O rio era uma criatura viva.
Respirava suavemente nas manhãs de neblina, soltando vapor branco que dançava acima das águas calmas. À noite, quando as estrelas se deitavam sobre ele, o rio sussurrava segredos antigos, histórias esquecidas que corriam pelo leito como fantasmas brincalhões. As palafitas, frágeis construções de madeira sobre a água, rangiam baixinho, embaladas pelo vai-e-vem preguiçoso da correnteza. Era ali, numa curva esquecida do Amazonas, onde o mundo parecia parar, que Anaí cresceu — com os pés descalços, a pele dourada pelo sol inclemente e o cabelo longo, perfumado pela flor da vitória-régia.
Anaí conhecia o rio como quem conhece a própria respiração. Sabia onde o boto-cor-de-rosa surgia nas manhãs de agosto, onde a água ficava traiçoeira e funda, e onde as ariranhas se escondiam para brincar longe dos olhos curiosos. Seu coração batia no mesmo compasso da natureza: plantar, pescar, colher, rezar e agradecer. E era nesse ritmo de marés e cantigas antigas que, sem perceber, Anaí começou a sentir algo novo brotar em seu peito — um sentimento estranho, quente e inquieto.
Esse sentimento tinha nome e sorriso: Caetano.
Caetano era o menino dos olhos escuros e do riso fácil, filho de uma família de pescadores rivais da de Anaí. Embora navegassem as mesmas águas, corressem pelas mesmas trilhas na mata e vivessem sob o mesmo céu estrelado, Caetano parecia pertencer a um mundo que Anaí só conseguia tocar em sonho — um mundo livre, audacioso, e perigosamente encantador.
O primeiro encontro entre eles foi tão inesperado quanto inevitável.
Em uma tarde úmida, Anaí desceu até um igarapé escondido, debaixo da sombra das sumaúmas, para colher açaí. Carregava um cesto trançado de palha, equilibrando-se entre as raízes escorregadias, quando a lama traiçoeira a fez escorregar. O cesto rolou pelo chão, espalhando frutos roxos como contas de um rosário desfeito.
Caetano surgiu como se tivesse sido chamado pela floresta — silencioso, sorridente, o olhar brilhando de diversão.
— Precisa de ajuda, moça do açaizal? — perguntou, misturando provocação e gentileza na voz.
Anaí, ainda ofegante e vermelha de vergonha, aceitou a mão que ele estendeu. Foi nesse breve toque, simples e acidental, que o rio murmurou algo para os seus corações — talvez um aviso, talvez uma promessa.
Depois daquele dia, como se o destino tivesse acordado de um longo sono, começaram a se encontrar nos cantos esquecidos da vila — entre sacos de farinha nos mercados, entre redes penduradas nos barcos atracados, sob os estandartes coloridos das festas de Santo Antônio. Cada encontro parecia bordado pela mão invisível da mata.
Mas naquela terra onde a água era bênção e maldição, onde o amor podia florescer ou se afogar, o sentimento entre Anaí e Caetano era tão perigoso quanto atravessar um rio infestado de cobras e redemoinhos. As famílias, separadas por velhas histórias de desconfiança e disputas de pesca, viam qualquer aproximação entre eles como uma traição imperdoável.
Mesmo assim, como o rio que, depois da cheia, transborda e leva tudo em seu caminho, o amor nasceu. E nada, nem a força das águas, seria capaz de contê-lo.
O amor de Anaí e Caetano floresceu como uma árvore esquecida no coração da mata, crescendo em silêncio, longe dos olhos e julgamentos do mundo. Suas raízes eram profundas, firmes, e, a cada encontro clandestino, seus sentimentos se fortaleciam ainda mais, como uma promessa feita aos espíritos do rio. Eles sabiam, no fundo da alma, que estavam desafiando algo muito maior do que eles mesmos — tradições antigas, medos antigos — mas nem o medo conseguiu impedir que o amor crescesse.
À noite, deitada em sua rede de palha, Anaí ouvia os sons vivos da floresta ao redor. O coaxar dos sapos, o farfalhar das folhas, o bater invisível das asas dos morcegos misturavam-se ao murmúrio do vento e ao ronco distante dos trovões. Fechando os olhos, ela via o sorriso torto de Caetano, seus olhos escuros como o fundo misterioso do igarapé. Era nele que seus pensamentos naufragavam antes de adormecer.
O primeiro beijo deles aconteceu durante a festa de boi-bumbá, uma celebração de cor, música e vida que incendiava o vilarejo à beira do rio. As tochas de andiroba iluminavam o chão batido, e as famílias dançavam ao ritmo frenético dos tambores. No meio da multidão, Anaí e Caetano se encontraram, como se tudo ao redor desaparecesse. Sob a luz trêmula e amarela, ele a puxou com suavidade para um canto escondido, longe dos olhos atentos. Com a timidez de quem sabe o risco que corre, Caetano roçou os lábios nos dela.
— A gente vai ser castigado, Anaí — ele sussurrou, encostando a testa na dela.
— Já tá sendo... — ela respondeu, sorrindo com tristeza, sentindo o peso do mundo nas costas.
Naquela noite, o rio parecia cantar mais alto, como se avisasse ou chorasse.
Mas o segredo deles não ficou guardado por muito tempo. Alguns dias depois, um pescador de língua afiada e coração oco os viu trocando olhares na feira e espalhou a notícia como vento atiçando fogo em capoeira seca.
O pai de Anaí, um homem feito de orgulho e raiva, soube antes que o sol se pusesse. Quando Anaí voltou da beira do rio, encontrou-o de pé na varanda da palafita, braços cruzados, o rosto fechado como pedra.
— Nunca mais quero ver você perto daquele moleque de família amaldiçoada! — ele vociferou, a voz dura como o tronco da sumaúma.
Anaí não respondeu. Engoliu as lágrimas que ardiam nos olhos, tentando segurar a enchente com as mãos vazias. Sabia que qualquer palavra seria inútil. Para eles, o amor dela era uma doença vergonhosa, um veneno prestes a contaminar toda a aldeia.
Mas o coração tem caminhos que nem o curso do rio pode desviar.
E naquela mesma noite, sob o manto cúmplice da floresta, Anaí e Caetano se encontraram novamente, no igarapé escondido entre árvores tão antigas quanto o tempo.
— A gente foge — Caetano disse, com uma coragem que tremia na voz. — Amanhã, antes do sol nascer. Eu juro.
Anaí olhou para ele, para o reflexo da lua partida nas águas negras, e soube: ficar era morrer aos poucos; fugir era arriscar a vida inteira. Mas, ao menos, morreria por amor.
O plano estava traçado.
No entanto, a Amazônia, com seus mistérios antigos e suas vontades próprias, ainda reservava outros caminhos para eles.
A madrugada desceu pesada sobre o rio, envolvendo a floresta em um manto denso de silêncio. Nem mesmo os sapos ou os grilos ousavam quebrar a tensão suspensa no ar. Era como se toda a mata estivesse prendendo a respiração, consciente do que estava prestes a acontecer.
Anaí arrumou suas poucas coisas com gestos lentos e cuidadosos. Um vestido leve, um pedaço de pão de macaxeira embrulhado em folha de bananeira, a velha fita vermelha que a mãe lhe dera quando ainda era uma menina. Tudo o que possuía e tudo o que era cabia dentro de uma pequena sacola de palha trançada pelas mulheres da vila.
Antes de sair, ela olhou uma última vez para a palafita que fora seu lar. Ali aprendera a ouvir as canções do vento, a respeitar a força do rio e a conversar com as árvores em noites de lua cheia.
Seu peito apertou. Deixava para trás mais do que madeira e barro — deixava memórias, sonhos e a menina que jamais voltaria a ser.
No velho igarapé dos botos, Caetano a esperava. O pequeno barco de madeira flutuava suavemente, já livre das amarras. Ele segurava o remo com firmeza, mas era seu olhar que dizia tudo. Brilhava não apenas de alegria ao vê-la, mas de promessa. De esperança.
— Tá pronta, Anaí? — ele sussurrou, estendendo a mão para ela.
Anaí não respondeu com palavras. O calor de seus dedos entrelaçando os dele foi resposta suficiente.
Ela pisou na borda do barco, o coração pulsando descompassado, quando um estampido quebrou a serenidade da noite.
De repente, sombras saíram de entre as árvores, carregando tochas que iluminavam rostos tensos e olhos furiosos.
— Fugindo como dois ladrões, é? — a voz do pai de Anaí cortou o ar, tão afiada quanto um facão.
O mundo ao redor pareceu girar em círculos. Caetano instintivamente se colocou na frente dela, tentando protegê-la. Mas dois homens fortes o agarraram pelos braços, imobilizando-o. Ele lutou, esperneou, rugiu como uma onça acuada, mas era jovem demais, leve demais para enfrentar tantos.
— Soltem ele! — Anaí gritou, a garganta rasgando de desespero.
— Esse moleque vai aprender a respeitar! — berrou o pai, avançando com punhos cerrados.
Antes que Anaí pudesse impedir, Caetano foi atingido por um soco tão forte que caiu de costas na lama.
No meio da confusão, uma voz, cheia de rancor antigo, acusou Caetano de ter roubado mantimentos da comunidade. Uma mentira venenosa, plantada para justificar o castigo brutal que se seguiria.
Sem chance de defesa, sem sequer um olhar de misericórdia, Caetano foi amarrado e levado como um criminoso.
Anaí tentou correr atrás dele, gritando seu nome, mas mãos duras a seguraram. Seu grito ecoou pela mata, cortando a noite em duas.
— Caetano!
A resposta veio apenas no olhar dele, um olhar que misturava dor, medo e promessas que jamais se cumpririam.
Naquela madrugada, o rio não cantou.
O rio, como Anaí, apenas chorou.
E o amor que deveria ter sido livre como as grandes canoas das festas ribeirinhas foi tragado para sempre por um redemoinho de injustiça e medo
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