Rafael e Clara..
O som dos pneus importados sobre a brita do jardim anunciou a chegada de Rafael antes mesmo que ele abrisse a porta do carro. Era sempre assim — ele fazia questão de ser notado. Vestia uma camisa social meio aberta no peito, óculos escuros mesmo com o céu nublado, e aquele andar preguiçoso que só os herdeiros sem pressa de nada conseguiam exibir.
Do outro lado da janela da cozinha, Clara observava. Estava com as mãos ainda molhadas de sabão, secando pratos ao lado da mãe, dona Cida, recém-contratada como empregada da família Andrade.
— Esse aí é o famoso Rafael — murmurou a mãe, sem tirar os olhos do prato que esfregava. — Mimado até a alma.
Clara apenas assentiu, sem dizer nada. Já ouvira falar do garoto. Arrogante, mulherengo e acostumado a tratar todo mundo como inferior. Nada nela queria se aproximar daquele tipo. Mas havia algo nos olhos dele, mesmo à distância, que parecia esconder uma ferida bem disfarçada sob a camada de soberba.
Minutos depois, Clara se deparou com ele no corredor que ligava a sala à cozinha. Estava levando um balde com panos e produtos de limpeza. Rafael, com o celular na mão, quase esbarrou nela.
— Olha por onde anda — ele resmungou, sem erguer os olhos.
Ela parou, firme.
— Eu tô trabalhando. Você é que tá andando feito quem não tem rumo.
Foi a primeira troca. Rápida, seca, e carregada de algo que nem os dois entenderam na hora. Um tipo de faísca que poderia acender qualquer coisa — ódio, ou... algo mais.
E aquilo, Clara saberia depois, era só o começo.
— Você fala assim com todo mundo, ou só com quem trabalha aqui? — Clara perguntou, sem esconder o tom de desafio na voz.
Rafael parou. Pela primeira vez, ergueu os olhos do celular e realmente olhou para ela. Não era comum que alguém o enfrentasse — ainda mais alguém que, aos olhos dele, deveria simplesmente baixar a cabeça e seguir em frente.
— Você é nova aqui, né? — ele disse, com um meio sorriso irônico. — Vai aprender que nesse lugar tem regras. E uma delas é: não se mete comigo.
— Ótimo — ela rebateu. — Eu também tenho uma regra: não engulo grosseria calada.
Ele ficou em silêncio por um segundo, como se tentasse decifrá-la. Clara não tinha o tipo de beleza óbvia das garotas com quem ele costumava sair. Mas havia algo nela — talvez os olhos que pareciam sempre prontos para uma batalha, ou a maneira altiva com que mantinha a cabeça erguida, mesmo usando o uniforme simples da casa.
— Você tem atitude — ele disse, quase como quem se surpreende. — Isso vai te dar problema aqui dentro.
— Eu não vim pra fazer amizades — ela respondeu, virando-se para continuar o caminho.
Rafael a observou se afastar, curioso. Pela primeira vez em muito tempo, alguém o deixou sem uma resposta ensaiada.
Naquela noite, Clara estava sentada na pequena área dos fundos da casa, o único lugar onde sentia que podia respirar. O casarão era bonito por fora, mas frio por dentro. Tinha escadas de mármore, quadros caríssimos nas paredes, e um silêncio sufocante que nem as risadas ocasionais dos patrões conseguiam quebrar.
Dona Cida se aproximou com uma xícara de chá.
— A senhora Andrade me pediu pra te lembrar que amanhã tem jantar com convidados. Vai ter movimento. — Ela fez uma pausa. — E cuidado com o menino Rafael. Ele é do tipo que gosta de brincar com o que não pode ter.
Clara segurou a xícara, pensativa.
— Ele que não ouse brincar comigo.
E embora dissesse isso com firmeza, não conseguia tirar da cabeça o olhar dele mais cedo. Como se, por trás de toda aquela arrogância, houvesse algo mais — talvez solidão. Talvez... dor.
Mas Clara sabia bem: sentimentos eram perigosos. E ali, naquele mundo que não era o dela, o amor podia ser ainda mais traiçoeiro que o ódio
.
Clara se sentia deslocada ali. A casa era grande demais, silenciosa demais. O tipo de silêncio que fazia questão de lembrar que ela não pertencia àquele lugar.
Ela passava um pano no balcão da cozinha quando ouviu passos firmes atrás de si. Não precisou se virar para saber quem era. O cheiro amadeirado do perfume dele já denunciava.
— Vai se acostumar — disse ele, seco.
Ela se virou devagar, encontrando aquele olhar intenso que parecia atravessar qualquer defesa. Misterioso, como se escondesse mil segredos. Arrogante, como se o mundo devesse algo a ele.
— Não estou aqui pra me acostumar. Só pra trabalhar — respondeu ela, com o queixo erguido.
Ele sorriu de lado. Não um sorriso simpático, mas um quase desafio. Como se dissesse “vamos ver até onde vai essa pose”.
— Você tem resposta pra tudo, hein? — Ele se aproximou, parando perto demais. Clara sentiu a pele arrepiar, mas não deu o gosto da reação.
— Só quando falam comigo como se eu fosse um móvel da casa.
Por um segundo, algo mudou no olhar dele. Como se não esperasse aquela firmeza. Mas logo o tom voltou ao normal.
— Essa casa tem regras. Espero que saiba segui-las.
— E eu espero que saiba tratá-la como um lar. Nem que seja só por um tempo.
Silêncio. Um duelo mudo entre dois mundos opostos. Ele, acostumado ao controle. Ela, determinada a não ser controlada.
O jogo tinha começado.
Clara terminou de limpar a cozinha e foi até o quartinho dos fundos, onde ficaria hospedada. Era pequeno, mas limpo. Simples, como tudo o que ela conhecia. Sentou-se na cama e soltou um suspiro. Estava ali há poucas horas e já sentia que aquele homem ia ser um problema.
Um problema... perigoso.
Mas o pior era admitir que havia algo nele que a atraía. Não só o físico — embora isso fosse inegável —, mas a maneira como ele a olhava, como se enxergasse mais do que devia. Como se soubesse que por trás daquela fachada desafiadora, existia uma garota cansada de lutar sozinha.
Ela não queria que ele visse isso.
---
Mais tarde, já escurecendo, Clara saiu para regar o jardim, tarefa simples que o senhor da casa insistira em manter na rotina dela. A água caía silenciosa sobre as flores quando ouviu novamente os passos. Sempre os passos dele.
— Não vai fugir toda vez que me ver, vai? — ele perguntou, encostando-se ao batente da porta. Estava de camiseta preta, braços cruzados, o olhar mais leve do que antes.
— Se eu fugisse, já estaria bem longe daqui — respondeu sem olhar pra ele.
— Então por que ficou? — A pergunta veio rápida, direta.
Clara parou de regar por um instante, mantendo os olhos nas flores.
— Porque eu preciso. E porque, diferente de você, eu não tenho o luxo de escolher.
Ele não respondeu. Só a observou em silêncio por alguns segundos, como se visse nela algo que nem ela mesma via.
Ela voltou a regar as flores, como se a conversa não tivesse acontecido. Mas por dentro, sentia o coração acelerar.
E ele também.
O dia foi longo. Clara passou horas entre limpezas, tarefas e silêncios cortantes. Rafael estava mais quieto do que o normal, o que só aumentava a tensão no ar. Quando os dois estavam no mesmo cômodo, era como se o ar pesasse — carregado de algo que nenhum dos dois ousava nomear.
Era quase noite quando ela foi até a varanda guardar umas almofadas. O céu estava tingido de laranja e lilás. Rafael apareceu do nada, como sempre fazia, encostado na parede, observando em silêncio.
— Você vive me seguindo ou é só mania de aparecer quando menos espero? — ela perguntou, sem encará-lo.
— Gosto de ver quando as pessoas não estão fingindo. E você... nunca finge. — A voz dele era baixa, quase rouca.
Clara virou-se devagar. Ele estava mais perto do que ela imaginava.
— Você não sabe nada sobre mim.
— Talvez eu queira saber.
O silêncio caiu entre os dois. Denso. Incômodo. Elétrico.
E então, antes que ela pudesse reagir, ele deu um passo à frente, segurou levemente seu rosto e a beijou. Um beijo firme, inesperado, carregado de tudo o que vinha sendo calado desde o primeiro olhar.
Clara ficou imóvel por um segundo — surpresa, confusa, tomada por um turbilhão de emoções.
Mas quando ele se afastou, ela ainda sentia os lábios queimando.
— Nunca mais faça isso sem a minha permissão — ela disse, tentando controlar a respiração.
Rafael sorriu de lado, sem culpa no olhar.
— Então me dá permissão da próxima vez.
Ela virou as costas, coração disparado, tentando fugir de si mesma.
Mas sabia, no fundo, que alguma coisa tinha mudado naquele instante.
E que não tinha mais volta.
Na manhã seguinte, Clara estava na cozinha, batendo as panelas com mais força do que o necessário. A raiva fervia por dentro. Não conseguia tirar o beijo da cabeça, mas o pior era lembrar da forma como ele a beijou — como se tivesse o direito.
Rafael entrou, como sempre sem pedir licença.
— Dormiu mal? — ele provocou, pegando uma maçã da fruteira.
Clara girou nos calcanhares, encarando-o com fogo nos olhos.
— Acha que pode simplesmente invadir o espaço de alguém e sair ileso? Acha que pode me beijar daquele jeito e tá tudo bem?
Ele deu de ombros, tranquilo, como se ela estivesse reclamando do tempo.
— Não ouvi você me empurrar.
— Você me pegou de surpresa, Rafael! — ela rebateu, voz mais alta. — Não significa que eu queria. Não significa que você pode!
Ele se aproximou, devagar, os olhos fixos nos dela.
— Você não sabe o que quer, Clara. Mas seu corpo sabe. — A frase veio baixa, certeira, como um golpe.
Ela estremeceu. De raiva. De algo mais.
— Você é insuportável.
— E você é viciada em se esconder atrás da raiva. Mas adivinha? Ainda assim, me olhou diferente depois daquele beijo.
---
[...]
Ela virou de costas, tentando retomar o controle. Sentia-se traída por si mesma, pelo coração que batia rápido demais, pela memória daquele toque ainda recente.
Ele se aproximou mais uma vez, mas dessa vez ela ergueu a mão, impedindo.
— Eu posso trabalhar aqui. Mas você vai manter distância. Eu não estou à venda, Rafael.
Ele assentiu, sério agora.
— Eu sei. Nunca pensei isso.
Clara o encarou, surpresa pela resposta inesperadamente honesta.
— Então por que fez aquilo?
— Porque você me tira do eixo. E eu não sou bom em esperar quando quero algo.
Ela não respondeu. Apenas pegou o pano da pia e começou a limpar algo que já estava limpo. Qualquer coisa pra desviar do olhar dele.
Mas ambos sabiam que aquela conversa estava longe de acabar.
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