarrada na cintura e segurava a raquete como se fosse parte do próprio corpo.
Lilo perguntou, inseguro.
Bruno se aproximou devagar, como um gato entediado brincando com a presa.
Bruno
Você mesmo. Aquela devolução ontem... foi sorte ou talento?
Lilo hesitou. Sentia o coração martelar no peito.
Bruno ergueu uma sobrancelha.
Bruno
Tem quadra livre depois da aula. Me encontra lá. Quero ver se você é tão bom quanto parece.
Lilo
Eu não sou bom. Nem gosto tanto de tênis assim.
Bruno sorriu de lado, mas os olhos continuavam sérios.
Bruno
Então vai deixar o medo te engolir antes de tentar?
Aquilo atingiu Lilo com força. Medo. Era uma palavra familiar demais. Uma sombra que o acompanhava desde sempre. Medo das alergias, das mudanças, de se mostrar, de ser... ele mesmo.
Bruno
Ótimo. Te vejo depois da aula.
Bruno virou as costas e foi embora, deixando o perfume leve de suor e desdém no ar.
Durante as aulas, Lilo mal conseguia prestar atenção. Os pensamentos giravam em círculos. “É só um jogo. Você pode perder e seguir em frente. Mas se não jogar, vai ser só mais uma vez se escondendo. Vai ser mais um silêncio engolido.”
Quando o sinal final tocou, ele já estava com o tênis trocado. As mãos tremiam.
Bruno já o esperava na quadra. Sozinho. A luz dourada do fim de tarde deixava o suor em sua pele brilhando como pequenas constelações.
Bruno
Sabia que você viria.
disse, jogando uma bola pro alto com a raquete.
Bruno
Você tem aquele olhar. De quem tenta fugir, mas no fundo quer provar alguma coisa.
Lilo
E você? O que quer provar?
Bruno não respondeu. Apenas jogou a bola pro alto e sacou com força. A partida começou. A cada troca, as raquetes cantavam e os olhares se prendiam. Era agressivo, intenso, como se cada ponto fosse uma guerra. E, estranhamente, Lilo se encontrava ali. Correndo, devolvendo, gritando mentalmente para não cair, não errar, não ceder.
Até que errou. Uma bola passou raspando por ele, e caiu fora da quadra.
Bruno caminhou até ele, os passos firmes, o peito arfando.
Bruno
Nada mal. Você me surpreendeu, garoto da cidade.
Bruno o olhou nos olhos por um instante longo demais. Tempestade e algo doce, escondido ali.
Bruno
Mas acho que vai me odiar antes de gostar de mim.
E então saiu da quadra, deixando Lilo parado, o coração disparado e uma pergunta sem resposta queimando no peito.
×××
Os pés de Lilo ainda doíam da partida do dia anterior. Mesmo assim, ele acordou antes do despertador, o corpo cansado, mas o pensamento inquieto. A imagem de Bruno voltava em flashes — o jeito que ele andava com aquela confiança irritante, o olhar afiado, o modo como seu cabelo se grudava na testa suada, e a frase final:
> “Acho que vai me odiar antes de gostar de mim.”
Lilo odiava o quanto aquilo ficou martelando em sua cabeça.
Na cozinha, a mãe tentava sorrir enquanto passava manteiga numa fatia de pão. Era um sorriso gentil, mas distante. Ainda não sabiam como se conversar. Luh apareceu depois, silenciosa como sempre, e jogou uma maçã na mochila.
perguntou do nada, sem olhar pra Lilo.
Luh
O garoto do tênis. Bruno, né?
Lilo
Ele foi embora sem dizer nada. Só jogou... e saiu.
Luh deu um meio sorrisinho.
Luh
Todo mundo conhece. Ele é tipo… a estrela da escola. Ganhou não sei quantos torneios, vive no jornal local e tem aquela aura de bad boy emocionalmente indisponível.
Luh
E uma dor de cabeça pra quem tenta entender.
Aquilo só deixou Lilo mais nervoso. Ele queria que Bruno fosse só um idiota qualquer. Ser bom já era irritante. Ser complexo era pior ainda.
Na escola, o dia seguiu arrastado. Algumas pessoas o encaravam nos corredores, sussurrando. Ele sabia o motivo. A partida na quadra tinha virado comentário. E por algum motivo, ele, Lilo, o garoto novo e alérgico que só queria ser invisível, agora estava no radar.
Durante o intervalo, pegou o caminho mais longo até o refeitório só pra evitar as mesas cheias. Mas, claro, o destino tinha outro plano.
Bruno estava sentado num dos bancos do lado de fora, pernas abertas, o corpo jogado pra trás como se ele fosse dono do lugar. O sol batia no cabelo dele, e uma abelha pairava por perto, talvez confundindo o garoto com uma fruta muito madura.
Lilo tentou passar reto, mas ouviu:
Bruno
Vai fingir que não me viu?
Ele parou. Virou devagar.
Lilo
Eu achei que você preferia sair andando do nada. Meio seu estilo.
Bruno deu uma risadinha. Era baixa, mas tinha algo sarcástico nela.
Bruno
Eu saí porque senão ia acabar te perguntando por que diabos você joga tão bem se diz que nem gosta de tênis.
Lilo encarou ele com um certo incômodo.
Lilo
Eu só... sei jogar. Meu pai me colocava em aulas quando era pequeno. Foi uma das poucas coisas que ele achou que eu devia aprender.
Lilo
Porque ninguém nunca me perguntou se eu queria.
Bruno ficou em silêncio por um momento. E, pela primeira vez, pareceu não saber o que responder.
Bruno
Mesmo assim... você devia voltar. Eu não gosto de perder pra gente que não tá nem aí.
Lilo bufou, cruzando os braços.
Bruno
Mas podia. Isso me irrita.
Lilo sorriu de leve, e odiou isso. Odiava estar sorrindo por causa daquele garoto. Odiava o jeito como ele mexia com suas defesas. E mais que tudo, odiava o que estava sentindo agora — esse calor incômodo no peito, como se tivesse algo dentro dele que só queria se provar... pra Bruno.
Lilo murmurou, como se falasse consigo mesmo.
Bruno inclinou a cabeça, curioso.
Bruno sorriu, mas não aquele sorriso debochado. Foi algo mais suave, quase triste.
E antes que Lilo pudesse responder, Bruno se levantou, pegou a mochila e deu dois tapinhas no ombro dele ao passar.
Bruno
Treino hoje. Na quadra. Aparece se quiser me irritar mais.
Lilo ficou ali parado, o coração batendo mais rápido, e a estranha sensação de estar sendo puxado por uma força que ele não sabia nomear.
Uma coisa era certa: Bruno era bom demais. E talvez, só talvez… Lilo estivesse começando a gostar disso.
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