[AVISO IMPORTANTE: O LIVRO NÃO ESTA CONCLUÍDO.]
O despertador tocou às seis e meia da manhã com a sutileza de um alarme de incêndio em meio a um sonho bom. Ethan acordou com o coração acelerado — não pela animação, mas pela realidade de que aquele era o primeiro dia da faculdade. A vida adulta, aparentemente, começava com café ruim e incertezas.
Seu quarto novo era pequeno, com paredes cor de creme que pareciam desbotadas pela própria falta de vontade. A república estudantil onde ele morava agora tinha cheiro de madeira antiga, desinfetante e alguma coisa que ninguém conseguia identificar — talvez mofo, talvez drama juvenil.
Vestiu uma camiseta preta simples, jeans escuros e um par de tênis branco manchado de barro seco. Olhou-se no espelho e tentou sorrir. Cabelo castanho ligeiramente ondulado e teimoso, olhos castanhos cansados, e a expressão clássica de quem tentava parecer confiante, mas parecia mais prestes a desmaiar numa entrevista de emprego.
Engenharia Civil. Só o nome já pesava. Parecia algo dito por alguém que sabe o que está fazendo da vida. Spoiler: Ethan não fazia.
O campus era gigantesco, com prédios de estilos diferentes dividindo o espaço com árvores frondosas, bancos de concreto e grupos de calouros perdidos. Os blocos do curso de engenharia ficavam num canto mais afastado, como se fossem a ala dos corajosos — ou dos masoquistas.
Enquanto subia os degraus de um dos prédios principais, um corredor longo se abriu à sua frente. Ele caminhava olhando os nomes nas portas, tentando parecer um nativo daquele lugar estranho, quando foi atingido por uma força poderosa: uma garota bonita passando no sentido contrário.
Ela usava uma jaqueta jeans, mochila nas costas e fones de ouvido. Os cabelos ruivos presos num coque bagunçado, óculos escuros no topo da cabeça. Andava com passos decididos, como se soubesse exatamente pra onde estava indo — o oposto de Ethan, que mal sabia onde estava a própria sala.
Ela passou e ele ficou parado por um segundo, claramente babando, o pescoço virando com leveza disfarçada enquanto a acompanhava com os olhos.
— Se babar demais, escorrega — disse uma voz logo atrás, carregada de ironia
Ethan levou um susto, virou-se rápido e deu de cara com um sujeito alto, magro como um galho de árvore em dieta, com cabelos castanho-claros propositalmente desalinhados, mochila caída num ombro só e um sorriso de quem se diverte com a vergonha alheia.
— Oi? — Ethan piscou, confuso.
— A garota. A ruiva. Você parecia prestes a escrever um poema. Um daqueles sofridos, tipo "oh deusa do bloco C".
— Eu... não... — começou a dizer, mas já estava rindo. — Foi só… distração momentânea.
— Claro. Uma distração de pernas longas e andar de protagonista de clipe indie. Acontece. — O estranho estendeu a mão. — Daniel. Eu não estudo engenharia, mas gosto de assistir calouros sofrendo. É um hobbie.
— Ethan. Calouro sofredor. Muito prazer.
— Ah, então estamos alinhados. Você é novato e eu sou sarcástico. Parceria perfeita.
Daniel usava uma camiseta estampada com a frase "Sarcasmo: meu idioma oficial", jeans rasgados e um tênis vermelho chamativo. Tinha a vibe de alguém que sabia como quebrar o gelo e que fazia isso porque se divertia, não porque era gentil.
— Então, Ethan, já tá perdido ou ainda tá naquela fase onde finge que sabe onde vai?
— Estou na etapa “acho que minha sala é aquela, mas talvez seja um depósito de vassouras”.
— Excelente. Esse é o espírito. Todo grande engenheiro começa se perdendo em corredores.
Entraram juntos na sala 104A. Era espaçosa, com janelas grandes e carteiras de madeira enfileiradas em declive. O ar-condicionado estava desligado, mas havia um leve cheiro de tinta fresca e café barato. Alguns alunos já estavam sentados, muitos com cara de ressaca, outros digitando freneticamente nos celulares.
Daniel sentou-se ao lado de Ethan no fundo da sala, sem cerimônia.
— Você não é de engenharia, né? — perguntou Ethan, curioso.
— Céus, não. Eu sou de Comunicação. Mas meu professor cancelou a primeira aula e eu pensei: por que não começar o dia zoando calouros de exatas? — respondeu ele, abrindo um pacote de balas e oferecendo uma. — Além disso, esse prédio tem uma máquina de café que não tenta te matar com amargor puro. Prioridades.
Ethan riu. E continuou rindo a cada piada, a cada comentário absurdo. Daniel parecia ter o talento natural de transformar até o primeiro dia de faculdade — normalmente um desfile de ansiedade e constrangimentos — em uma comédia.
— Me diz, Ethan. Se a Engenharia Civil não der certo, você já considerou carreira como modelo de comercial de antisséptico bucal?
— O quê?
— Sua cara quando viu a ruiva. Eu juro que você parecia pronto pra falar “com hálito refrescante, tudo fica mais fácil”.
— Você é muito específico nas suas piadas.
— E você é ótimo reagindo a elas. Já somos amigos.
— Ah, é assim?
— Sim. Amizade por imposição. Aceita que é mais rápido.
O professor entrou na sala e iniciou a aula com uma empolgação suspeita.
— Aposto cinco reais que ele vai usar a palavra “resiliência” em menos de dois minutos — sussurrou Daniel.
E, como se o universo estivesse ensaiado, lá veio:
O professor se apresentou como Dr. Gustavo Tavares, um homem de meia-idade com voz firme e óculos de aro grosso que caíam lentamente pelo nariz sempre que ele se empolgava demais. Usava camisa social com as mangas dobradas e um blazer bege amassado como se tivesse dormido com ele — ou dentro dele.
— Aqui, na Engenharia Civil, buscamos desenvolver resiliência, pensamento lógico e um bom domínio de matemática. Muito matemática. — Ele escreveu isso no quadro, em letras grandes, como se estivesse invocando um espírito. — E se vocês não gostam de cálculo… bem, meus pêsames.
Ethan começou a rir. Daniel só piscou, com um sorriso vitorioso no rosto.
Ethan tentou prestar atenção. O professor falava sobre o papel da engenharia na construção de cidades, pontes, estradas e estruturas que suportam o tempo e a ação humana. Era interessante — ou pelo menos seria, se a cabeça dele não estivesse presa numa memória muito mais recente.
A garota ruiva.
Por algum motivo, a imagem dela ainda rondava seus pensamentos. Havia algo hipnótico na forma como ela andava — segura, focada, como se já estivesse no terceiro semestre da vida enquanto ele ainda tentava encontrar a sala certa.
"Será que ela também é de engenharia?", pensou. Mas ela não tinha cara de exatas. Talvez arquitetura? Ou artes? Algo mais criativo... talvez até Comunicação. De repente, desejou ter perguntado a Daniel se ele a conhecia. Mas aí pensou melhor: Daniel provavelmente daria uma resposta absurda como "Ah, sim, é minha prima secreta que foi criada por lobos na Noruega".
Ethan piscou e voltou a encarar o quadro. O professor agora explicava as diferenças entre tensões normais e cisalhamento em materiais de construção. Havia uma tabela. E gráficos. Muitos gráficos. O tipo de conteúdo que fazia seu cérebro considerar férias em outro curso.
— Se eu não morrer de calor, morro de tédio — murmurou Daniel ao lado dele, se abanando com a folha de chamada.
— O que é pior: a tensão do concreto ou a minha tensão tentando entender isso?
— A sua, com certeza. O concreto não tem crise existencial.
Ethan riu baixo e voltou a anotar, tentando focar. Mas a imagem da garota atravessando o corredor surgia de novo na mente, como um frame congelado. Ele não fazia ideia do nome dela, do curso, do semestre — nada. E mesmo assim, ela já tinha mais espaço no pensamento dele do que qualquer fórmula da lousa.
"O que será que ela estava ouvindo nos fones?", pensou, enquanto rabiscava distraidamente no canto da folha.
No quadro, o professor agora desenhava um esquema de uma viga sob carga. Já Daniel desenhava um pinguim usando capacete de engenheiro na borda da folha dele.
No meio daquilo tudo — cálculos, colunas, vigas e piadas — Ethan teve uma certeza: se o primeiro dia já estava assim, o resto do semestre prometia ser um caos interessante.
E ele não sabia ainda o nome da ruiva, mas algo nele dizia que aquele não tinha sido o último encontro.
O semestre passou voando, como um carro desgovernado numa ladeira: rápido, caótico e com várias batidas na autoestima de Ethan. A faculdade de Engenharia Civil era tudo que prometeram — intensa, cheia de cálculos, noites mal dormidas e uma grande quantidade de café que provavelmente derreteria aço.
Mas, curiosamente, havia um detalhe que tornava os dias menos pesados.
A garota ruiva.
Ela passava todos os dias pelo mesmo corredor, no mesmo horário, como se estivesse seguindo um roteiro que só ela conhecia. Às vezes com uma jaqueta jeans, outras com um moletom desbotado, às vezes de vestido, outras com calça larga e tênis colorido. Cada dia, Ethan notava algo diferente: o coque mais bagunçado que o normal, os fones de ouvido com fios vermelhos, a forma como ela cumprimentava os amigos com um sorriso que durava pouco, mas parecia sincero.
Ele nem sabia seu nome, mas isso não impedia seu cérebro de compor mentalmente diálogos que nunca aconteciam.
“Oi, sou Ethan.”
“Legal.”
“Quer sair pra tomar um café?”
“Estou atrasada pra minha aula de física quântica aplicada em tubarões.”
Talvez fosse exagero, mas era assim que ele se sentia.
Enquanto isso, a amizade com Daniel ia de vento em popa. O estudante de Comunicação mais sarcástico do campus aparecia todos os dias no intervalo com alguma reclamação nova, uma teoria absurda ou um meme impresso (sim, impresso) para compartilhar.
Naquela quinta-feira em particular, os dois estavam na cafeteria do campus, sentados numa das mesas externas de plástico torto. O sol batia forte e o ventilador interno da lanchonete girava num ritmo preguiçoso, como se estivesse reconsiderando sua carreira.
Daniel estava com um pão de queijo numa mão e um suco de caixinha na outra, gesticulando como se estivesse em um TED Talk.
— Cara, minha professora fez a gente passar trinta minutos analisando a “linguagem corporal de uma escova de dente num comercial dos anos 2000”. Eu quase pedi demissão da minha própria matrícula. — Ele deu uma mordida dramática no pão de queijo. — Eu vi minha alma levantar e perguntar: “É isso mesmo que a gente vai fazer com a vida?”
Ethan riu, mastigando um misto frio.
— Escova de dente? E o que ela queria que vocês enxergassem?
— Emoção. Personalidade. “A escova transmite segurança e confiança na escovação.” — Ele imitou a voz da professora. — Irmão, é uma escova. Ela só quer limpar dente, não vencer o Oscar.
Ethan quase cuspiu o suco de tanto rir.
Foi então que aconteceu. O momento que partiu o tempo em dois.
Ela entrou.
A garota ruiva passou pela porta da cafeteria com a mesma calma de sempre, fones no pescoço, segurando um caderno e um copo de café. Vestia uma camiseta oversized com a estampa de uma banda indie que Ethan fingiu conhecer mentalmente. Cabelo preso num coque frouxo, um lápis atravessado entre os fios como se ela estivesse pronta para escrever um poema ou montar um míssil.
Ela pegou um canudo, girou no açúcar, deu um gole, e seguiu para a outra extremidade da lanchonete, sentando sozinha numa mesa perto da janela.
Ethan ficou paralisado com a mordida do misto a meio caminho da boca. Olhava como se tivesse visto uma aurora boreal passando pela praça de alimentação.
Daniel, é claro, não deixou passar.
— Ahá! Lá vem o olhar de "meu coração esqueceu como funciona". Você tá igual meu cachorro quando vê frango.
— Ela de novo — murmurou Ethan, tentando parecer casual e falhando miseravelmente.
— “Ela”. Eu amo como você fala como se fosse uma entidade mitológica. Tipo A Ruiva, a Encantadora de Engenharia. — Daniel apoiou o cotovelo na mesa e encarou Ethan com cara de coach. — Tá na hora, meu jovem gafanhoto. Chega de observar. Vai lá e fala com ela.
— Falar o quê? “Oi, tudo bem? Te admiro silenciosamente há quatro meses. Já sei até como você segura o copo com a mão esquerda.”?
— Sim. E depois você é preso.
— Exato.
Daniel bufou, divertido.
— Cara, você passou o semestre inteiro colecionando detalhes dessa menina na cabeça. Isso já é basicamente um PowerPoint emocional. Vai lá, pergunta o nome dela, ou sei lá, finge que ela deixou cair algo no chão. Eu te ajudo, posso fazer uma encenação. Eu tropeço, esbarro nela, você entra pra salvar a situação, tipo cena de novela mexicana. Tô pronto.
— Eu não vou fazer isso. — Ethan se encolheu na cadeira. — Só tenho curiosidade, sabe? É que… quando eu a vejo, parece que o dia pesa menos. Como se ela fosse um lembrete de que ainda existem pessoas interessantes por aí. Mas eu nem sei por quê.
Daniel o encarou por dois segundos, depois apontou com a bala que acabara de desembalar:
— Isso foi estranhamente profundo. Pra alguém que quase reprovou por esquecer de entregar um trabalho que estava na mochila.
— Obrigado. É um dom.
— Ok. Então não vai falar com ela. Mas um dia você vai, Ethan. Ou eu mesmo vou lá perguntar o nome dela e trazer um dossiê completo, tipo detetive particular.
— Por favor, não. Você com certeza perguntaria se ela escova os dentes com emoção.
Daniel ergueu o suco como quem faz um brinde:
— Ao amor platônico, às ruivas misteriosas e aos engenheiros emocionalmente covardes.
— E aos comunicadores dramáticos que analisam escovas.
Eles brindaram com seus copos de suco de caixinha e morderam seus lanches como se a vida fosse um episódio de sitcom mal roteirizado — e talvez fosse mesmo.
Lá fora, o sol seguia firme. Dentro da cafeteria, a ruiva ainda tomava seu café, alheia ao caos emocional que causava a dois metros de distância.
E Ethan... bem, Ethan ainda não sabia o nome dela, mas pela primeira vez, considerou a ideia de descobrir.
****
A última aula da sexta-feira parecia durar mais que um semestre inteiro. Ethan já não sabia se os rabiscos no caderno eram cálculos ou puro desespero artístico. O professor falava sobre estruturas hiperestáticas com a empolgação de quem narra um enterro.
Quando o sinal finalmente tocou, liberando a turma do cativeiro acadêmico, Ethan juntou as coisas com lentidão ritualística. Estava pronto para ir direto pra casa, tomar um banho gelado, comer qualquer coisa com queijo e, quem sabe, olhar pro teto enquanto pensava na vida.
Mas a calmaria durou exatos dez segundos.
— ETHAAAAN! — a voz surgiu como um trovão animado no corredor.
Daniel apareceu correndo, suado, com os cabelos bagunçados e um brilho no olhar que indicava que vinha encrenca.
— Mano! Festa hoje! No campus! Confirmadíssima!
Ethan nem piscou. Apenas respondeu com a convicção de um velho cansado:
— Não. Nem ferrando. Tenho trabalho de física estrutural pra entregar, leitura atrasada e um modelo 3D pra fazer. Eu tô enterrado, Daniel. Festa é o oposto do que preciso.
Daniel arregalou os olhos.
— Você é muito chato, cara. Sério. Um dia vão escrever um artigo sobre como matar o espírito universitário — “Estudo de Caso: Ethan, o Engenheiro Antissocial”.
— Título criativo — murmurou Ethan, enfiando os livros na mochila.
Daniel cruzou os braços, depois arqueou uma sobrancelha com um sorriso sacana.
— Tá. Então deixa eu te contar um segredinho... sabe quem vai estar lá?
Ethan nem levantou a cabeça.
— A Beyoncé?
— Melhor. A ruiva.
Aquilo fez Ethan travar. Literalmente. A mão parou no zíper da mochila. Ele olhou pra Daniel com uma expressão entre cético e curioso.
— Como você sabe?
Daniel deu um giro teatral.
— Quando o pessoal da república me entregou o convite, vi a mesma garota indo direto até ela no corredor. Estavam ali, ó — apontou para lugar nenhum específico — e eu ouvi o clássico “vai ter música, comes e bebes, muita gente legal”. Ela sorriu e disse algo que eu não ouvi, mas posso supor que foi um “vou pensar” com aquele jeitinho misterioso de ruiva que você adora.
Ethan ficou em silêncio. Fechou a mochila com força. O cérebro começou a entrar num loop interno de possibilidades.
— E se ela nem for?
Daniel riu alto.
— Cara... se você não for, você tem certeza que ela não vai. Se você for... pelo menos pode descobrir. E quem sabe ter sua chance de finalmente falar com ela. Ou só continuar babando discretamente do outro lado da pista de dança, o que você faz com maestria.
Ethan encarou o chão por um momento, depois Daniel, depois o chão de novo. Suspirou.
— Tá bom. Eu vou. MAS... — levantou o dedo — se ela não aparecer nos primeiros vinte minutos, eu vou embora.
Daniel fingiu cair de joelhos com as mãos ao céu.
— Vinte minutos?! Meu Deus, você tá indo pra um casamento ou um leilão de arte?! Que exigência é essa?!
— Não sou exigente. Só não quero virar figurante de novela universitária.
— Não é como se você fosse arrastar a garota até lá! — retrucou Daniel, sarcástico. — Ela não vai entrar e dizer: “Oi, Ethan! Estava esperando você desde o começo do semestre!”
Ethan riu, balançando a cabeça.
— Mas seria legal se acontecesse.
— Claro, romântico com expectativas surreais. Esse é o Ethan que eu conheço!
Daniel bateu nas costas dele com força e já foi puxando-o pelo braço.
— Bora, engenheiro. Vamo comprar roupa decente, você não vai aparecer nessa festa com essa camiseta que parece uma cortina de hospital.
E, entre protestos, piadas e planejamento tático para não parecer desesperado, Ethan foi convencido a fazer o impensável: sair da toca. Tudo por causa de uma ruiva misteriosa que nem sabia que tinha fã-clube de um membro só.
Mas ele não sabia ainda... aquela noite ia mudar tudo.
Ethan sabia que estava cometendo um erro no exato momento em que colocou os pés naquela casa.
A música já podia ser ouvida da esquina: um remix indecifrável entre funk, reggaeton e barulho de liquidificador. O som fazia o chão tremer como se a casa estivesse prestes a decolar. O local? Uma residência antiga, provavelmente alugada por algum estudante corajoso (ou inconsequente). Luzes coloridas piscavam por trás das janelas, e havia pelo menos três pessoas dançando na varanda como se a vida dependesse disso.
— Essa é a festa? — Ethan perguntou, quase gritando por causa da música. — Parece uma rave improvisada num museu abandonado.
Daniel, por outro lado, estava animadíssimo. Seus olhos brilhavam com a energia de quem acabara de tomar três energéticos e um banho de adrenalina.
— Isso aqui, meu amigo, é vida universitária! Olha essa vibe! Olha esse povo estranho! Olha aquele cara com uma fantasia de abacate! — apontou com entusiasmo exagerado.
Ethan olhou. Tinha mesmo um cara vestido de abacate.
— Quem é o anfitrião disso?
— Não faço ideia — respondeu Daniel, abrindo caminho entre um grupo de pessoas vestidas como personagens de um filme indie dos anos 90. — Me disseram "vai ter festa sexta à noite" e eu nem perguntei mais nada. Só aceitei.
Ethan suspirou. O cheiro do ambiente era uma mistura agressiva de cerveja, perfume barato e suor universitário. Ele tentava parecer indiferente, mas cada segundo ali era um lembrete de que ele preferia estar em casa, deitado com um pacote de salgadinho vendo um vídeo de pontes colapsando em câmera lenta.
— Vou ali falar com o pessoal do meu curso, já volto! — gritou Daniel, acenando para um grupo de estudantes com cara de gente que tinha uma playlist inteira de bandas que ninguém conhece.
Ethan ficou ali, parado, segurando um copo de refrigerante que ele mesmo se serviu por precaução. Deu uma volta pelo ambiente. Muita gente dançando, outras gritando umas com as outras como se fossem surdas, um sofá com uma perna quebrada, copos vazios em cada canto, alguém discutindo sobre astrologia com um poste. Era o caos embalado em luzes neon.
Ele repetia mentalmente:
“Só vinte minutos... só vinte minutos... ela pode aparecer a qualquer momento... ou não... mas se eu for embora cedo, pelo menos tentei...”
Foi quando sentiu um peito bater nas costas dele.
Virou-se rapidamente e se deparou com uma loira baixinha, toda de rosa — da sombra cintilante ao tênis com glitter — com um look tão espalhafatoso que parecia uma paródia de si mesma. Cabelo preso com presilhas em forma de coração, uma bolsinha com orelhas de coelho e... um olhar de caçadora.
— Oi, gato! — disse ela, jogando o cabelo pro lado com força suficiente pra gerar uma pequena ventania. — Tá sozinho?
Ethan congelou. Seu cérebro travou como um computador velho.
— Ahn... oi. É... tô... esperando alguém.
— Que legal! Pode me esperar junto, se quiser. — Ela deu uma risadinha que parecia um ringtone dos anos 2000. — Qual seu nome, docinho?
"Docinho?", Ethan pensou, com pavor interno.
— Ethan. Eu, hã... tô só de passagem mesmo.
A loira se aproximou mais. Muito mais. Colocou a mão no braço dele com firmeza.
— Ah, para. Fica aqui comigo um pouquinho. Você é tão... sério. Gosto de homem sério. — Ela deu uma piscadinha dramática.
Ethan olhava em volta procurando uma saída, um buraco no chão, um botão de ejetar. Qualquer coisa. Ela não fazia seu tipo. Nem perto. Talvez fosse bonita para outros caras, mas Ethan... Ethan só pensava em ruiva misteriosa com lápis no coque.
— Eu... é sério... tô esperando alguém.
— É sua namorada? — Ela arqueou as sobrancelhas.
Ethan ficou mudo. Um erro fatal.
Foi nesse exato momento que Daniel surgiu como um milagre, interrompendo a cena com um sorriso maior que o ego dele:
— Aí está você, amor! — disse ele, abraçando Ethan pelos ombros com naturalidade absurda. — Tava te procurando! Já tava ficando com ciúmes aqui.
A garota loira piscou três vezes. O cérebro dela processando tudo como um sistema operacional bugado. Depois sorriu amarelo.
— Ahhh... desculpa então, não sabia que ele... né? — apontou entre os dois, fingindo uma risada. — Tudo bem. Boa noite pra vocês!
E saiu desfilando, balançando o glitter.
Ethan ficou olhando a cena, boquiaberto, como se tivesse presenciado um truque de mágica.
— O que foi isso? — perguntou, ainda sem saber se agradecia ou fugia.
Daniel deu de ombros, fingindo estalar os dedos como um herói de filme ruim.
— Vi você tentando escapar da Ivete ali e resolvi te salvar. Aquela menina é uma galinha, mano. Dá em cima de todo mundo da faculdade. Se você dissesse que era casado, ela ia perguntar “com quem?”. E ainda assim tentava.
— Ivete? — Ethan riu, aliviado. — Você sabe o nome de todo mundo?
— Não. Mas ela se apresenta pra todos os caras, então... né. Nome de uso coletivo.
Ethan respirou fundo. Pela primeira vez, ficou grato por Daniel ser exagerado em tudo.
— Valeu, sério. Achei que nunca ia sair dali.
— Que isso, amorzinho — disse Daniel, apertando a bochecha dele. — Sempre te protejo.
— Para, caramba! — Ethan se afastou, rindo.
— Só tô dizendo que, se a ruiva não vier, já tem um namorado de emergência aqui.
Ethan riu alto, mais relaxado. O clima estava caótico, sim, mas pelo menos agora ele não se sentia tão fora do lugar. Estava com Daniel, e isso significava que a noite podia render boas risadas — com ou sem a ruiva.
Mas no fundo, no fundo, ele ainda esperava que ela aparecesse.
Ethan já tinha olhado pro relógio do celular cinco vezes nos últimos dez minutos. Ele estava literalmente contando os segundos para escapar daquela festa. O plano era claro: vinte minutos. E se a ruiva não aparecesse nesse intervalo, ele sairia dali e voltaria para a sua zona segura — ou seja, sua casa, seus livros, e o mundo onde pessoas não dançavam em cima de mesas.
Só havia um problema: Daniel estava em todas as partes da casa ao mesmo tempo.
— Ei, Jéssica! — ele acenava de um lado.
— Lucas, seu sumido! — gritava do outro.
Ethan o observava, incrédulo.
— Como é que você conhece todo mundo nessa festa? — perguntou, franzindo a testa.
Daniel passou por ele segurando dois copos (ambos cheios, provavelmente nenhum era pra Ethan).
— Eu sou sociável, diferentemente de você, que parece um funcionário de repartição pública perdido numa rave.
— E ainda assim, com essa rede de contatos, você não sabe o nome da garota ruiva?
Daniel parou por um segundo. Deu aquele sorrisinho travesso, quase ensaiado. E respondeu como se contasse um segredo a um jornalista:
— Eu sei o nome dela.
Ethan arregalou os olhos, como se alguém tivesse lhe revelado que passou em Cálculo III sem colar.
— O quê?! Você sabe desde quando?
— Há algum tempo já.
— E por que diabos nunca me falou?
Daniel deu de ombros e tomou um gole do copo. Aquele olhar malandro continuava no rosto.
— Achei que era melhor você descobrir por conta própria. Você é o interessado, não eu. Ia ser mais... emocionante.
Ethan cruzou os braços, fingindo ofensa.
— Eu achava que você era meu amigo.
— Eu sou! Por isso mesmo fiz isso. Se eu te entregasse o nome de bandeja, ia ser igual quando você lê o final de um livro antes de começar. Eu queria que você criasse coragem, que tomasse uma atitude. Você não quer só o nome dela, Ethan. Quer ela.
Ethan fez um som de desgosto com a garganta. E então, sem pensar, agarrou a gola da camisa de Daniel e o puxou para perto com a força de um velho que acabou de descobrir que a aposentadoria foi adiada.
— Fala o nome dela, Daniel. Fala agora.
Daniel, sempre com aquele ar de “vilão simpático de comédia romântica”, soltou o clássico:
— Que tal... você perguntar diretamente pra ela?
E apontou com o queixo.
Ethan virou devagar, como se estivesse prestes a encarar um monstro mitológico.
E lá estava ela.
A ruiva.
Encostada na parede do outro lado do cômodo, conversando com uma amiga. Vestia um vestido verde escuro, que contrastava com o cabelo vibrante, preso em um rabo de cavalo meio bagunçado. Ela ria de algo que a amiga disse, e seus olhos pareciam brilhar até do outro lado da casa.
Ethan congelou.
O corpo inteiro dele travou.
Seus pés disseram “corre lá!”, mas seu cérebro disse “melhor fingir de morto”.
Ele se abaixou e se escondeu atrás da parede mais próxima, como se estivesse fugindo de um ataque aéreo.
Daniel teve que segurar o copo pra não cuspir a bebida de tanto rir.
— Você tá brincando, Ethan! — ele falou, chorando de rir. — Você parece um NPC que bugou.
— Cala a boca. — Ethan disse, ainda abaixado, tentando respirar. — Ela tava muito perto. Eu... eu congelei. Não sei o que aconteceu. Eu travei, cara. Travou tudo.
— Você fugiu como se ela fosse a polícia e você tivesse três crimes no currículo.
— Talvez eu tenha. Crime de ser um fracassado.
Daniel sentou do lado dele, ainda rindo.
— E eu achando que você ia tomar coragem. O máximo que você tomou foi distância.
Ethan respirou fundo, tentando recuperar a dignidade.
— Isso foi só uma reação instintiva. Reflexo. Igual quando a gente encosta na tomada e toma choque.
— A diferença é que, nesse caso, você é o fio desencapado.
Apesar do caos, Ethan ficou. Não chegou nem perto de falar com a garota ruiva. Mas ficou. A observou rindo, gesticulando com as mãos, abraçando amigas que chegavam. Cada gesto dela era magnético, como se o mundo ao redor diminuísse o volume quando ela aparecia.
E, mesmo escondido atrás da parede por alguns minutos, Ethan sentia que aquela noite tinha mudado alguma coisa. Talvez só um pouco. Mas o suficiente.
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