NovelToon NovelToon

Vermelho Clandestino

Asas Douradas

Capítulo 1 – Asas Douradas

Estela

"Não esqueça de sorrir, querida. Ninguém gosta de uma princesa entediada."

A voz da minha madrasta ecoava na memória enquanto eu descia as escadas principais da mansão, os degraus de mármore refletindo o brilho dos lustres. O vestido vermelho parecia gritar contra o dourado do salão. Exatamente como eu queria.

No salão, o perfume era uma mistura de dinheiro, champanhe e mentiras. Cada convidado parecia mais falso que o anterior, todos tentando adivinhar quem ia trair quem primeiro.

— Estela! — chamou minha madrasta, Antonella, se aproximando com um sorriso ensaiado. — Você está um escândalo, meu bem.

— Obrigada, Antonella. — sorri com doçura venenosa. — E você está... conservada.

Ela piscou, e eu fui embora antes que respondesse. Meu pai observava tudo do topo da escada, um deus entre homens, com o copo de uísque em uma mão e o controle do mundo na outra.

Eu não queria estar ali. E ainda assim, ali estava eu, rainha de um tabuleiro que nunca escolhi jogar.

Foi quando vi ele.

Alto. Paletó escuro. Um sorriso preguiçoso. E olhos que não pertenciam a ninguém dali.

Ele me olhou como se tivesse me visto despida. Mas não do vestido. Da armadura.

E andou até mim.

— Não me diga que alguém tão linda quanto você está entediada em sua própria festa. — a voz dele era baixa, rouca, como se risse de tudo.

— E não me diga que você é mais um dos convidados que acha que pode dizer qualquer coisa só porque veste um terno bem cortado.

— Posso dizer que seu vestido parece perigoso?

— Só se eu puder dizer que sua presença parece fora de lugar.

Ele sorriu.

— Leonardo Arantes — estendeu a mão.

— Estela Mancini — respondi, aceitando o toque. Mãos firmes. Mas frias.

— Mancini? — ele fingiu surpresa. — Ah... a anfitriã da noite.

— A boneca da vitrine, você quis dizer?

— Bonecas não olham desse jeito.

Arqueei uma sobrancelha.

— Que jeito?

— Como se estivessem à beira de quebrar... ou matar alguém.

Engoli em seco. Ele era perigoso. E isso me atraía mais do que deveria.

Vicente

Ela era tudo o que diziam — e nada do que esperavam.

Estela Mancini tinha o tipo de beleza que vinha com facas escondidas. E eu gostava disso. Gostava demais para o meu próprio bem.

Ela me estudava como um livro trancado. Não com a vaidade de quem espera ser desejada, mas com a cautela de quem aprendeu a não confiar em ninguém.

— Nunca ouvi falar de você — disse ela, erguendo uma taça de champanhe.

— Isso é bom ou ruim?

— Ainda estou decidindo.

— Talvez eu devesse me esforçar mais.

— Talvez devesse ir embora enquanto ainda pode — ela disse, olhando por cima do ombro discretamente. — Meu pai está observando.

Eu virei um pouco para o lado. Lá estava ele. Arturo Mancini. O homem que destruiu minha família.

— Que sorte a minha — sorri. — Mal cheguei e já estou sendo notado pelo rei.

— Meu pai não gosta de surpresas.

— E você?

— Eu... — ela hesitou. — Eu gosto de coisas reais. E reais são perigosas aqui dentro.

— Então talvez você devesse fugir comigo — brinquei.

Ela sorriu pela primeira vez. Um sorriso triste.

— Se eu fugir... eles me acham.

Silêncio.

O tipo de silêncio que grita. O que diz mais do que qualquer frase. E então ela se inclinou ligeiramente.

— Me encontre no jardim dos lírios. Dez minutos.

— E se eu não for?

— Você vai — ela disse, virando as costas. — Homens como você sempre vão.

E, diabos, ela estava certa.

Tudo que Floresce sangra

Capítulo 2 – Tudo que floresce sangra

Estela

O mundo parecia mais silencioso no jardim dos lírios. O som abafado da festa se distanciava a cada passo, como se estivesse me afundando em outra realidade. O vestido colava na minha pele por causa da umidade do ar, e meus pés descalços sentiam a grama fria como se fosse uma promessa.

Ele estava lá. Encostado na coluna de ferro do gazebo, com as mãos nos bolsos e o olhar escuro cravado no nada. Um cigarro esquecido entre os dedos e a quietude de quem carrega o caos por dentro.

Quando me viu, não sorriu. Apenas observou.

— Pensei que não viesse — murmurei, parando a poucos passos.

— E perder isso? — ele apontou com o queixo para mim. — Seria burrice.

— Você tem um jeito estranho de elogiar.

— E você tem um jeito perigoso de existir.

O silêncio caiu entre nós por alguns segundos. A luz tênue iluminava o contorno dos seus ombros, e por um momento, ele parecia uma sombra que ganhou carne.

— Por que está aqui, Vicente?

— Você me chamou.

— Sabe que não foi isso que perguntei.

Ele deu uma tragada, os olhos ainda em mim.

— Às vezes, a gente se aproxima da morte só pra lembrar que está vivo.

— Você se acha a morte?

— Não. Eu me aproximo dela todos os dias. Você... você é outra coisa.

— O quê?

— Você é o tipo de ferida que a gente quer manter aberta.

A frase cortou mais fundo do que eu esperava. Me aproximei devagar, o perfume dos lírios nos envolvendo como uma cortina de fumaça.

— Eu deveria te odiar — sussurrei.

— Por quê?

— Porque você me olha como se soubesse quem eu sou de verdade. E isso me apavora.

— Eu te olho assim porque você está pedindo para ser vista.

A respiração prendeu na garganta. E antes que eu pensasse, ele jogou o cigarro no chão e avançou um passo. Estávamos a poucos centímetros. Meus batimentos estavam fora de controle.

— Se me beijar, não vai conseguir parar — avisei.

Ele sorriu de canto.

— Eu nunca fui bom com limites.

E então, o beijo aconteceu. Feroz, urgente, quebrado. Como se não houvesse tempo. Como se aquilo fosse a única chance.

Vicente

O gosto dela era amargo e doce ao mesmo tempo, como vinho envelhecido demais. Minhas mãos escorregaram pela cintura estreita e pousaram na base das costas, onde o vestido terminava. Estela Mancini não era feita para ser tocada — mas eu toquei mesmo assim.

Foi ela quem se afastou primeiro, arfando, os olhos arregalados.

— Não posso...

— Eu sei — respondi, a voz falha.

— Meu pai...

— Ele vai descobrir.

Ela assentiu. E mesmo assim, deu mais um passo em minha direção, colando os lábios nos meus outra vez.

Parte 2 –

Vicente

Ela me beijava como quem implorava por um pouco de liberdade, como se cada toque nos lábios fosse uma confissão muda: “me salva, mesmo que me destrua”. E por algum motivo, eu queria exatamente isso.

Quando ela recuou de novo, ainda respirando com dificuldade, vi um brilho diferente nos olhos dela. Não era paixão. Era medo.

— Você é problema, Vicente.

— E você é a solução que vai me matar — respondi, sem pensar.

Ela sorriu, mas havia algo de quebrado naquele sorriso.

— Você fala como se estivesse me estudando.

— Porque estou.

Silêncio.

Ela recuou um passo, os braços envolvendo o próprio corpo como se quisesse impedir que algo escapasse de dentro.

— Eu deveria voltar. Se alguém sentir minha falta...

— Seu pai vai suspeitar?

— Meu pai já suspeita de tudo. Ele não precisa de provas, só de instinto.

— E o que seu instinto diz sobre mim?

Ela hesitou.

— Que você não é só um estranho com olhos de tempestade.

— Não sou.

— Então o que é?

Minha mandíbula enrijeceu. Não era o momento. Ainda não. Mas eu sabia que precisaria contar. Em algum ponto, ela descobriria que eu não estava ali por acaso.

— Alguém que carrega mais fantasmas do que deveria.

Ela respirou fundo.

— Eu também.

— Estela...

— Não me diga que isso é errado. Eu sei. Eu fui criada nesse tipo de mundo, Vicente. Um mundo onde o amor é uma sentença e a liberdade uma piada de mau gosto.

— Eu não queria me envolver com você.

— Mas já estamos envolvidos.

Ela disse aquilo com um olhar tão seguro, tão amargo e ao mesmo tempo rendido, que doeu.

E então, como se um feitiço fosse quebrado, ouvimos passos. Vozes. Dois seguranças riam do outro lado do jardim, fazendo ronda. Estela se virou depressa, os olhos arregalados.

— Preciso ir agora.

— Amanhã.

— O quê?

— Amanhã, no teatro abandonado da Rua Rossi. Às dez da noite.

— Vicente...

— Confia em mim.

Ela mordeu o lábio, e por um segundo, achei que recusaria. Mas então assentiu.

— Se eu não for, é porque meu pai soube.

Ela se afastou correndo, desaparecendo entre os arbustos e sombras.

Eu fiquei ali. Sozinho. Sentindo o gosto do perigo se misturar ao desejo.

E pela primeira vez desde que planejei me infiltrar naquele império amaldiçoado chamado Família Mancini, percebi que estava afundando. Rápido demais.

Parte 3 –

Vicente

O teatro da Rua Rossi estava morto há anos. Teto desabando, paredes descascadas, cheiro de mofo e abandono. Um lugar perfeito para encontros clandestinos. Um lugar onde fantasmas se sentiam em casa. Inclusive os meus.

Acordei naquela manhã com um gosto amargo na boca. Não era só o beijo de Estela. Era culpa. Raiva. Medo. Sentimentos que nunca fizeram parte do plano.

Puxei do bolso interno da jaqueta a foto dobrada — aquela que me lembrava todos os dias por que estava ali. Na imagem: minha irmã, Lara. Dezessete anos, olhos doces demais pro mundo em que nasceu. E morta antes dos dezoito.

— Mancini — murmurei, o nome queimando na língua como veneno.

Ela morreu por causa deles. Foi usada, descartada, enterrada com uma nota falsa de suicídio. E ninguém investigou. Ninguém se importou. Mas eu descobri. Eu vi o que ela deixou escondido. Os nomes. As mensagens. As fotos. Tudo apontava para Arturo Mancini e seus “negócios de fachada”.

Me infiltrar como segurança foi fácil. Eles contratavam mercenários, não investigavam muito — confiavam demais no próprio poder. Foi questão de tempo até eu ganhar acesso à casa.

Mas eu não contava com ela.

Estela.

A filha que parecia viver presa numa gaiola de ouro. A herdeira que tinha o rosto da minha dor e o perfume dos meus sonhos mais perigosos.

Eu devia usá-la. Me aproximar. Descobrir segredos. Enfraquecer a família por dentro.

Mas eu a beijei.

E agora tudo começava a desmoronar.

---

Estela

Me tranquei no quarto como fazia desde menina, quando a voz do meu pai ecoava pela casa como uma tempestade prestes a cair. Mas naquela noite, eu não tinha medo dele. Tinha medo de mim.

O espelho me encarava. Lábios inchados. Olhos brilhando. O vestido ainda com o cheiro do jardim.

Eu devia odiar o que aconteceu. Devia apagar aquilo da memória. Mas...

— Maldição — sussurrei para mim mesma. — O que eu fiz?

Meu celular vibrou. Uma mensagem de número desconhecido.

"Amanhã. 22h. Rua Rossi, nº 13. Se quiser saber quem você realmente é."

Vicente.

Deitada, encarei o teto até o sono me engolir.

E sonhei com lírios manchados de sangue.

Parte 4 –

Estela

A noite caiu com um gosto de ferro na língua. Vesti um casaco escuro por cima da roupa e prendi o cabelo num coque malfeito. Se alguém me visse sair da mansão, acharia que eu estava indo comprar veneno — e não estaria totalmente errado.

Rua Rossi, nº 13.

Era um lugar onde a cidade esquecia de existir. O teatro era uma carcaça, um sussurro do que já foi beleza. Um dia, aquele palco recebeu música, poesia e arte. Hoje, só abrigava rachaduras e o eco de tragédias esquecidas.

Ele estava lá. Sentado no meio das poltronas cobertas de poeira, como se esperasse pelo início do espetáculo.

— Está atrasada — disse sem me olhar.

— Achei que você não viria — retruquei.

— Achei que você não sobreviveria a si mesma.

Me aproximei, sentando a uma cadeira de distância.

— E então? Vai me contar por que estou aqui?

Ele tirou algo do bolso. Uma foto. Me entregou com o cuidado de quem oferece uma arma carregada.

Na imagem, uma garota jovem. Rosto delicado, olhos como os dele. Sorria, mas havia um vazio escondido ali.

— Ela se chamava Lara.

— Irmã?

Ele assentiu.

— Foi levada. Usada. Depois... apagada.

— Quem?

A resposta veio como um tiro mudo.

— Seu pai.

Meu estômago revirou. Mas não recuei. Só encarei a imagem por mais um segundo, depois olhei nos olhos de Vicente.

— Você tem provas?

— Tenho o bastante pra derrubar metade do império dele. Só me falta uma peça.

— Eu?

— Você.

Pausa.

— Quer que eu o traia?

— Quero que descubra quem você realmente é.

Ele estava sério. Os olhos queimando. Mas havia algo mais ali — um cansaço que parecia maior do que ele.

— E o que acontece se eu me recusar?

— Eu vou continuar. Com ou sem você.

Silêncio. Só o barulho do vento lá fora, assoviando por entre os vidros quebrados.

— Você deveria me odiar — sussurrei.

— Eu odeio.

— Então por que me beijou?

— Porque odeio o que você representa. Mas amo o que você tenta esconder.

Não consegui responder. Só fiquei ali, parada, ouvindo meu próprio coração dizer coisas que eu não queria escutar.

Então ele se levantou e caminhou até mim. Devagar. Parou a centímetros.

— Eu vou derrubar seu pai, Estela. Mas não quero derrubar você junto.

— E se eu cair por conta própria?

— Aí eu te seguro. Ou caio com você.

Quando ele tocou meu rosto, eu fechei os olhos.

E deixei.

Parte 5 –

Estela

O toque dele era quente, mas havia algo gelado por baixo. Como se ele lutasse contra si mesmo toda vez que me tocava. E eu entendi. Porque sentia o mesmo.

Ele passou o polegar pelo meu lábio inferior. Um gesto pequeno. Mas me quebrou inteira.

— Você tem noção do que está fazendo? — sussurrei.

— Não. Mas isso nunca me impediu antes.

O beijo veio como um acidente. Intenso. Desesperado. As mãos dele desceram pelo meu pescoço, pela minha cintura. A boca encontrou a curva do meu ombro exposto. Meus dedos agarraram a gola da jaqueta dele com força, como se precisasse de algo pra não desmoronar.

— Vicente... — minha voz falhou.

Ele encostou a testa na minha.

— Me diz que é mentira. Que você não sente isso.

— Eu queria.

— Mas não consegue, né?

Neguei com a cabeça, os olhos ardendo.

— Isso vai nos matar — murmurei.

— Então que seja bonito.

Ficamos ali, por minutos que pareciam dias. O mundo inteiro fora do teatro deixou de existir.

Até que um estalo nos fez congelar.

Vicente ergueu os olhos, atento. Alguém tinha pisado em vidro quebrado. Muito perto.

— Tem alguém aqui — ele murmurou.

Meu coração disparou.

Ele puxou uma faca curta de dentro da bota. A lâmina era fina, profissional. Eu nem sabia que ele carregava aquilo.

— Fica atrás de mim — ordenou.

Nos movemos em silêncio pelas poltronas, com os olhos atentos a qualquer movimento. A tensão era como um fio esticado demais — prestes a arrebentar.

— Deve ser alguém do seu pai — disse ele em voz baixa.

— Não. Meu pai não manda seguidor. Ele manda bala.

— Ótimo. Melhor ainda.

Um vulto correu ao fundo. Vicente lançou a faca — um reflexo de quem já fez isso antes. Mas o vulto sumiu.

— Rápido demais — murmurou. — Quem quer que seja, não estava tentando nos matar. Estava nos vigiando.

— E agora sabe.

— Que nós estamos juntos. Merda.

Ele se virou pra mim, os olhos sombrios.

— Você precisa voltar pra casa agora. Finja que nada aconteceu. Se perguntarem onde esteve...

— Eu minto. Eu aprendi com os melhores.

Ele hesitou.

— Você confia em mim?

— Não.

— Ótimo. Continue assim.

Ele me acompanhou até o beco lateral e esperou até me ver dentro do carro. Quando olhei pelo espelho, ele ainda estava parado no escuro, como uma maldição silenciosa.

E eu soube: nada mais seria seguro.

Parte 6 –

Estela

Voltei pra casa antes da meia-noite. Minhas mãos ainda tremiam quando entrei pela porta lateral da mansão. O relógio do corredor parecia mais alto do que o normal, cada tique soando como um grito abafado.

A governanta me viu subir as escadas, mas não disse nada. Ela sabia quando fechar os olhos.

No meu quarto, tranquei a porta. Só então me permiti respirar fundo.

O espelho refletia uma versão de mim que eu não reconhecia. Olhos dilatados. Cabelos soltos. Boca ainda sensível. Eu parecia alguém que estava prestes a fugir. Ou a explodir.

Toquei o vidro, como se pudesse atravessá-lo.

Foi então que vi.

No canto do espelho, quase invisível, uma câmera minúscula estava colada. Um ponto escuro, escondido na moldura esculpida.

Arregalei os olhos.

— Não... não...

Corri até o banheiro. Revirei os azulejos com as mãos. Outra câmera, camuflada entre as plantas falsas. No closet, entre as prateleiras. Sob a penteadeira.

Três.

Três câmeras dentro do meu quarto.

Senti o chão sumir. Tudo girava. Meus dedos congelaram sobre o corrimão da cama.

— Ele tá me vigiando. Sempre vigiando... — sussurrei, como se a voz saísse de outra boca.

Meu pai.

Claro que ele sabia.

Claro que ele nunca confiaria em mim. Eu era sua filha, sim — mas também era sua propriedade. Um objeto precioso que ele precisava controlar. Ele fingia me amar, mas o que ele amava era o controle.

Sentei no chão.

Lágrimas desceram sem permissão. Engoli o grito.

Ele pode estar me ouvindo agora.

Levantei.

Tirei a blusa lentamente. Deixei-a cair no chão. Olhei para a câmera como quem desafia uma sentença de morte.

— Então me observa, pai. Vê o que você criou.

Abaixei a luz. Deitei na cama com a mente em guerra.

E repeti uma única frase, baixinho, até o sono vir como faca no escuro:

“Ele me ama com olhos que querem me destruir.”

Parte 7 –

Vicente

Esperei a noite inteira nas sombras da Rua Rossi, observando. A figura que rondava o teatro antes não voltou, mas eu sabia que alguém estava assistindo. Alguém da casa Mancini. Alguém que sabia demais.

E isso significava uma coisa: eu tinha pouco tempo.

Quando amanheceu, voltei ao apartamento onde estava hospedado. Um cubículo escondido nos fundos de uma lavanderia. Paredes úmidas. Cheiro de cigarro velho. O tipo de lugar onde ninguém faz perguntas.

Joguei a mochila sobre a cama, abri o zíper e tirei um caderno preto — grosso, de capa dura. Era o diário de Lara. A única coisa que restou dela além do corpo.

Folheei até a última página.

> “Se eu desaparecer, procure por 'Nicolai'. Ele sabe de tudo. Ele viu. Ele tentou avisar. Mas ninguém ouve um traidor.”

Nicolai.

Aquele nome tinha voltado a me assombrar desde que pisei na mansão.

Nicolai Russo. Ex-braço direito de Arturo Mancini. Sumido há três anos.

A lenda dizia que ele traiu o império. Tentou vender informações. Arturo mandou matar. Mas o corpo nunca apareceu.

E agora... boatos. Sussurros. Um informante vivo. Um homem escondido em alguma parte da cidade, com informações suficientes pra derrubar os Mancini.

Ou para nos enterrar junto com eles.

Peguei o telefone descartável.

— Sasha. Ache o Nicolai. Não me importa o preço. Ele é a chave.

Do outro lado da linha, silêncio. Depois, uma risada curta.

— Ele vai ser mais caro do que a sua vingança.

— Eu pago com sangue, se for preciso.

Desliguei.

E então encarei o espelho do banheiro. Meus olhos estavam diferentes. Estavam começando a se parecer com os de Lara — não pela cor, mas pelo vazio.

---

Estela

Na manhã seguinte, meu pai me chamou no escritório.

Entrei com o coração preso à garganta. Ele estava sentado na poltrona de couro, um charuto aceso entre os dedos. O olhar gelado.

— Onde esteve ontem à noite?

Minha voz não vacilou.

— Estava lendo na estufa.

Ele deu um leve sorriso. O tipo de sorriso que não alcança os olhos.

— A estufa estava vazia. Ninguém te viu lá.

— Talvez ninguém tenha prestado atenção.

Ele levantou.

Veio até mim.

Passou os dedos pelo meu queixo, como quem acaricia uma boneca de porcelana. E depois sussurrou:

— Cuidado com o que esconde, minha filha. Algumas mentiras morrem afogadas. Outras... são enterradas vivas.

Pisquei devagar.

Ele sabia.

Ou pelo menos suspeitava.

E naquele instante, entendi: eu não era uma prisioneira apenas de segredos. Era prisioneira de um império de morte.

O Vazio tem Voz

Capítulo 3 – O Vazio Tem Voz

A noite anterior ainda queimava no corpo de Estela. A lembrança dos lábios de Vicente, do gosto proibido do que não devia sentir, era uma tortura doce. Mas agora, ao acordar no silêncio abafado da mansão, tudo tinha mudado. A tensão estava nas paredes. Nos corredores. No olhar da governanta que desviou os olhos rápido demais.

Ela sabia.

Ou suspeitava.

E se ela sabia... quem mais sabia?

Estela se vestiu com calma. Calça de linho escura, blusa branca fechada até o pescoço. Um coque firme no cabelo. Maquiagem leve. Máscara perfeita. Filha perfeita.

Mas dentro dela, só caos.

Desceu para o café da manhã como uma sombra. Arturo já estava à mesa. Seu terno cinza-claro, o broche dourado da família preso no bolso do paletó — os três lírios entrelaçados. Símbolo da nobreza. E da maldição.

— Dormiu bem? — perguntou, sem tirar os olhos do jornal.

— Tive sonhos inquietos.

— É bom manter a cabeça leve. O mundo pesa rápido demais em quem carrega segredos.

Estela fingiu um sorriso.

— E quem não carrega?

Ele ergueu os olhos.

— Os mortos.

Ela segurou o garfo com força.

— A propósito — ele continuou —, hoje temos um jantar. Família completa. E convidados. Quero que esteja impecável.

— Convidados?

— Um homem importante. Antigo aliado. Está de volta à cidade.

Ela assentiu. Mas algo no modo como ele disse "antigo aliado" fez sua espinha gelar.

Ele estava testando-a. Ou... preparando terreno para alguma jogada.

---

Vicente

O ar no apartamento estava espesso com o cheiro da chuva. Sasha chegou com o rosto coberto por um capuz e as botas sujas de lama.

— Tenho novidades.

Vicente se virou de onde estava sentado, a pistola desmontada sobre a mesa.

— Nicolai?

Sasha assentiu.

— Vivo. Mas não por muito tempo se continuar se movendo como está. Mudou de esconderijo três vezes só esta semana. Alguém o está caçando.

— Arturo?

— Provável. Mas não só ele.

Vicente fechou os olhos por um instante.

— Preciso falar com ele.

— Já sabia que ia dizer isso. Consegui um ponto de encontro. Mas é arriscado. Ele não confia em ninguém. E não é burro como dizem.

— Eu assumo o risco.

Sasha o encarou.

— Você vai sozinho?

— Não tenho escolha.

— E a garota?

— O que tem ela?

— Vai avisá-la que está se metendo num buraco sem fundo?

Vicente hesitou.

— Ela já está lá dentro.

---

Estela

O jantar parecia uma peça de teatro.

A mesa longa, coberta de prata polida e talheres alinhados como soldados prontos para a guerra. Arturo à cabeceira, os tios e primos do lado direito, os conselheiros e capangas do lado esquerdo. E então o convidado: Dante Russo.

O nome soou como veneno nos ouvidos de Estela.

Os Russo haviam desaparecido do mapa depois que Nicolai foi “banido”. Mas Dante não era só um membro distante da família — era primo direto de Nicolai. E agora estava ali, sorrindo, brindando, fingindo que nada era estranho.

— Você cresceu, Estela — disse ele, quando brindaram. — A última vez que te vi, você mal alcançava a mesa.

Ela sorriu com educação.

— E agora vejo tudo que está sobre ela.

Dante riu.

— Bela resposta. Mas cuidado, ver demais pode custar caro.

Arturo observava os dois como um rei analisando peças num tabuleiro.

Estela se perguntava: Dante estava ali por causa de Nicolai? Ou seria mais um aviso?

Durante a sobremesa, ela derramou um pouco de vinho no guardanapo e o levou aos lábios, fingindo limpar a boca. Depois, discretamente, deixou o pano cair no chão ao lado de uma das cadeiras dos capangas. Quando se abaixou para pegá-lo, sussurrou:

— Sei que me vigiam. Diga a ele que também observo.

Voltou à posição com o rosto neutro.

O capanga não respondeu. Mas seu olho direito tremeu.

Ela sabia que a mensagem tinha sido entregue.

---

Vicente

A noite estava úmida quando chegou ao ponto de encontro.

Era uma antiga fábrica de tecidos, abandonada desde os anos 90. Paredões corroídos. Pássaros mortos nos cantos. Um cheiro ácido no ar.

Nicolai estava lá.

Mais magro, olhos fundos. Mas ainda com o mesmo ar arrogante de antes.

— Então você é o garoto que quer destruir um império — disse ele, fumando.

— Eu quero justiça.

— Justiça é um conceito. Vingança é uma ferramenta.

Vicente jogou o diário de Lara no chão, entre eles.

— Você estava lá. Você viu o que fizeram com ela.

Nicolai não respondeu de imediato.

Depois pegou o caderno, folheou até a última página, e sorriu.

— Ela confiava demais.

— E você menos do que devia.

— Eu tentei avisar. Mas ninguém ouve um traidor.

— Por que está me ajudando agora?

Nicolai o encarou.

— Porque Arturo me caçou por anos. Porque matou meu irmão. Porque quer apagar até o meu nome da história.

Pausa.

— E porque eu também perdi alguém que amava.

Vicente franziu a testa.

— Quem?

— Isso não importa. O que importa é que eu sei como chegar ao coração da mansão.

— Como?

Nicolai se aproximou, baixo.

— Você tem a chave. Ela tem o sangue. Mas só juntos conseguirão abrir a porta certa.

Vicente o segurou pelo colarinho.

— Se você trair a gente, eu mato você com as próprias mãos.

Nicolai sorriu.

— E se eu ajudar, você me protege?

— Não. Mas talvez te deixe vivo.

---

Estela

De madrugada, Estela foi até a estufa.

Entre as plantas altas, os lírios vermelhos estavam florindo.

Ela os encarou por longos minutos. Depois, ajoelhou-se e começou a cavar a terra com as mãos nuas. Minutos depois, encontrou o que procurava.

Um envelope plástico, velho, enterrado desde os tempos de infância. Dentro, cartas. Fotografias. Uma folha dobrada com o carimbo “Confidencial – Mancini”.

Era o que a mãe dela escondeu antes de morrer.

E naquele momento, Estela entendeu: a morte da mãe não foi acidente.

Ela foi silenciada.

E agora, ela mesma era o próximo alvo.

---

Para mais, baixe o APP de MangaToon!

novel PDF download
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!