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Fragmentos de Mim

A decisão de July

Seis meses. Esse era o tempo exato desde que July Evans perdera seus pais no trágico acidente de helicóptero que chocou os noticiários de Nova York. Em meio à dor, à exposição pública e às infinitas questões legais, ela se viu forçada a ocupar um trono que jamais desejou: o de herdeira única do império EvansTech.

Aos 28 anos, July não era só uma das mulheres mais ricas da América — era também uma das mais solitárias. Desde a perda dos pais, tudo ao seu redor parecia funcionar no automático: reuniões, documentos, cifras, conselhos administrativos. Sorrisos forçados e conversas vazias. A única pessoa que ainda a fazia sentir algo era Brad Brown, seu noivo e parceiro de negócios... ou pelo menos era o que ela pensava.

Naquela manhã cinzenta, o café da cobertura parecia mais amargo que o normal. July encarava a vista do Central Park através da enorme janela da sala de estar, vestida com um suéter creme e os olhos cansados de quem não dormira direito. Brad tinha passado a noite no apartamento dela, mas o clima entre os dois estava tenso desde a última conversa.

— July, você precisa pensar como uma líder — ele dissera, em tom quase impaciente. — Essa fusão com a Hightower Energy pode dobrar o valor da empresa. James já deixou tudo encaminhado, é só você assinar.

— Brad... — ela respondeu, a voz baixa, contida — eu perdi meus pais há apenas seis meses. Mal consigo respirar, e você quer que eu pense em números?

— Isso é o que seus pais fariam — rebateu ele, esfriando ainda mais o ar entre eles. — Você não pode deixar as emoções interferirem no negócio.

Foi como uma facada. Brad sempre usava a memória de seus pais como argumento. E embora ele fosse racional, inteligente e estrategista, havia uma frieza nas palavras que a magoava mais do que ela queria admitir.

Quando ele saiu, deixando apenas um “pense nisso”, July decidiu que não queria pensar em mais nada.

Sem avisar ninguém, nem mesmo seu advogado, ela reservou uma passagem para o Brasil — o país onde sua mãe nascera e onde ela passara poucas férias quando criança. Precisava de distância. Do apartamento. De Brad. Da cidade. Do peso de ser July Evans.

O calor úmido do Rio de Janeiro a envolveu assim que saiu do avião. O aeroporto Santos Dumont estava movimentado, com flashes de português e risadas ecoando pelos corredores. July mantinha os óculos escuros no rosto, mesmo em ambiente fechado. Carregava apenas uma mala de mão e o peso invisível das últimas semanas.

Ela não quis segurança. Não quis motorista particular. Precisava se sentir gente comum, ainda que por um momento. Pegou um táxi comum, deu o endereço do Copacabana Palace e reclinou no banco traseiro. O motorista, um senhor de cabelo grisalho e sorriso simpático, tentou puxar conversa, mas ela apenas sorriu educadamente e virou o rosto para a janela. Queria silêncio.

As ruas passavam diante de seus olhos como um filme lento: crianças jogando bola nas calçadas, vendedores ambulantes, ônibus lotados. Pela primeira vez em meses, ela se sentia longe da pressão. Longe das paredes frias de seu apartamento. Longe da memória dos pais.

Até que tudo aconteceu de forma violenta.

Um carro preto surgiu em alta velocidade na contramão da avenida. Sirenes urravam logo atrás. A perseguição parecia cena de filme, mas era real. O motorista do táxi teve apenas segundos para reagir. Não foi o suficiente.

O impacto foi brutal.

O carro fugitivo acertou o táxi em cheio, lançando-o contra um poste. O vidro estilhaçou, o metal se retorceu.

— Tira ela daqui! Rápido!

As vozes eram abafadas, apressadas, desesperadas. O cheiro de gasolina e fumaça invadia tudo, o calor se espalhava como uma febre. Alguém a puxava pelos braços, braços que ela nem sabia que tinha. O mundo girava, e em algum lugar atrás dela, o táxi pegava fogo.

A explosão veio segundos depois, como o rugido de um monstro. O impacto sacudiu o chão, e as chamas engoliram o carro. Não sobrou nada. Nem o motorista. Nem os documentos. Nem a bagagem. Apenas ela — viva, inconsciente, e anônima.

— Ela tá respirando... Graças a Deus.

A voz era feminina, baixa, cheia de alívio. Sons de passos apressados, um bipe constante. A luz do hospital brilhava sob as pálpebras fechadas dela, mas havia algo mais forte — uma sensação de que algo não estava no lugar.

Ela abriu os olhos devagar.

As luzes do teto eram tão brancas que doíam. Piscou. Tentou se mexer. Dores leves pelo corpo, mas nada insuportável. Respirou fundo. O ar tinha cheiro de desinfetante e plástico.

— Oi... você consegue me ouvir?

A voz vinha da lateral da cama. Uma mulher — enfermeira, talvez — estava ao seu lado. Rosto gentil, cabelo preso em coque, um crachá preso ao jaleco.

Ela piscou mais algumas vezes. Tentou entender. Os sons faziam sentido. As palavras pareciam familiares.

— Consegue falar comigo? — repetiu a enfermeira, mais devagar. — Como você se chama?

Ela abriu a boca, mas nenhuma resposta veio.

Um nome. Qualquer nome.

Silêncio.

A mente dela era uma folha em branco. Nenhuma lembrança. Nenhum rosto. Nenhuma história. Era como se tivesse acabado de nascer.

— Eu... — murmurou, confusa. — Eu não sei...

A enfermeira franziu o cenho, preocupada, mas sua voz manteve a calma.

— Tudo bem. Você sofreu um acidente grave. Foi retirada de um carro momentos antes de ele explodir. Não encontramos documentos, nem celular, nem identificação. Você chegou aqui desacordada... e ninguém ainda veio procurar por você.

Ela sentiu um aperto no peito. A explosão. O carro. O motorista. Um vazio imenso onde sua vida deveria estar.

— Você sabe quem é? De onde veio?

Ela apenas balançou a cabeça em negativa. Os olhos se encheram de lágrimas, mas ela as conteve. Era como estar presa em um corpo desconhecido.

A enfermeira pegou uma prancheta, depois olhou para ela com um sorriso leve.

— Por enquanto, precisamos registrar um nome para você. Não podemos te deixar como “paciente desconhecida” pra sempre, né?

Ela ficou em silêncio. Um nome. Não fazia ideia de qual era o seu.

— Posso te chamar de... Maria Luiza? Só até lembrarmos o verdadeiro?

Ela hesitou, então assentiu. Não parecia certo, mas também não parecia errado. Era um nome bonito. Soava como abrigo.

— Tá bom...

— Então está bem, Maria Luiza — disse a enfermeira com um sorriso gentil. — Você está em boas mãos. Vai ficar tudo bem.Eu me chamou Joyce e estarei ao seu lado partir de hoje.

Mas, mesmo deitada naquele leito limpo, rodeada de máquinas e cuidados, ela sabia que a jornada estava só começando. E que o vazio dentro dela escondia uma história que, mais cedo ou mais tarde, viria à tona.

E quando isso acontecesse… talvez ela não fosse mais só Maria Luiza.

July

Brad

Joyce

Laços Inesperados

A chuva caía fina sobre os telhados do subúrbio carioca, tingindo o céu de cinza pálido. Do lado de dentro do hospital, o ambiente estava silencioso, exceto pelos sons habituais: bipes constantes, passos apressados, portas abrindo e fechando. Era uma segunda-feira comum para os funcionários da ala de neurologia, mas para a enfermeira Joyce, aquele dia ficaria marcado.

Desde que a jovem desconhecida havia sido trazida desacordada após o acidente, algo dentro de Joyce havia mudado. Talvez fosse o olhar perdido que ela viu quando a garota acordou, ou o modo como suas mãos tremiam ao tentar responder perguntas simples, como seu nome. Maria Luiza. Era assim que a chamavam agora. Joyce é quem havia escolhido esse nome, de forma espontânea, quase como um instinto.

— O café aqui continua péssimo — murmurou Joyce, colocando um copo de papel na mesinha ao lado da cama. — Mas pelo menos tá quente.

Maria Luiza sorriu com um canto da boca. Era um sorriso frágil, como se ainda testasse os músculos do rosto, como se ainda não tivesse certeza de que tinha o direito de sorrir.

— Obrigada… Joyce.

Era estranho dizer nomes que ela não lembrava ter aprendido. Estranho, e ao mesmo tempo reconfortante. Joyce havia se tornado sua âncora. Desde que acordara no hospital, não havia um dia em que a enfermeira não estivesse ali, com seu jeito prático, sua voz baixa e suas histórias sobre ônibus atrasados, vizinhos barulhentos e receitas que nunca davam certo.

— Dormiu bem? — perguntou Joyce, puxando uma cadeira e se sentando ao lado.

Maria Luiza assentiu.

— Mais ou menos. Sonhei com… nada.

— Nada?

— É. Só um monte de neblina. Mas foi mais calmo que antes. — Ela abaixou o olhar. — Eu odeio dormir. Sempre acordo com a sensação de que tô esquecendo algo importante.

Joyce não respondeu de imediato. Apenas pegou a mão da jovem e a segurou entre as suas. Era um gesto pequeno, mas que falava mais que palavras.

— Talvez esteja mesmo — disse ela, com honestidade. — Mas vai lembrar. Com o tempo. E até lá, você não vai estar sozinha.

Maria Luiza olhou para ela, com os olhos úmidos. Joyce não sabia o motivo, mas aquela jovem a tocava profundamente. Talvez fosse o fato de que, apesar de tudo, ela nunca pedia nada. Nunca reclamava. Apenas olhava o mundo como quem tenta montar um quebra-cabeça sem caixa de referência.

— A propósito — disse Joyce, se levantando —, hoje o doutor Roberto vai vir falar com você. É o neurologista responsável pela sua reabilitação. Um cara excelente. Já cuidou de muita gente em situação parecida. É sério, mas tem um coração enorme.

Poucos minutos depois, a porta se abriu com discrição, e um homem alto, de cabelos grisalhos e expressão centrada entrou no quarto. Usava óculos de armação fina, jaleco impecável e uma prancheta nas mãos.

— Bom dia — disse ele, aproximando-se da cama. — Você deve ser nossa paciente especial.

Maria Luiza tentou sorrir.

— Só especial porque ninguém sabe quem eu sou — murmurou.

O médico sorriu com gentileza.

— Isso é só um detalhe temporário. Eu sou o doutor Roberto Albuquerque, neurologista. E estarei acompanhando seu caso a partir de agora.

Ele puxou uma cadeira e se sentou ao lado da cama, abrindo a prancheta.

— A enfermeira Joyce me contou bastante sobre sua evolução nos últimos dias. Você tem respondido bem, está com os exames estáveis, . Parabéns por isso.

— Não tenho escolha. Apenas sobrevivi— ela respondeu.

Roberto observou o modo como ela falava, os olhos ligeiramente distantes, como se procurasse palavras escondidas em um dicionário invisível.

— Amnésia dissociativa com trauma físico e emocional — disse ele, quase para si mesmo. — Situação rara, mas não impossível. O acidente, a explosão, o choque... o cérebro reage tentando proteger a mente de algo que, por algum motivo, ainda não pode ser enfrentado.

— Você acha que vou lembrar? — perguntou Maria Luiza, sem rodeios.

Roberto olhou para ela com seriedade.

— Não posso prometer quando. Pode levar dias, semanas... até meses. Mas a boa notícia é: quanto mais tranquila e acompanhada você estiver, maiores são as chances de recuperação espontânea. Por isso, decidi que a enfermeira Joyce vai ser sua acompanhante principal durante todo o tratamento.

Joyce, que estava encostada à porta, ergueu as sobrancelhas surpresa.

— Eu?

— Sim — confirmou ele. — Você criou um vínculo forte com a paciente, e isso é fundamental nesse tipo de caso. Sua presença tem sido positiva, estabilizadora. Com sua permissão, é claro — completou, voltando-se para Maria Luiza.

Ela assentiu na hora. Joyce era tudo o que ela tinha. Uma ligação real. Algo sólido em meio ao caos.

— Claro. Eu... eu agradeço por isso.

---

Naquela noite, Joyce saiu mais tarde do hospital. Voltou para seu pequeno apartamento no subúrbio, uma quitinete simples com paredes pintadas de azul claro e móveis antigos herdados da mãe. Colocou uma lasanha congelada no forno e sentou-se no sofá com as pernas cansadas esticadas.

Não conseguia parar de pensar em Maria Luiza.

Tinha algo naquela garota. Uma tristeza silenciosa, uma força não dita. Joyce se via nela. Em muitos momentos da vida, também havia se sentido perdida, sem saber quem era, sem direção. Só que, ao contrário de Maria Luiza, ela lembrava de tudo — até do que preferia esquecer.

Na manhã seguinte, Joyce chegou cedo ao hospital. Levou uma bolsa com um livro, uma escova de cabelo nova e um creme hidratante.

— Trouxe umas coisinhas pra você — disse, entrando no quarto de Maria Luiza, que já estava acordada, sentada na cama, com os cabelos bagunçados.

— Obrigada... você não precisava.

— Precisar, não precisava. Mas eu quis. Não é todo dia que a gente ganha uma irmã adotiva — brincou.

Maria Luiza sorriu, pela primeira vez com mais leveza.

— Irmã adotiva? Você sempre foi assim com todo mundo?

— Não. Só com quem merece — respondeu Joyce, piscando um olho.

Passaram a manhã juntas. Joyce escovou os cabelos de Maria Luiza com cuidado, como uma irmã mais velha faria. Leram trechos do livro em voz alta. Falaram sobre as plantas que Joyce cultivava no parapeito da janela. Riram de uma novela antiga que passava na TV do quarto.

Era um dia comum. Mas, para Maria Luiza, parecia o primeiro dia real desde que acordara naquele lugar. Pela primeira vez, sentiu algo diferente da confusão. Sentiu... pertencimento.

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Mais tarde, Roberto voltou para reavaliá-la. Fez testes simples de memória e coordenação, fez perguntas indiretas, buscando qualquer lampejo de lembrança. Mas não havia nada ainda. Nenhuma pista.

— Por enquanto, quero que se concentre em se fortalecer — disse ele. — Descansar, se alimentar bem, manter a mente ocupada com coisas boas. Se tiver sonhos, me conte. Se lembrar de cheiros, músicas, qualquer coisa... anote. Tudo pode ser uma pista.

Ela assentiu, determinada. Sentia que algo dentro dela começava a reagir. Devagar, sim. Mas reagir.

Quando Roberto saiu, ela olhou para Joyce, que a observava com carinho da poltrona ao lado.

— Você acredita que um dia eu vou lembrar quem eu sou de verdade?

Joyce sorriu.

— Eu acredito que você já é alguém de verdade. Só ainda não sabe o nome dessa pessoa.

Maria Luiza sorriu de volta. Pela primeira vez, não teve medo do vazio. Porque agora, no meio de toda aquela escuridão, havia uma luz.

E o nome dessa luz era Joyce.

Um Lar Temporário

O sol mal entrava pelas janelas do quarto 207, mas Maria Luiza já estava acordada. Os lençóis estavam cuidadosamente dobrados sobre a cama, e seus olhos percorriam cada detalhe do ambiente como se quisesse memorizar o que por três semanas foi seu único refúgio.

Sentia-se um misto de gratidão e incerteza. Ir embora era necessário — ela sabia disso —, mas para onde?

A porta se abriu suavemente, revelando o doutor Roberto Albuquerque, com o jaleco branco impecável e a prancheta em mãos. Seus olhos bondosos buscaram os dela com calma.

— Bom dia, Maria Luiza. Está pronta para receber alta?

Ela respirou fundo antes de responder:

— Estou pronta para sair... só não sei se estou pronta para o que vem depois.

Roberto se aproximou e sentou-se na cadeira ao lado da cama. Com um tom de voz calmo e profissional, explicou:

— Você está estável fisicamente, mas seu tratamento não termina aqui. A amnésia pode ser temporária, parcial ou mesmo permanente — ainda não temos como prever. Precisamos continuar com o acompanhamento clínico e psicológico.

— Eu vou precisar voltar ao hospital?

— Sim — ele assentiu. — Pelo menos uma vez por semana, para sessões de acompanhamento com a equipe multidisciplinar. Vamos monitorar seu progresso, trabalhar com estímulos de memória e ajustar o suporte conforme necessário. Eu mesmo cuidarei de você nesse processo.

Maria Luiza olhou para as próprias mãos. Estavam frias, trêmulas.

— E... se eu não lembrar de nada?

— Você vai reconstruir a própria vida, lembrando ou não. O importante agora é que você não está sozinha.

Naquele momento, Joyce entrou no quarto com uma sacola de roupas. Seu rosto se iluminou ao ver a paciente desperta e conversando com o médico.

— Trouxe uma roupa nova pra você sair daqui digna — brincou. — Escolhi com carinho.

Maria Luiza sorriu.

— Joyce, o doutor estava me explicando que vou precisar voltar aqui toda semana...

— Eu já imaginava — disse a enfermeira, assentindo. — E por isso mesmo... eu queria te fazer uma proposta.

— Proposta?

Joyce se aproximou, colocando a sacola sobre a cama.

— Meu apartamento tem dois quartos. Eu vivo sozinha faz anos. Achei que ia me acostumar, mas a solidão nunca fica confortável de verdade. Pensei... se quiser, você pode ficar comigo. Ter um quarto só seu, com porta, cama de verdade... Nada de sofá-cama. Até conseguir se encontrar, ou até quando quiser.

Maria Luiza arregalou os olhos.

— Você faria isso por mim?

— Já estou fazendo. Você precisa de um lugar, e eu preciso de companhia. Além disso, posso te trazer toda semana para o hospital, sem problema nenhum. Não é só por caridade. É porque eu gosto de você, Maria Luiza. E te acolher, de verdade, vai me fazer bem também.

O doutor Roberto observou a cena com um sorriso discreto e satisfeito.

— Joyce é uma mulher generosa. E eu ficaria tranquilo sabendo que você está sendo cuidada por alguém de confiança.

Maria Luiza sentiu os olhos marejarem.

— Eu não tenho nem palavras...

— Então não diz nada agora. Só pensa com carinho. Mas vou ficar muito feliz se disser sim.

Ela respirou fundo. Pela primeira vez desde que acordou naquele hospital, sentiu o coração aquecer com a ideia de pertencer a algum lugar — mesmo que por enquanto.

— Eu aceito. Obrigada, Joyce. De coração.

Joyce deu um leve tapinha no ombro dela e sorriu.

— Ótimo. Agora veste essa roupa e vamos embora daqui. Já chega de hospital por hoje.

Na saída, o serviço social entregou a Maria Luiza um envelope com documentos provisórios, um RG emergencial emitido com base no nome fictício dado por Joyce e uma carta de acompanhamento assinada pelo doutor Roberto.

No carro que as levava para casa, Maria Luiza olhava pela janela o mundo que agora era seu — o Brasil. As ruas, os vendedores, os prédios baixos, tudo era estranho e acolhedor ao mesmo tempo.

— Seu quarto tem vista pro quintal — comentou Joyce, enquanto dirigia com calma pelas ruas do subúrbio. — E um armário embutido que range um pouco, mas é firme.

— Nunca imaginei que minha nova vida começaria assim.

— Às vezes, o que a gente imagina não é metade do que a vida planeja.

O apartamento de Joyce era modesto, mas limpo e bem cuidado. A sala era arejada, cheia de plantas em pequenos vasos pendurados. O segundo quarto, reservado para Maria Luiza, tinha paredes em tom pastel, uma cama de solteiro bem arrumada, um ventilador de teto antigo e cortinas floridas.

Maria Luiza entrou no cômodo como quem pisa em solo sagrado.

— É pequeno, mas é seu — disse Joyce, encostada na porta. — E a partir de agora, é o seu cantinho no mundo.

Maria Luiza assentiu, emocionada.

— Isso aqui é mais do que eu poderia sonhar. Obrigada, Joyce. Por tudo.

Joyce sorriu, dando um passo atrás.

— Bem-vinda à sua nova vida, Maria Luiza. Vamos cuidar dela juntas.

A primeira semana fora do hospital parecia uma vida inteira para Maria Luiza. Ainda era difícil acordar sem saber quem realmente era, mas o som do despertador antigo de Joyce, o cheiro de café fresco vindo da cozinha e o canto dos passarinhos na janela se tornaram seus primeiros marcos de rotina.

Joyce fazia questão de manter a casa em ordem. Acordava cedo todos os dias, colocava o uniforme e partia para o hospital com um sorriso no rosto e uma palavra de carinho para Maria Luiza antes de sair.

— Não esquece de tomar seu café e de caminhar um pouquinho pelo quintal, hein? — dizia sempre, deixando um pão francês fresquinho sobre a toalha colorida da mesa.

Maria Luiza, embora grata, passava os dias com uma inquietação crescente. Sentia-se como um livro sem título, com as páginas em branco. Evitava sair para além do portão, com medo de se perder pelas ruas ainda desconhecidas do subúrbio.

À tarde, assistia à televisão, lavava a louça e tentava organizar seus pensamentos. Lia os nomes nos produtos da cozinha, observava os objetos da casa tentando reconhecer algum sentimento, uma memória — qualquer coisa que a conectasse ao seu passado.

Mas tudo permanecia em silêncio dentro dela.

Naquela semana, Joyce chegou todos os dias com alguma novidade, tentando animar Maria Luiza. Na quarta-feira, trouxe um vestido floral que havia encontrado em uma loja de bairro.

— Esse aqui combina mais com você. Aquele vestido branco que você ganhou do hospital tá com cara de uniforme de enfermeira — brincou, enquanto Maria Luiza dava uma risada sincera.

— Você está montando meu guarda-roupa do zero...

— E estou fazendo isso com muito gosto. Olha só pra você! Com esse vestido, já parece uma mocinha de novela!

Maria Luiza experimentou a peça e se olhou no espelho. Ainda era difícil se ver e reconhecer a própria imagem, mas sentia uma ponta de vaidade nascer. Talvez aquele reflexo pudesse, enfim, ganhar uma identidade.

Na sexta-feira à noite, Maria Luiza preparou o jantar: Purê de batata e costela suína ao molho barbecue— uma receita que lembrava algo que não sabia de onde vinha. Joyce chegou cansada, mas sorridente, jogando a bolsa no sofá e puxando a cadeira da cozinha com empolgação.

— Menina do céu, hoje foi um dia daqueles... mas trouxe notícia boa!

Maria Luiza se virou curiosa.

— Boa mesmo?

— Daquelas que dá vontade de abrir refrigerante pra comemorar! — brincou, abrindo a geladeira. — Você lembra que eu comentei que o hospital tem umas empresas terceirizadas que cuidam de várias coisas, tipo limpeza, alimentação e tudo mais?

— Sim... lembro que falou algo sobre isso.

— Pois é. Hoje soube que abriu uma vaga para entrega de refeições nos setores de internação. É terceirizado, não precisa ter experiência, só disposição e comprometimento. Eu conversei com a supervisora da empresa e falei de você. Ela ficou interessada!

Maria Luiza arregalou os olhos.

— Joyce... você tá falando sério?

— Completamente! A vaga é pra começar em breve, e como amanhã você tem consulta com o doutor Roberto, pensei que depois da consulta eu te levo direto lá pra conversar com ela. Só precisa de um documento — e aquele RG provisório que o hospital te deu serve.

Maria Luiza sentou-se, sem conseguir conter o sorriso.

— Eu nem sei o que dizer... Estava me sentindo tão inútil aqui, só te dando trabalho...

— Ei! Nunca diga isso! Você estar aqui me faz bem. Mas também sei que ficar parada, sem rumo, não é bom pra ninguém. Ter um trabalho pode te ajudar a se sentir viva de novo. E, quem sabe, dar o primeiro passo pra tua independência.

— Eu estava me sentindo presa... com medo de sair, de me perder, de te dar mais dor de cabeça do que já dou...

— Não dá dor de cabeça nenhuma! — interrompeu Joyce, pegando sua mão. — Mas eu entendo. E olha só: esse trabalho é dentro do hospital, ambiente seguro, com gente legal, e eu estarei por lá todo dia. Vai ser ótimo pra você!

Maria Luiza assentiu, emocionada.

— Eu posso mesmo tentar?

— Claro que pode. E se quiser, amanhã cedo eu te ajudo a escolher a roupa mais apresentável que temos no armário novo da senhorita — brincou, piscando um olho.

Elas riram juntas. Era um som leve, quase infantil, vindo de um lugar que Maria Luiza achava que não existia mais dentro dela. Pela primeira vez em semanas, ela sentiu algo diferente: esperança.

A noite avançou com planos e devaneios. Joyce falou sobre como era a rotina de entregas, as pessoas gentis do hospital, os corredores tranquilos e as histórias engraçadas dos pacientes. Maria Luiza ouvia tudo com atenção, absorvendo cada detalhe como quem constrói um novo mundo a partir do zero.

Antes de dormir, ela se deitou em sua cama, olhou para o teto do quarto que agora chamava de seu, e pensou: talvez ela não precisasse lembrar quem foi para descobrir quem poderia ser.

Amanhã seria um novo dia. O dia em que ela, Maria Luiza — nome que nasceu no meio do caos, mas floresceu no afeto —, começaria a trilhar o próprio caminho. Mesmo sem o passado, ela finalmente vislumbrava um futuro.

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