Capítulo 1 – O Encontro
A chuva caía fina sobre os telhados de concreto da cidade, borrando as luzes dos postes e transformando a rua em um espelho molhado. Evelyn ajustou a alça da mochila enquanto caminhava pela calçada vazia, com a câmera pendurada no pescoço. Ela gostava da cidade assim, silenciosa, com uma estranha aura de abandono. Era quando capturava suas melhores imagens — aquelas que pareciam dizer algo que as pessoas preferiam esconder.
Ao dobrar uma esquina, ela viu as luzes vermelhas e azuis refletindo nas poças d’água. Polícia. Por instinto, aproximou-se. Um corpo coberto por um lençol branco jazia no beco estreito entre dois prédios comerciais. Ela ficou a uma distância respeitável, mas não resistiu e ergueu a câmera. Click. Click. Dois disparos silenciosos em meio ao murmúrio da cidade molhada.
— Não devia estar fotografando isso.
A voz surgiu logo atrás dela, firme e suave, com um sotaque imperceptível que sugeria poder. Evelyn virou-se rapidamente. O homem era alto, usava um terno escuro impecável, mesmo sob a chuva. Cabelos pretos penteados para trás, mandíbula forte e olhos tão escuros que pareciam engolir a luz. Ele a fitava como se já a conhecesse.
— É espaço público. — respondeu, tentando parecer confiante. — E eu sou fotógrafa. Registro o que vejo.
O homem sorriu, mas não havia calor no gesto.
— Você viu mais do que devia.
Ela franziu o cenho, desconfiada. O tom dele não era exatamente uma ameaça, mas também não era um simples comentário. Ele parecia saber algo que ela ainda não compreendia.
— E você é...? — ela perguntou, estreitando os olhos.
Ele hesitou por um segundo, então respondeu:
— Damian Costa. Trabalho com segurança privada. Você deveria ir pra casa. Esse tipo de cena pode atrair atenção indesejada.
Evelyn não sabia se era o terno caro, a maneira como ele falava, ou os olhos fixos nela como se pudessem decifrá-la por dentro... Mas algo nele despertava um alerta silencioso. Ainda assim, seu lado impulsivo falou mais alto.
— E o que você estava fazendo aqui antes da polícia chegar?
Por um momento, a expressão dele se fechou. Sutil, mas perceptível. Evelyn não era ingênua. Estava acostumada a ler rostos — um hábito adquirido após anos tentando entender a frieza do pai ausente e a mãe com segredos demais. Damian definitivamente escondia algo.
— Eu cuido de pessoas importantes. Uma das minhas clientes tem um consultório neste prédio. Vim checar se ela estava segura — ele respondeu, apontando para um letreiro apagado sobre a porta do prédio à direita.
Ela olhou, sem acreditar totalmente, mas também sem provas para contestar. Ainda assim, anotou mentalmente o nome: Damian Costa. Havia algo magnético nele. Algo que gritava perigo, mas também a atraía de um jeito irracional.
— Bom, se me desculpa, Damian, vou continuar minha caminhada — disse ela, dando as costas.
— Evelyn.
Ela parou. Não havia dito seu nome. Lentamente, virou-se de novo.
— Como sabe meu nome?
Damian deu meio sorriso, como se aquilo fosse a coisa mais normal do mundo.
— Fotógrafos talentosos como você costumam ser fáceis de encontrar online.
Mentira. Suas redes sociais eram privadas, e ela nunca divulgava onde andava. Um arrepio subiu pela espinha. Evelyn começou a andar mais rápido, sentindo o peso dos olhos dele cravados em suas costas. Mas não ousou olhar para trás.
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Na cobertura do edifício mais alto do centro financeiro, Damian observava a rua através da janela de vidro escurecido. O sistema de câmeras que ele mesmo instalara capturava cada ângulo do beco onde Evelyn havia passado. Ele apertou o botão de retroceder, pausando no exato momento em que ela olhava para a lente de sua câmera.
— Linda. Curiosa. Teimosa... — murmurou para si mesmo.
Havia algo em Evelyn que mexia com ele. Não era só atração — era instinto. Obsessão. Algo nele se acendia toda vez que a via. E agora que ela havia cruzado seu caminho, ele não pretendia deixá-la escapar.
No fundo da sala, uma parede inteira era coberta por recortes, fotografias e anotações. Evelyn já estava ali. Fotos antigas, tiradas à distância. Algumas dela rindo com amigas, outras distraída em cafés, e até mesmo dormindo perto da janela do próprio apartamento.
Ele tocou uma das imagens com os dedos, como se fosse frágil demais para ser real.
— Agora você me viu, Evelyn. Isso muda tudo.
Lá fora, a chuva apertava. E o jogo havia começado.
Capítulo 2 – Ele Observa
A noite caiu como um véu pesado sobre a cidade, mas para Damian, era apenas o início. Ele não dormia como as pessoas comuns — não precisava. O mundo era mais claro para ele nas sombras, onde os segredos respiravam e os olhos distraídos não enxergavam nada além da superfície.
Evelyn dormia.
Ele a via pela lente da câmera instalada do lado de fora da janela do quarto. A respiração lenta. O corpo encolhido sob o cobertor. Mesmo inconsciente, ela parecia inquieta, como se algo dentro dela soubesse que estava sendo observada. Era a beleza da intuição feminina — selvagem, sensível... e inútil contra alguém como ele.
Damian não era apenas um observador. Era um predador.
Pegou o copo de uísque e girou o líquido âmbar devagar. Na outra tela, analisava os arquivos do telefone de Evelyn, clonado há três dias quando esbarrou nela no café da esquina. Havia mensagens com a mãe, com uma amiga chamada Clara, alguns contatos de trabalho — nada demais. Nenhum namorado. Nenhum amante. Só uma Evelyn solitária, mesmo cercada de gente.
— Isso facilita as coisas... — murmurou.
Ela não tinha ideia do que havia começado naquele beco. Quando levantou a câmera e tirou aquela foto do corpo, Evelyn se tornou um risco. Um risco... e uma obsessão. Ele devia tê-la afastado. Ameaçado. Talvez até eliminado. Mas algo o impediu.
Ela era diferente. E ele queria descobrir o porquê.
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Na manhã seguinte, Evelyn acordou com a sensação de estar sendo vigiada. Um aperto no estômago, como se alguém tivesse invadido seu espaço enquanto dormia. Ignorou o impulso de verificar trancas e câmeras — paranoia era comum depois de presenciar cenas de crime, dizia a si mesma. Levantou, tomou café e decidiu esquecer Damian Costa.
Ele era bonito. Inquietante. Provavelmente um mentiroso perigoso. Mas também... magnético. Evelyn odiava admitir isso, mas o rosto dele voltava à mente mais vezes do que gostaria.
Pegou a câmera e saiu. Precisava respirar, se perder nas ruas da cidade e esquecer o olhar sombrio que a seguiu a noite toda em seus sonhos.
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Damian a observava de longe, dentro de um carro preto com vidros escuros. Viu quando ela saiu do prédio. Sabia para onde ia — mapeou os trajetos preferidos, os cafés que frequentava, as ruas que amava fotografar.
Ela se sentia livre.
E isso o incomodava.
Ele digitou algo em seu celular. Um comando. Um aviso.
Do outro lado da cidade, um homem recebeu a mensagem. Pegou a mochila, abriu o zíper e conferiu a lâmina prateada.
— Sombra ativa. Alvo: aproximação controlada. Nada de contato direto — dizia o texto.
Damian não podia estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Mas tinha olhos por toda parte.
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Evelyn caminhava perto de um prédio abandonado, onde a fachada grafitada criava um contraste perfeito com o céu cinzento. Era o tipo de lugar que ela adorava fotografar. Margens da cidade, beleza esquecida.
Ela tirou algumas fotos, depois parou para revisar as imagens no visor. Estava tão concentrada que não percebeu o vulto atrás dela.
— Bonito, né? — disse uma voz grave, repentina.
Ela se virou bruscamente, o coração acelerado. Um homem baixo, de capuz e olhos fundos a encarava.
— É um prédio, só isso — respondeu seca, tentando manter a calma.
— Mas você viu algo a mais, né? Como na outra noite... no beco.
Ela congelou.
— O que você sabe sobre aquilo?
— O suficiente pra dizer que você devia ficar de boca fechada.
Antes que ela pudesse responder, o homem virou-se e desapareceu na sombra do beco.
Evelyn ficou parada ali por um tempo, o sangue pulsando nas têmporas. Aquilo não era paranoia. Alguém a estava vigiando. E sabia.
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Damian assistiu tudo. Quando o homem se afastou, ele apertou outro botão. No ponto cego da câmera, longe de Evelyn, um segundo homem surgiu. Seguiu o primeiro pela rua lateral.
Seria o último dia dele.
Ninguém assustava Evelyn. Não sem consequência.
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De volta ao estúdio improvisado, Damian imprimiu uma foto recente dela: Evelyn em frente ao prédio grafitado, cabelos soltos ao vento, olhar atento para a cidade como se fosse dona dela.
Ele colou a foto na parede. Era a número 31.
— Você ainda não entende, Evelyn... mas já é minha.
Capítulo 3 – Primeiro Contato
O som do obturador da câmera cortava o silêncio do velho galpão abandonado como uma lâmina. Evelyn se movia entre os feixes de luz que atravessavam as janelas quebradas, capturando a decadência dos escombros com uma precisão quase poética. Ali, onde a poeira encontrava a sombra, ela se sentia viva.
A cidade era cruel com os sensíveis. Mas ela aprendera a encontrar beleza até no lixo.
Terminou de fotografar e se sentou no chão de concreto. Abriu a garrafa d’água e, ao olhar ao redor, teve aquela sensação de novo. O arrepio silencioso na nuca. A presença invisível.
Respirou fundo e riu de si mesma. Estava ficando paranoica. Talvez fosse o efeito da ameaça do dia anterior. Talvez ainda estivesse com a imagem de Damian na cabeça.
Damian. Aquele nome agora parecia preso nela como uma tatuagem mal feita — impossível de apagar.
Ela não percebeu quando ele entrou. Os passos dele eram suaves demais para ecoar. Quando finalmente olhou para cima, ele já estava ali. De pé, entre as sombras, como se fizesse parte da estrutura do lugar.
— Você tem o estranho hábito de aparecer sem ser convidado — disse, levantando-se lentamente.
— E você tem o estranho hábito de ignorar avisos — respondeu ele, a voz tão calma que soava ameaçadora.
Evelyn cruzou os braços.
— Como me encontrou?
Ele deu de ombros, como se a resposta fosse óbvia.
— Eu observo. Você se destaca. É como uma lâmpada em um quarto escuro.
Ela riu, cínica.
— Bonita analogia. Quase poética, vindo de alguém que anda com assassinos.
Damian se aproximou. Um passo de cada vez, sem pressa. Havia algo na maneira como ele se movia — o controle absoluto, como um predador que sabe que a presa não vai fugir.
— Quem disse que eu ando com eles?
— E o que você é, então?
— Aquilo que ninguém vê. Aquilo que remove as peças do tabuleiro antes que o jogo acabe.
Ela sentiu o ar ficar mais pesado. A tensão entre os dois era densa, elétrica. Parte dela queria recuar. A outra... queria entender. Queria mais.
— E por que eu? — perguntou, num tom quase sussurrado. — Por que está me seguindo?
Ele chegou perto o suficiente para que ela sentisse o perfume dele — sutil, caro, amadeirado. Os olhos negros encararam os dela com uma intensidade que a fez perder o fôlego por um segundo.
— Porque você não tem medo de olhar. A maioria das pessoas fecha os olhos quando vê sangue. Você... registra.
— E isso te atrai?
— Isso me fascina.
Evelyn sentiu o coração acelerar. Ele era perigoso. Isso estava claro. Mas também era hipnotizante. A mistura perfeita entre o charme e o abismo.
Ela desviou o olhar.
— Eu não sou como você pensa.
— Não? — ele perguntou, inclinando o rosto. — Então me diga: por que tirou aquelas fotos? Por que voltou ao beco dois dias depois, mesmo sabendo que algo estava errado?
Ela o olhou, surpresa.
— Você estava lá?
Ele não respondeu. Apenas a observava. Aquilo dizia mais do que qualquer palavra.
— Está me vigiando?
— Estou te conhecendo.
— Invadindo meu espaço, minha vida...
— Protegendo você — ele interrompeu, firme. — Você não sabe o que tem por trás daquele corpo no beco. Não sabe o que viu. Mas eles sabem. E vão voltar.
Evelyn recuou meio passo. A expressão dele estava diferente agora. Não era sedução. Era fúria contida. Preocupação real.
— Quem são "eles"?
Damian se aproximou ainda mais. Agora, a centímetros do rosto dela.
— Homens que fazem o que for preciso para manter segredos enterrados. Eu costumava ser um deles.
A frase caiu como uma bomba.
— E o que te tirou de lá?
Ele hesitou.
— Uma escolha errada. E agora eu estou pagando por ela.
Ela queria perguntar mais, mas sentiu que, se forçasse, ele recuaria. A conexão entre eles era frágil, perigosa como um fio desencapado. E Evelyn, contra toda lógica, queria manter o contato.
— Eu devia ir — disse ela, finalmente.
Ele assentiu com a cabeça, mas não se afastou.
— Cuidado com quem fala. Com onde anda. Com o que posta.
— Você fala como se eu estivesse marcada.
— Porque está.
Ela mordeu o lábio inferior, tentando controlar a respiração.
— E você? Vai continuar me vigiando?
Damian não respondeu de imediato. Quando o fez, foi num tom baixo, quase íntimo:
— Não vou deixar que toquem em você. Nem que você queira.
Evelyn sentiu um frio no estômago. Havia algo naquela frase que parecia mais uma promessa do que uma proteção. Como se ela já tivesse sido escolhida. Como se fugir não fosse uma opção.
Damian tocou o rosto dela, de leve. Apenas um toque com o dorso dos dedos, mas foi suficiente para arrepiar sua pele inteira.
— Até logo, Evelyn.
E então, como surgido das sombras, ele desapareceu por elas.
Ela ficou ali, sozinha entre as paredes úmidas, com a respiração descompassada e o coração disparado. A câmera pendurada em seu pescoço agora parecia um objeto sem sentido. Pela primeira vez em muito tempo, Evelyn não quis registrar nada.
Queria esquecer que havia sentido algo ao ser tocada por um homem que talvez fosse um assassino. Ou algo pior.
Mas não conseguiria.
E ela sabia disso.
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