Melissa
Você já se perguntou o que significa realmente ser mulher?
Não aquela resposta pronta que você encontra em revistas baratas, nem as frases feitas jogadas em cima de um pôster de campanha publicitária tentando te vender autoestima em três vezes no cartão.
Falo do real. Do cru. Do desconfortável.
Eu passei anos tentando responder essa pergunta pra mim mesma. E talvez tenha começado a chegar perto da resposta justamente agora — enquanto encaro o espelho metálico dentro desse elevador.
As luzes brancas do prédio refletem o contorno dos meus ombros. Vejo as meias de arco-íris abraçando minhas pernas, que agora exibem, com orgulho, seus pelos livres. E por mais estranho que pareça... eu me sinto inteira.
Sorrio sozinha.
— Hora de mostrar o dedo do meio pra esse sistema de merda, Melissa... dizendo namastê. — murmuro, como um mantra irônico.
A porta do elevador se abre.
Eu piso no andar da empresa com a cabeça erguida e o coração firme. No começo, ninguém repara. Eu passo pelo corredor, cumprimento com um aceno discreto. Mas logo sinto os primeiros olhares, os cochichos discretos.
Nada que me abale.
Quer dizer... não muito.
Eu esperava por isso. Me preparei. Mas a gente sempre sente um pequeno frio na barriga quando resolve sair da linha — da linha que desenharam pra gente desde que éramos meninas.
Continuo andando. Até que sinto um arrepio leve. Alguém me olha. De forma diferente.
E então vejo ele.
Enzo Navarro, meu chefe. Terno impecável. Passos decididos. A presença que pesa no ar mesmo quando ele não diz uma palavra.
Seus olhos passam por mim. Descem pelas minhas pernas. Sobem de novo até encontrar meu rosto.
Ele não diz nada. Só me encara por um segundo a mais do que o normal. Depois vira o rosto e entra em sua sala de vidro.
Pronto. Acabou.
Mas isso fica martelando na minha cabeça.
Foi julgamento? Surpresa? Ou só coisa da minha cabeça mesmo?
Suspiro.
Puxo a cadeira. Sento. Ligo o computador como se nada tivesse acontecido, tentando ignorar os risinhos abafados de alguma rodinha de terninhos no canto da sala.
Respiro fundo e, neste instante, escuto passos rápidos e hesitantes se aproximando.
— Mel? — ouço a voz baixa, mas cheia de alívio. — É você mesmo?
Me viro e lá está ele — Théo, com os óculos escorregando no nariz e um sorriso tímido que tenta se esconder atrás da xícara de café.
— Sou eu sim — digo sorrindo, já sentindo aquele calorzinho bom de reencontrar alguém que importa.
Ele dá uma olhada rápida, discreta, mas perceptível. Seus olhos descem até minhas pernas, voltam para o meu rosto e ficam ali, me estudando em silêncio por um segundo.
— Você tá diferente... — ele comenta, sem julgamento, apenas curioso.
— Mudei umas coisinhas enquanto tava fora — respondo com um meio sorriso.
Ele senta na cadeira ao lado, apoiando os cotovelos nos joelhos.
— Posso dizer uma coisa? Você tá… mais você, sabe? E isso é muito legal.
— Obrigada, Théo. De verdade.
Ele desvia o olhar, um pouco sem graça. Sempre foi assim — todo encolhido no próprio mundo, mas com uma lealdade que você sente no osso.
— Inclusive já notaram. — Digo baixinho.
Ele suspira e sacode a cabeça, como quem já sabe o script todo.
— O povo aqui não sabe lidar com qualquer coisa fora da curva. Mas... eu tô contigo, viu?
Olho pra ele e sorrio. Aquela cumplicidade silenciosa que não precisa de muito.
— Eu sei, Théo. E é bom saber que tenho você aqui.
No entanto, nosso momento de paz dura pouco.
Um salto alto estala ritmado pelo chão polido. É aquele som que parece ecoar direto na espinha. Antes mesmo de vê-la, eu já sei quem vem aí.
— Nossa, Melissa… você voltou. — Diz uma voz doce com gosto de veneno. — Achei que tinha pedido demissão, ou ido morar em alguma vila ecológica… dessas bem alternativas.
Viro-me devagar, já com o sorriso pronto. A clássica armadura social.
— Bom dia, Amanda — respondo, tentando manter o tom neutro. — Sim, voltei. Renovada.
Amanda sorri, mas os olhos brilham daquele jeito que não engana ninguém. Ela ajeita o cabelo loiro perfeitamente alisado atrás da orelha e me analisa como quem observa uma obra de arte... que não entende.
— Renovada, é? Que... interessante. Amei essa vibe... natural. Bem... conceitual — ela diz, olhando descaradamente para minhas pernas. — Bem ousada mesmo. Mas é claro, você sempre teve um... estilo único.
— É, né? — digo, cruzando as pernas com toda a calma do mundo. — Dizem que autenticidade é tendência agora.
Théo, ao meu lado, finge estar extremamente concentrado no computador, mas eu vejo o canto da boca dele tremer. Está segurando o riso.
Ela estala a língua, me dá uma última olhada de cima a baixo, e se afasta com o som dos saltos marcando sua retirada dramática.
Mas não, sem antes dizer:
— Bem-vinda de volta, Mel. O escritório estava... bem mais calmo sem você.
Dou um sorriso genuíno. Nem ironia, nem raiva. Só aquela satisfação serena de quem sabe que não deve nada a ninguém.
— Que bom. Tava mesmo precisando agitar um pouco isso aqui.
Ela vai embora, e eu e Théo trocamos um olhar silencioso.
— Meu Deus... ela tá com medo de você — ele murmura, quase em choque.
— Ainda não, Théo... Mas vai ficar. — Respondo, cruzando os braços e sorrindo com gosto.
Enzo
Entro na minha sala quase correndo. Assim que fecho a porta, abaixo as persianas de vidro. O mundo lá fora se apaga. Um calor feroz se espalha pelo meu corpo como um incêndio.
Merda.
Eu sei bem o que é isso.
Meu lobo.
Ele está despertando. Rastejando por baixo da pele. Clamando, urrando dentro de mim como uma fera presa por tempo demais.
O cheiro dela...
O maldito cheiro dela ainda está aqui. Impregnado na minha memória olfativa como uma tatuagem invisível.
Não era pra ser assim.
Ela era apenas mais uma funcionária. Uma analista de dados entre centenas.
Mas agora...
Agora ela tem cheiro de floresta molhada e tempestade elétrica. Um cheiro ancestral. Quase selvagem.
Puxo a gaveta com força e pego o pequeno espelho. Olho meu reflexo. Os olhos...
Dourados.
— Porra...
Aperto o botão do relógio no pulso, desesperado. A luz vermelha pisca, mas nada acontece.
— Qual é, desgraça! Funciona, merda! — rosno, a voz rouca, gutural.
O pulso lateja. O calor aumenta. A pele começa a esticar, a formigar.
Não vai dar tempo.
— Célia! — vocifero. — Inicie a injeção de contenção. Agora! Não estou conseguindo!
A IA responde com sua voz calma e clínica.
“Claro, senhor Navarro. Iniciando a injeção. Como o senhor bem sabe… isso pode doer.”
— Vai logo...
Um clique metálico. Um chiado breve. E então, a dor.
Aguda. Precisa. Infernal.
A agulha perfura a carne através do compartimento secreto no relógio — um protótipo ainda em fase de testes. Uma droga feita sob medida, para conter... isso.
Meus joelhos quase cedem. Sinto a pele formigar, o lobo urrar, se contorcer dentro de mim como se estivesse sendo sufocado por dentro.
A agulha ainda pulsa sob minha pele, enquanto tento controlar a respiração. O suor frio escorre pela nuca. A sala está em silêncio — até a porta se abrir com um estalo abrupto.
Gustavo, Daniel e Léo entram, rindo alto demais para a tensão que paira aqui dentro.
— Ei, você viu, Enzo? — diz Gustavo, interrompendo o riso ao se aproximar da minha mesa. — A tal... como é mesmo o nome dela?
— Melissa, cara — responde Léo, ainda rindo. — Melissa Albuquerque.
Gustavo assente, como se finalmente lembrasse. Os olhos brilhando com aquela malícia de escritório que sempre me irritou.
— Isso! Melissa! Você viu, cara? As pernas dela? Tavam peludas... peludas! Com os pelos à mostra! Aquilo foi tipo… sei lá... surreal.
Eles riem de novo. Daniel faz um comentário idiota, que ignoro completamente. Porque nesse instante... as palavras deles já não chegam direito aos meus ouvidos.
Melissa.
Meu olhar se perde por um momento na persiana da janela. O eco do cheiro dela ainda pulsa dentro de mim. Um aroma selvagem, instintivo, sem máscaras. Quente. Real.
Feromônios.
Cheiro de mulher de verdade. Não dessas versões plastificadas e condicionadas que nos rodeiam.
Feminilidade crua. Nua. Quase perigosa.
Foi por isso?
Será que foi isso que quase despertou meu lobo?
Porque eu já estive perto dela antes. Já a vi passar pelos corredores, vi relatórios com seu nome, até mesmo a ouvi falando em algumas reuniões. Mas nada. Nenhuma reação.
Hoje... bastou ela entrar.
Bastou um segundo.
Como se ela tivesse voltado... diferente.
Mais densa. Mais viva. Mais... selvagem.
— Enzo? — a voz de Daniel me puxa de volta. — Está tudo bem?
Olho para eles. Três idiotas engravatados, que acham que dominam o mundo porque usam ternos caros e fazem piadas medíocres sobre mulheres. A criatura dentro de mim rosna baixo.
Eles não fazem ideia do que estão falando.
Não têm a menor noção do que realmente cruzou aquelas portas hoje.
Melissa não é piada. Ela é um gatilho. Um aviso. Um chamado.
E o meu lobo ouviu.
— Vão trabalhar — digo, com a voz baixa, controlada, mas carregada demais para passar despercebida.
Os três se entreolham, e o riso se dissipa no ar. Eles saem em silêncio.
Sozinho de novo, fecho os olhos.
(...)
Alguns minutos se passou. Eu tento me concentrar no monitor holográfico, revisando dados do novo projeto de integração da IA com o sistema de segurança, mas a imagem dela ainda ronda meu pensamento como uma maldita sombra. A sensação ainda esta aqui, grudada em mim feito cheiro na pele.
Um som interrompe meu devaneio. Três batidas leves na porta.
— Pode entrar — respondo, sem tirar os olhos da projeção flutuante.
A porta se abre e, quando olho, sou surpreendido.
Melissa.
Ela entra com passos calmos, quase felinos. Em suas mãos, um tablet de vidro.
— Boa tarde, senhor Navarro. — Sua voz soa firme, mas com uma gentileza natural. — Trouxe o relatório da equipe. Eles finalizaram ontem, e como voltei hoje, achei melhor entregar pessoalmente.
Ela me estende o dispositivo.
Forço minha expressão para parecer neutra, mas meu corpo me trai.
Meu lobo se remexe novamente, silencioso, em alerta. O cheiro dela... porra, ainda está aqui, e agora ainda mais forte. Quente. Vivo.
— Obrigado, Melissa. — Pego o relatório, evitando encarar suas pernas, ou seus olhos. Porque sei que, se fizer isso, vou me perder ali.
Ela sorri de leve, como se sentisse algo, mas não soubesse nomear.
— Qualquer coisa, estarei na minha estação.
E então sai, deixando um rastro no ar. Como se o próprio ambiente precisasse respirar fundo para se acalmar depois da presença dela.
Suspiro pesado. Maldição.
Definitivamente... ela voltou diferente. E meu lobo sente isso.
Melissa
Assim que saio da sala de Enzo, sinto meu coração batendo mais rápido.
E o pior é que... eu nem sei explicar o porquê.
Não foi medo. Não foi nervosismo por ter entregado o relatório — até porque, tecnicamente, era só isso. Um protocolo comum. Um gesto profissional.
Mas algo... algo nele estava diferente.
Foi o jeito como ele me olhou. Como se estivesse tentando decifrar algo em mim. Ou pior — como se visse algo que nem eu mesma consigo enxergar.
Aquele olhar não era o mesmo do CEO distante e frio com quem convivi nos últimos anos. Não. Era algo mais denso. Quase... instintivo.
Por um segundo, meu corpo inteiro ficou em alerta. Os pelos — ironicamente eles — pareciam responder a um chamado invisível.
Sacudo levemente a cabeça, como se pudesse espantar o que quer que fosse aquilo. Meus passos ecoam no corredor até que volto para minha estação. Théo levanta os olhos do monitor e me encara, franzindo a testa.
— Você tá bem?
— Hã? Tô sim. — Dou um sorrisinho, sentando em minha cadeira. — Só... calor, acho.
Ele não compra minha resposta, claro. Mas sabe respeitar meus silêncios. E isso é algo que sempre admirei nele.
Enquanto conecto meu tablet à base de dados e começo a revisar os números da última campanha de monitoramento, minha mente insiste em voltar àquele momento dentro da sala dele. Ao modo como a atmosfera parecia densa. Carregada.
Como se eu tivesse atravessado uma fronteira sem perceber.
Meus dedos deslizam pela tela. Mas minha cabeça está longe.
Há algo estranho nesse lugar hoje.
Ou talvez o estranho... seja o que está despertando em mim.
Mas então decido deixar isso de lado — ou pelo menos tento. Respiro fundo, me afasto mentalmente da presença do CEO com olhar de fera e volto meus olhos para a pessoa mais segura do universo: meu melhor amigo.
— Ei, nerd? Está atento? — pergunto baixinho, com um sorriso maroto nos lábios.
Théo sorri de canto, mas seus dedos continuam ágeis no teclado, e seus olhos permanecem grudados no monitor. A luz da tela reflete nos óculos dele, escondendo parte do brilho curioso que sempre carrega.
— Estou, senhorita Melissa. O que manda? — responde com seu tom debochado e encantadoramente robótico, imitando um assistente virtual.
Reviro os olhos, fingindo irritação, mas logo dou um impulso com minha cadeira de rodinhas e deslizo até a sua mesa, que é praticamente colada à minha.
— Sabia, Théo, que antigamente — em algumas culturas dos nossos ancestrais — os pelos eram reverenciados?
Ele para de digitar por um instante, como se estivesse tentando entender se isso é mais uma das minhas aleatoriedades filosóficas.
— Reverenciados? Como assim? Tipo… culto aos pelos?
Dou uma risadinha, apoiando o queixo na mão, e encaro seu perfil iluminado pela tela.
— Não exatamente um culto. Mas eram vistos como símbolos de força, conexão espiritual, identidade. Em várias tribos, por exemplo, raspar os pelos era um sinal de luto ou submissão. Enquanto deixá-los crescer era como afirmar: "eu sou livre". "Eu sou inteiro".
Ele se vira um pouco para mim. Seus olhos agora sim encontram os meus, curiosos como sempre.
— Uau. Nunca ouvi nada disso. — pausa — E você andou estudando isso tudo nas suas férias?
Afirmo:
— Eu mergulhei, Théo. Fui fundo. Mais do que imaginei. E não foi só sobre pelos, sabe? Foi sobre mim. Sobre o que me fizeram acreditar por anos. Sobre como nos ensinam a odiar partes naturais do nosso corpo só porque... alguém lá atrás decidiu que era "feio" ou "sujo".
Théo não fala nada de imediato. Apenas me observa. Seu olhar é doce. E triste, um pouco. Acho que ele se lembra da mesma coisa que eu: da Sol. Do que aconteceu com ela. Do quanto tudo isso mexeu comigo.
Ele então estende a mão e segura a minha por um instante.
— Eu tenho orgulho de você, sabia? Por não deixar esse mundo te dobrar.
Sinto um nó na garganta. Mas sorrio.
— Às vezes acho que ele até tenta. Mas aí eu lembro que tenho você. E que tenho pelos — digo brincando, arrancando uma gargalhada dele.
— E que tem umas meias de arco-íris matadoras também! — ele completa.
— Isso é verdade. — ergo a perna, exibindo minha meia com orgulho. — Estilo e resistência no mesmo look.
Rimos juntos, neste cantinho da empresa que, por alguns minutos, parece ser só nosso. Um lugar seguro.
Mas... mal sabíamos que essa calmaria estava prestes a ser quebrada.
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