– Onde Ardem as Almas
"Nem toda chama deseja destruir. Algumas nascem apenas para iluminar o caminho das almas perdidas."
A noite havia engolido o céu, deixando apenas rastros vermelhos entre as nuvens. Era lua nova, mas Morguyanna sabia que a ausência de luz não significava paz. Pelo contrário. Era nos véus mais escuros da floresta que os sussurros ganhavam força, que as presenças esquecidas acordavam, e que os olhos invisíveis se abriam.
A Floresta Negra nunca dormia. E, naquela noite, parecia observar cada passo que ela dava com uma fome antiga.
Morguyanna andava sem rumo certo. Seu vestido — que um dia fora branco — arrastava-se pela terra úmida e enegrecida. A pele, marcada por galhos e espinhos, não reclamava. Já estava acostumada. Crescera ali, entre sombras, criada por uma curandeira velha demais para lembrar o próprio nome e sábia demais para ter sido apenas humana. Quando a velha morreu, Morguyanna tinha doze anos. Desde então, tudo que aprendeu veio da floresta... e do que ardia dentro dela.
Ela não era como os outros. Seus olhos mudavam de cor quando o perigo se aproximava — de castanho profundo para um amarelo dourado, felino, predador. Seu sangue era quente, mas seus dentes, quando irritada, traziam um brilho cruel. Ninguém nunca soube dizer o que ela era. Nem ela.
Naquela noite, no entanto, algo diferente a guiava. Um cheiro. Familiar e estranho ao mesmo tempo. Selvagem, metálico. Lobo.
O som de um rosnado fraco, seguido de um baque contra a terra molhada, fez com que ela parasse. Seus sentidos se acenderam como brasa ao vento. Caminhou em silêncio até encontrar o corpo parcialmente transformado, envolto em farrapos e suor. Havia sangue nas mãos dele. E algo mais — um brilho quase prateado entre as veias do pescoço. Wolfsbane. Veneno antigo. Conhecido por ela. Usado para matar os que correm com a lua.
Ela se ajoelhou.
— Você não devia estar aqui. — sussurrou, tocando sua testa.
Os olhos se abriram de súbito. Negros. Intensos. Carregavam o peso de guerras que ele não lembrava ter lutado. Seus lábios se moveram:
— O eclipse... a filha de Selene... ela nasceu...
Morguyanna sentiu um arrepio subir pela espinha. Aquela profecia. Ela já tinha ouvido antes. Nos sussurros da floresta. Nos delírios de um espírito que a visitava nos sonhos. Mas nunca daquela forma. Nunca da boca de alguém de carne, osso... e dor.
Ela queria perguntar quem ele era, mas algo dentro dela já sabia. Vycktor. Seu nome ardeu em sua mente como uma marca.
Antes que pudesse falar mais, o vento soprou diferente.
Folhas se mexeram em direções opostas. Um estalo.
E então, ela apareceu.
Tinha 1,58 de altura, e um caos nos olhos. Os cabelos negros escorriam pelas costas como um rio rebelde. A pele clara, quase translúcida à luz da lua. E uma energia que Morguyanna sentiu antes mesmo de vê-la. Algo... instável. Pulsante.
A garota tropeçou em um galho, caiu de joelhos ao lado dos dois, e respirou fundo. Parecia não saber se chorava, gritava ou ria. Os olhos dela se fixaram nos de Morguyanna como se já se conhecessem.
— Eu... te vi nos meus sonhos. — disse, com a voz trêmula. — Mas nos meus sonhos... você sangrava luz.
Morguyanna não soube o que dizer.
— Você é...?
— Viscenya. Viscenya Drako. Mas... pode me chamar de Vis. — ela passou a mão pelos cabelos nervosamente. — Eu não sei o que tá acontecendo comigo. As coisas tremem quando eu fico nervosa. E... eu escuto vozes. E vejo coisas antes delas acontecerem. E às vezes eu desapareço. Mas só por dentro.
Ela soltou um riso curto, quase infantil, quase trágico.
— Eu sou uma bagunça.
— Você é uma bruxa. — Morguyanna disse, com firmeza. — E não está sozinha.
Vis arregalou os olhos, como se aquilo fosse ao mesmo tempo alívio e condenação.
— E ele? — apontou para Vycktor, agora desacordado novamente.
— Um lobo. Envenenado com Wolfsbane. E com uma profecia na língua.
Viscenya se aproximou, os olhos fixos no peito dele que subia e descia com dificuldade. Por um instante, ela fechou os olhos. Um tremor sutil correu pelo chão.
— Ele sonha com você. — murmurou. — E com sangue. E com fogo. Mas... também com amor.
Morguyanna se encolheu. Amor não era uma palavra que ela sabia lidar. Tudo que aprendera sobre amor vinha de dor. Da ausência. Da morte.
— Eu não posso... — começou a dizer, mas Vis a interrompeu:
— Não precisa agora. Nem amanhã. Mas vai ter que escolher, um dia. Entre a verdade... e o medo.
O silêncio voltou. Mas não era o mesmo de antes. Era um silêncio cheio. Vivo.
As três almas estavam unidas. Por acaso ou destino. Por maldição ou redenção.
Naquela noite, a floresta testemunhou o nascimento de um laço.
Não de sangue. Nem de paixão.
Mas de reconhecimento.
Uma bruxa marcada pela guerra interna.
Um lobo ferido pela profecia.
E uma alma vidente, ainda perdida em si mesma.
Ali, onde ardem as almas, a história começou.
Não com um beijo.
Mas com um olhar.
Não com promessas.
Mas com pertencimento.
E as chamas que se acenderam naquela noite... nunca mais se apagariam.
Capítulo 1 – O Nome do Lobo
"Alguns acordam do sono. Outros despertam do esquecimento."
O primeiro som que Vycktor ouviu ao abrir os olhos foi o sussurro das folhas. Não o sussurro comum do vento. Era mais fundo. Como se as árvores conversassem entre si sobre ele.
Ele tentou se levantar, mas seu corpo pesava como pedra molhada. A dor queimava em suas veias — o resquício cruel do Wolfsbane ainda corria lento, envenenando memórias, turvando o tempo. Mas algo mais o prendia ali. Um calor. Uma presença.
Ela.
Os olhos dele se fixaram nos de Morguyanna, e por um segundo o mundo pareceu parar. Não era desejo. Não era medo. Era algo primitivo. Um eco antigo, como se já tivessem se olhado em outra vida — ou em outra morte.
— Onde... estou? — sua voz saiu rouca, arrastada.
— Na beira entre a vida e a morte. Mas ainda do lado de cá. — respondeu Morguyanna, com firmeza.
Vycktor tentou sorrir, mas o gosto de sangue ainda estava em sua boca.
Viscenya, que observava a cena encostada numa árvore torta, se aproximou com passos curtos e firmes.
— Ele tem nome? — perguntou, sem tirar os olhos dele.
— Vycktor. — respondeu ele, antes que Morguyanna pudesse.
— Não perguntei pra você, lobo. — rebateu Vis, cruzando os braços.
Morguyanna lançou um olhar duro para a amiga, mas um sorriso leve escapou dos lábios. Algo naquela garota a fazia baixar as defesas — e rir, mesmo quando tudo parecia prestes a desabar.
— E você? — Vycktor olhou para Vis. — Tem nome?
— Tenho muitos. Mas o que me prende aqui é Viscenya. Viscenya Drako. Bruxa em formação e caos ambulante.
— Você fala como quem já morreu uma vez. — disse ele.
— Talvez eu tenha. Talvez todo mundo aqui tenha morrido antes. — respondeu ela, olhando para o céu. — E talvez essa seja nossa segunda chance. Ou nossa última.
O silêncio caiu entre os três, denso, quase sagrado.
Morguyanna observava os dois, sentindo o coração bater de forma estranha. Não era paixão. Era a sensação de que o destino, aquele traidor silencioso, começava a mover suas peças.
— Você falou de uma profecia... — ela disse, virando-se para Vycktor. — Quem é a filha de Selene?
Vycktor fechou os olhos. Por um momento, parecia lutar com uma voz que não era sua.
— A filha da lua não nasce loba. Nem completamente bruxa. Ela... é sombra e fogo. É o erro dos deuses. — murmurou. — Ela foi escondida. Unida. Metade sangue mortal, metade essência estelar.
Morguyanna sentiu um nó no peito.
— E o que acontece com ela?
— Ela é a chave. Para o fim. Ou para o renascimento.
Vis olhou diretamente para Morguyanna, como se tivesse certeza da resposta.
— Eu acho que essa filha... é você.
O ar estalou ao redor.
Morguyanna deu um passo para trás. Tudo dentro dela queria negar, fugir, gritar. Mas algo mais profundo — algo que sempre esteve ali, nas veias, nos olhos que mudavam de cor — dizia que era verdade.
— Eu não sei quem eu sou. — ela confessou. — Fui deixada na floresta. Criada por uma curandeira velha. Não tenho lembranças de antes dos doze anos. Só... vazios.
Vycktor se sentou com dificuldade, apoiando-se em uma raiz exposta. Ele a olhou como se entendesse.
— Às vezes... os vazios gritam mais alto que as memórias. — disse. — Eu também estou perdido. Mas acho que te encontrar foi o primeiro passo pra me lembrar de mim mesmo.
Vis sorriu, sincera. Um sorriso de quem vê uma ponte se formando entre duas ilhas distantes.
— Tá decidido então. — disse ela. — A gente vai descobrir juntos. Quem vocês são. Quem eu sou. E o que o universo tá tentando nos dizer antes que ele exploda de vez.
Morguyanna olhou para ela com ternura.
— Você fala demais.
— E você fala de menos. É por isso que a gente combina.
Vycktor riu, e o som era rouco, mas vivo.
Ali, naquele momento entre brumas e raízes, três almas quebradas fizeram um pacto silencioso.
Não era juramento de sangue.
Nem promessa de eternidade.
Era apenas... pertencimento.
E a certeza de que as respostas estavam adormecidas — dentro deles, ou em algum canto escondido da floresta.
Mas eles as encontrariam.
Juntos.
Mesmo que para isso tivessem que queimar o mundo inteiro.
Capítulo 2 – A Floresta Escuta
"A floresta não julga. Ela apenas observa, memoriza... e cobra."
O chão sob os pés de Morguyanna parecia pulsar. Como se cada raiz reconhecesse sua presença e a aceitasse como parte de si. A Floresta Negra não era só seu lar. Era sua testemunha.
— Acha mesmo que andar com um lobo enfraquecido e uma bruxa descontrolada é um bom plano? — murmurou Vis, chutando uma pedra. — Porque, sinceramente, eu já tive ideias melhores. Como enfiar um garfo na tomada, por exemplo.
— Ainda não aprendeu a ficar em silêncio, né? — disse Vycktor, com um sorriso torto.
— O silêncio me dá alergia. — ela retrucou. — E além disso, alguém precisa narrar a tragédia em tempo real.
Morguyanna caminhava à frente, escutando a troca de farpas com um quase sorriso. Era reconfortante, de algum modo estranho, ver dois desconhecidos trocando farpas como se fossem velhos conhecidos. Talvez aquilo fosse o começo de algo. Um lar, ainda que improvisado.
— Precisamos sair do centro. — ela disse, parando. — A clareira já não é segura. Se o veneno foi usado, alguém sabia onde ele estaria. Vycktor não caiu por acaso.
— Tem razão. — ele concordou, ficando mais sério. — Alguém me caçou.
— E quem caçaria um lobo Alpha? — questionou Vis, arqueando uma sobrancelha.
— Alguém que teme o que está por vir.
O vento soprou forte entre as árvores, como se concordasse. Galhos estalaram ao longe, e uma coruja soltou um grito seco.
— Ótimo, aí vem o clima de suspense. — disse Vis, abraçando os próprios braços. — Podiam, sei lá, acender uma fogueira. Cantar uma música animada. Mas não. Tem que ter som de coruja e árvore quebrando.
— Você sente as coisas, não é? — Morguyanna perguntou de repente, virando-se para a amiga.
Vis arregalou os olhos.
— O quê?
— As emoções. Dos outros. Como se fossem suas.
Vis deu de ombros, desconfortável.
— Às vezes. Mas isso não significa nada. Só quer dizer que meu cérebro é uma bagunça.
— Quer dizer que seu dom é empático. E muito forte. — completou Morguyanna. — Você não é um caos. Você é uma bússola emocional. Só ainda não aprendeu a apontar na direção certa.
Vis respirou fundo. Não era fácil ouvir aquilo. Nunca fora. Mas algo na voz de Morguyanna fazia com que suas defesas naturais... derretessem. Como se a própria floresta confirmasse: “confie nela”.
— Eu nunca consegui controlar nada disso. — Vis confessou. — Às vezes, sinto tudo. Amor, raiva, medo, de pessoas que nem estão por perto. E às vezes... nada. Um vazio que me engole. Aí dizem que sou instável. Bipolar. Louca.
— Talvez você seja todas essas coisas. — disse Vycktor, se aproximando. — Mas também é forte. E necessária.
Vis olhou para ele como se nunca tivesse ouvido isso antes.
Morguyanna parou entre os dois. A floresta começava a clarear, revelando uma trilha antiga que ninguém além dela conhecia.
— Estamos perto da cabana. — avisou. — Mas antes, preciso que me jurem algo.
— Lá vem... — murmurou Vis.
— Que não importa o que descobrirem sobre mim... vocês não vão fugir. Nem me odiar.
Vycktor se aproximou, seus olhos dourados escuros, intensos.
— Não prometo não fugir. Nem não odiar. Mas prometo lutar contra isso... se você prometer o mesmo por mim.
Ela assentiu, com os olhos úmidos.
— E você, Vis?
— Ah, mulher... já tô aqui no meio do mato, sem internet, com um lobo quase morto e uma bruxa misteriosa. Eu já passei do ponto de volta. — ela deu um passo à frente. — E eu nunca tive uma amiga de verdade. Então se você me disser que carrega um dragão dentro de você... eu só vou querer saber se ele solta fogo mesmo.
Elas sorriram, cúmplices.
A cabana surgiu entre as árvores como se brotasse do chão — feita de madeira escura, coberta de musgo e com uma árvore crescendo atravessada pelo telhado.
Vycktor olhou ao redor, instintivamente em alerta.
— Isso é seguro?
— É mágico. — disse Morguyanna. — Ninguém encontra este lugar se eu não quiser.
Eles entraram.
O interior da cabana era aquecido por uma lareira ancestral. Ervas pendiam do teto. Livros empilhados em cantos impossíveis. Um gato preto os observava do alto de uma estante, julgando em silêncio.
Vis arregalou os olhos.
— Tá... isso é muito mais legal do que eu imaginei. Tem até gato místico. — ela se aproximou dele. — Qual o nome dele?
— Caos. — respondeu Morguyanna.
— Claro. — riu Vis. — Faz todo sentido.
Vycktor se sentou em uma poltrona antiga. A dor voltava devagar, mas sua mente estava mais clara. A voz interior — o lobo — ainda estava em silêncio, mas ele sentia... que logo falaria.
Morguyanna se ajoelhou diante dele. Tirou uma erva seca de um pote, esmagou entre os dedos e sussurrou algo em uma língua esquecida.
— Isso vai arder. — avisou, antes de tocar a ferida em seu ombro.
Vycktor gemeu, os músculos tensionados.
— Você gosta de dor? — ele perguntou, tentando sorrir.
— Só de vê-la indo embora. — ela respondeu, com firmeza.
Vis os observava em silêncio, os olhos marejados, mas não sabia por quê. Talvez estivesse sentindo demais. Ou talvez... fosse o começo de algo maior.
A floresta, lá fora, continuava a escutar.
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