O céu estava coberto de nuvens pesadas quando encontraram o corpo de Helena Rocha. O lago refletia o cinza do céu como um espelho rachado. A água, quieta demais. Quase cúmplice.
Ela estava deitada à margem, os cabelos colados ao rosto, o corpo frio como pedra. Os olhos fechados escondiam os gritos que ninguém ouviu. A boca, entreaberta, ainda parecia suplicar por socorro.
A cidade murmurava. A escola silenciava. E a polícia... encerrava. "Suicídio", disseram. Um bilhete, mal rabiscado, encontrado dentro da mochila dela: “Desculpa por tudo. Eu cansei.”
Simples assim. Mais um corpo. Mais um número.
Mas o que ninguém sabia... é que Helena ainda estava aqui.
Presente. Presa. Fúria e dor costuradas à alma. Ela flutuava entre os mundos como bruma densa, invisível aos olhos, mas viva nos sussurros e arrepios.
Naquela noite, a escola parecia mais escura do que nunca. O gerador havia falhado três vezes. As luzes piscavam, como se algo brincasse com os fios da realidade.
Valentina, sua ex-melhor amiga, passava rímel diante do espelho do banheiro feminino. O silêncio ao redor era incômodo, mas ela fingia não notar. Como sempre fazia. Ultimamente, sentia como se estivesse sempre sendo observada — uma presença atrás de si, um arrepio na nuca.
Helena apareceu atrás dela por um segundo — uma silhueta pálida refletida no vidro, os olhos fixos nos dela. Valentina estremeceu, virou-se depressa, mas não viu ninguém. Só a pia pingando, ping... ping...
Ela riu nervosa.
— “Para de ser louca, Val…”
Mas quando olhou de novo para o espelho, o vidro estava embaçado. Uma frase se formava lentamente, escrita como se com um dedo molhado:
“VOCÊ ME DEIXOU.”
Valentina caiu sentada no chão frio, tremendo. Não precisava de mais nada. Ela sabia. Tinha traído Helena quando ela mais precisou. Sabia do que acontecia... e se calou.
Agora era tarde.
Enquanto isso, do outro lado da cidade, Arthur Mello acordou no meio da madrugada. O lençol colado ao corpo suado, o coração batendo como se tivesse corrido uma maratona.
O sonho ainda queimava em sua mente.
Ele estava nu dentro do lago, nadando em águas escuras. Braços o puxavam debaixo da superfície, e ele se debatia. Mas o medo se misturava com um calor estranho, quase prazeroso.
Ao emergir, viu Helena parada na margem. Também nua. O corpo molhado reluzia sob uma lua que não existia no céu real. Os olhos dela eram intensos, famintos. Sedutores.
Ela estendeu a mão. Ele quis tocar. Mas afundou de novo.
Acordou com um suspiro preso na garganta.
— “Merda…”
Pegou o celular. Uma nova mensagem, de um número desconhecido:
“Você lembra do que fez comigo naquela noite? Porque eu lembro de tudo, Arthur.”
Apagou o número sem pensar. Mas o arrepio não passou. Sentia como se alguém o observasse do escuro do quarto.
E parte dele — parte suja, enterrada — ainda desejava Helena. Mesmo agora. Mesmo morta.
Enquanto isso, Lívia Andrade, a garota estranha da turma do terceiro ano, acordava com um sobressalto. Um zumbido ecoava nos ouvidos. Ela havia sonhado com uma floresta úmida e sombria, onde caminhava descalça até a margem de um lago.
Lá, Helena a esperava. Os cabelos pingavam. Os olhos não pediam — exigiam.
— “Você me escuta?” — sussurrou uma voz sem boca.
Lívia caiu da cama, tremendo. Quando acendeu o abajur, um susto: na parede, bem acima da cabeceira, algo havia sido escrito com tinta escura, escorrida:
“ESCUTA.”
Ela ficou paralisada. Os dedos gelados, os lábios entreabertos. Mas, em vez de correr... ela sentou-se, encarando a palavra.
Algo dentro de si despertava. Como uma semente esquecida no escuro, finalmente tocada pela luz.
Na escola, os corredores ganharam um eco estranho. Apagões, objetos movendo sozinhos, alunos ouvindo choros onde não havia ninguém. Alguns falavam de "presenças". Outros apenas rezavam baixinho, com medo.
Os boatos cresciam. E no centro de tudo, um nome reaparecia nos sussurros: Helena.
A diretora tentava manter a ordem, mas nem ela acreditava mais na explicação oficial. A culpa pesava. A ausência de câmeras, a falta de cuidado com as denúncias que chegaram no mês anterior... tudo a consumia.
E Helena via tudo.
Do canto da sala, flutuava como sombra, absorvendo a culpa, o medo, a raiva.
Ela se alimentava da dor dos vivos.
E queria mais.
Queria justiça. Queria que cada um sentisse o gosto da solidão, do desprezo, da humilhação que ela engoliu calada. Mas não só isso.
Ela queria ser sentida. Desejada. Temida.
Queria fazer Valentina chorar pelo toque que negou. Queria invadir os sonhos de Arthur até ele implorar por perdão — ou prazer. Queria usar Lívia como ponte, como olhos, como arma.
E acima de tudo… ser ouvida.
Porque Helena Rocha não estava morta.
Ela estava despertando.
Um vento gelado percorreu os corredores da escola, fazendo as janelas tremerem e os cartazes nas paredes dançarem como mãos nervosas. O silêncio, antes opressor, tornou-se um convite para algo — ou alguém — se mover.
Helena abriu os olhos pela primeira vez desde a morte. Não havia escuridão nem luz, apenas uma sensação de estar entre dois mundos. Sentiu o corpo etéreo flutuar acima do lago onde tudo começara. As correntes que a aprisionavam se desfizeram como névoa ao toque do sol nascente.
Ela desceu em direção à margem. Cada passo deixava rastros de geada na relva, como cicatrizes no tecido da realidade. Lá, viu seu reflexo quebrado na superfície da água — não mais o corpo sem vida, mas uma forma translúcida, os olhos brilhando com uma fúria contida e um desejo insaciável.
“Eles ainda me veem?” — pensou, e percebeu que não. O mundo dos vivos ainda não a reconhecia plenamente. Ela precisava de algo mais: um laço, uma memória, um medo que os prendesse a ela.
No mesmo instante, Valentina voltou ao banheiro do segundo andar. O espelho, agora limpo, não exibia mais sua própria imagem, mas uma sombra pálida atrás dela. Ela sentiu um arrepio e, pela primeira vez, não teve dúvida.
“Helena?” — sussurrou, mas o nome ecoou vazio.
A frase “VOCÊ ME DEIXOU” já não estava mais no vidro. Em seu lugar, um símbolo estranho, como um círculo incompleto, havia sido desenhado em vapor — um convite indecifrável.
Arthur, ainda em transe, ouviu o tilintar de uma pulseira contra o piso de madeira. Levantou-se e viu, ao pé da cama, um bracelete de prata que não lhe pertencia. Era a mesma pulseira que Helena usava no sonho. Ele a pegou, e uma corrente de memórias se acendeu: risos abafados, lágrimas escondidas, promessas quebradas.
No instante em que tocou o bracelete, uma voz familiar soou em sua mente:
> “Encontre-me… antes que eu me canse de esperar.”
Ele estremeceu. Sabia que o próximo passo o levaria de volta ao lago — ao lugar onde tudo terminara, mas onde tudo começaria de novo.
Lívia, despertada por um chamado inaudível, caminhou até a janela. Lá fora, o pátio da escola estava vazio, exceto por um objeto solitário: o caderno envelhecido que ela própria escrevera. Ele jazia sobre a relva, aberto na página onde o nome de Helena surgia cercado por três círculos.
Sem pensar, ela correu para fora, sentindo cada gota de orvalho como uma agulha na pele. Ao se abaixar para pegar o caderno, percebeu que algo havia sido acrescentado: uma anotação escrita em letras firmes e trêmulas:
> “Eu escolho quem ouve.
Eu escolho quem vive.”
O coração de Lívia disparou. Ela sabia que Helena não brincava mais. Agora, não era apenas sobre vingança: era sobre poder.
O sol rompeu o horizonte, tingindo o lago de vermelho pálido. Os primeiros alunos chegaram, confusos ao ver a relva marcada por pegadas que iam da água até a porta principal. Ninguém conseguia explicar o rastro gelado que parecia pulsar sob seus pés.
Valentina, Arthur e Lívia se encontraram diante do portão, cada um segurando um objeto deixado pela presença de Helena: a frase no espelho, o bracelete, o caderno. Sem trocar palavras, souberam o que deviam fazer.
Helena os observava do outro lado do portão, um brilho etéreo nos olhos. Ela estendeu a mão na direção deles, e por um instante, o mundo dos vivos e o dos mortos pareceram se sobrepor.
— Se vocês me ouvirem… — sua voz soou na mente dos três —
— …a verdade será revelada.
E, naquele instante, o lago exalou um vapor branco que subiu até o céu. Os três, de mãos dadas, sentiram a corrente fria envolver seus corpos. Sabiam que haviam dado o primeiro passo para libertar Helena — e, possivelmente, para se perderem para sempre.
O lago permaneceu imóvel, como um espelho pronto para refletir segredos ainda mais sombrios.
O colégio amanheceu pesado. As nuvens baixas pareciam apertar o ar contra os telhados, e a umidade escorria pelas paredes como lágrimas antigas. Os alunos circulavam em silêncio, passos hesitantes ecoando pelos corredores vazios — como se todos soubessem, mesmo sem dizer, que algo ali havia mudado para sempre.
Valentina
Na sala 3B, Valentina segurava o caderno encontrado no pátio. A flor seca ainda repousava entre as páginas e, ao encarar seu nome em tinta vermelha escura, seu coração deu um salto doloroso. Ela passou o dedo sobre as letras, sentindo o papel áspero como pele machucada.
— “Quem fez isso?” — murmurou, voz trêmula, mas o eco devolveu apenas o silêncio.
O ar pareceu comprimir seu peito. Cada batida retumbava nos ouvidos, misturando culpa e medo. Memórias de risos e confidências afloraram: Helena sorrindo no vestiário, seu abraço suave antes do pesadelo. Valentina fechou os olhos, tentando afogar o turbilhão.
Quando reabriu, sentiu o olhar de todos pairando sobre ela, mesmo sem ninguém encará-la diretamente. O colégio inteiro parecia observar cada passo seu, acusando-a em silêncio.
Enquanto isso…
Lívia
Mais tarde, a biblioteca estava deserta. As estantes projetavam sombras longas sobre o piso encerado, e o silêncio parecia sugar o som dos próprios passos. Lívia sentou-se num canto escuro, o caderno antigo apoiado nos joelhos. Os dedos rabiscavam símbolos que ela mal compreendia — como se alguém guiasse sua mão.
Cada sopro de vento que entrava pela janela movia as páginas, trazendo fragmentos de memórias: risos abafados, passos apressados, a mão trêmula de Helena contra a porta do vestiário. O ar frio fazia os pelos de seu corpo se arrepiarem.
— Ela quer justiça... — sussurrou, a voz quase inaudível.
Num instante, a porta de vidro rangeu sozinha. Lívia ergueu os olhos e, na superfície polida, formou-se uma única palavra em vapor:
Sim.
Seu coração disparou. Um calor subiu pelo rosto. Ela fechou o caderno com força, sentindo as páginas se moverem como asas de morcego. Agora, não havia como negar o chamado.
Horas depois…
Arthur
Arthur jantou em silêncio, cada garfada parecia afundar como pedra no estômago. Tentou se concentrar no tilintar da colher contra o prato, mas a cabeça rodava com imagens do sonho.
— “Merda...” — sussurrou, ainda sentindo o toque gelado na nuca.
Levantou-se e foi até o banheiro. Acendeu a luz, encarou o espelho e passou as mãos no rosto. Seus olhos, fundos de tanto sono e medo, encontraram um presságio: um chiado baixo ecoou pelo corredor — como uma fita antiga sendo rebobinada.
Ele ficou imóvel, o coração martelando no peito. O som cresceu, metálico e insistente, como se algo rastejasse por trás da porta.
O espelho embaçou e, lentamente, formaram-se letras:
> “Deseja.”
O suor escorreu pela testa de Arthur. A respiração dele ficou ofegante. Ele sentiu algo o observando por trás. Quase girou o corpo para fugir, mas ficou paralisado. Sabia que, se se virasse, veria Helena de novo.
— “Não pode ser...” — murmurou, voz trêmula.
Ele estendeu a mão para tocar o espelho, mas recuou quando a superfície gelada lhe queimou a pele. Foi como um aviso.
Transição
Enquanto o sol se punha e o colégio se preparava para fechar, um presságio pairou no ar: os sinos tocaram sozinhos, ecoando pelas salas vazias. Um vento gelado percorreu os corredores, apagando lâmpadas e sussurrando nomes.
Clímax no espelho
Na manhã seguinte, Valentina voltou à sala de dança interditada. O collant preto colava-se ao corpo, e cada respiração reverberava no peito. Ela hesitou na soleira, sentindo a madeira fria sob os pés descalços.
Ligou o aparelho de som, buscando consolo na melodia suave. A música começou, mas logo estalou num ruído estridente e se distorceu em sussurros:
— “Por que você não me ajudou, Val?”
O sangue gelou. Valentina parou no centro da sala, ofegante, as mãos tremendo. Seu impulso era correr, arrancar o collant, desaparecer no chão frio — mas algo a manteve ali.
Ela fechou os olhos, lembrando do rosto de Helena: o sorriso ingênuo, o abraço final.
Quando abriu, olhou para os espelhos que cobriam a parede. Sua imagem hesitou por um segundo. Então Helena surgiu ali, nos reflexos: vestida de branco, cabelos pingando, olhos negros como poços.
Valentina recuou, quase tropeçando. Medo e desejo se entrelaçaram num nó no peito. O ar ficou denso, como se o mundo inteiro aguardasse seu próximo movimento.
— “Eu… eu sinto muito...” — sussurrou, voz quebrada.
Helena deslizou para fora do espelho, silenciosa como neblina. Valentina sentiu as pernas falharem. Quando tentou dar um passo atrás, o corpo se recusou. Helena aproximou-se, ergueu a mão e tocou-lhe a nuca — um beijo frio, como febre congelada.
Num estalo ensurdecedor, os espelhos estilhaçaram-se. Pedaços de vidro voaram em todas as direções, cortando o ar com um som metálico. Valentina gritou, um som cru que misturou dor e alívio. O chão tremeu sob o impacto dos cacos.
A coordenadora irrompeu na sala, mas parou diante da cena: Valentina, de joelhos, lágrimas e sorrisos simultâneos, o olhar perdido entre culpa e rendição.
Vídeo no auditório
Na tarde seguinte, o auditório estava lotado para a homenagem a Helena. Murmúrios nervosos se espalharam quando o projetor falhou duas vezes antes de finalmente ligar. O chiado de fita sendo rebobinada ecoou pelos alto-falantes, fazendo o público estremecer.
A tela acendeu, exibindo um vídeo caseiro: Helena viva, desesperada, chorando no vestiário.
— “Alguém me ajuda... por favor...” — sua voz falhou no silêncio.
A imagem congelou, ficou preta. Um segundo de silêncio absoluto. Depois, um único grito que rasgou a quietude.
As luzes piscaram, e a diretora correu para desligar o projetor, mas não havia botão que acalmasse o horror. Os alunos se levantaram em pânico, empurrando uns aos outros. Arthur sentiu a mão gelada de Lívia apertar seu braço, firme como correntes invisíveis.
Fechamento de capítulo
Na saída, Arthur e Lívia pararam diante do mural de fotos de Helena. Uma folha seca rodopiou entre eles e pousou sobre a imagem dela sorrindo em um palco de balé.
Arthur virou-se para Lívia, olhos marejados e voz embargada:
— “Foi você quem passou o vídeo?”
Lívia ergueu o caderno, exibindo a flor seca e as páginas rabiscadas. No reflexo de seus olhos, Arthur viu não apenas sua amiga, mas o brilho faminto de Helena, misturado ao deleite de quem tem o poder da vingança.
— “Ela quer que todos vejam. Quer que sintam o que eu senti.”
— “Ela está te usando.”
— “Ou talvez eu esteja deixando.”
Lívia sorriu — um sorriso que não era só dela, mas de Helena. Arthur deu um passo para trás, sentindo o eco do sussurro “Desejo” vibrar pelos corredores vazios.
E soube, sem precisar de mais nada, que o pior ainda estava por vir.
A água estava escura.
Helena afundava lentamente, os cabelos flutuando ao seu redor como tentáculos de uma medusa esquecida. As luzes da escola tremeluziam ao longe, distorcidas pelo movimento da superfície. O som era abafado, como se o mundo tivesse sido silenciado por um travesseiro molhado.
Ali, no fundo do lago, o tempo parou.
Mas sua mente não.
As lembranças batiam como marretas contra o peito. Fragmentos da última noite, embaralhados, ainda ecoavam.
— “Vamos só zoar ela um pouco, vai ser engraçado…”
— “Ninguém vai saber, ela mesma vai sumir por vergonha depois.”
— “Filma, Val, filma isso...”
Helena estava viva, sim. Mas presa. Presa em memórias que não passavam. Que sangravam.
Tudo começou com um convite inocente. Arthur havia enviado uma mensagem, dizendo que queria conversar.
— “Só nós dois. No lago. Me perdoa por tudo, Helena. Por favor.”
Ela quase não foi. Mas o coração... era burro.
E parte dela ainda queria acreditar.
Quando chegou, ele estava lá. Sorridente. Bonito. Do jeito que ela lembrava quando tudo começou. A pele bronzeada, o cabelo bagunçado, o olhar de quem sabia exatamente o que dizer para desmontá-la.
— “Você veio...”
— “Você me chamou.”
Arthur caminhou até ela devagar, pegou sua mão, e olhou nos olhos. A voz dele era baixa, carregada de algo que ela não conseguia decifrar.
— “Me desculpa... por fazer você se apaixonar.”
Helena arregalou os olhos. A frase era um soco. Mas ele não a largou.
— “Desculpa... por não ter sentido o mesmo.”
Ela quis responder, mas foi aí que ouviu as risadas.
Valentina saiu de trás das árvores, com o celular apontado, gravando.
— “Ai, que drama, Helena. Vai chorar agora?”
E então vieram os outros. Cinco. Talvez seis. Máscaras de carnaval. Capuzes. Garrafas de bebida.
— “Olha quem caiu de novo no teatrinho do Arthur.”
— “Ela achou mesmo que ele gostava dela, coitada.”
Helena recuou. Os pés afundando na lama. Os olhos molhados — não só de lágrimas. De confusão. De medo.
— “Para... isso não é engraçado...”
Mas ninguém parou.
Riram. Correram ao redor dela. Gritaram. Alguém tirou seu celular. Outro puxou o vestido. Não chegaram a violentá-la… mas a expuseram. A quebraram com palavras. Com imagens. Com o toque cruel da humilhação.
E quando ela correu em direção ao lago, desesperada, escorregou. Caiu. Ninguém ajudou.
Arthur apenas observou.
Sem rir.
Sem falar.
Sem fazer nada.
A última coisa que Helena ouviu antes de afundar foi:
— “Melhor assim. Ela vai sumir. Vai fazer um favor.”
Agora, presa entre mundos, Helena revivia esse momento todos os dias. Mas algo estava diferente agora.
O ódio estava amadurecendo.
Já não era só raiva. Era foco.
Ela não queria apenas fazer justiça.
Ela queria que eles sentissem.
A vergonha.
O medo.
O desejo sem resposta.
Ela queria invadir a mente deles. Tocar seus medos mais íntimos. Reescrever suas vontades.
Transformar culpa em obsessão.
Lívia sonhou com o lago.
Estava nua, flutuando sobre a água escura. Ao seu redor, pétalas de flores mortas formavam um círculo. E Helena surgia por baixo da superfície, com olhos brilhantes e boca entreaberta.
— “Você me ouve, Lívia?”
— “Sim...”
— “Você me deseja?”
Lívia hesitou. Mas seu corpo respondeu antes que pudesse mentir. Sentiu o arrepio. A curiosidade. O medo quente. E deixou que Helena subisse, tocasse, se fundisse.
O beijo era úmido, pesado, como se a língua de Helena carregasse memórias líquidas, que escorriam garganta abaixo.
— “Então sente. Tudo o que eu senti.”
E então veio a dor.
E o prazer.
E a sensação de estar morrendo… e despertando ao mesmo tempo.
Lívia acordou ofegante. Molhada. Assustada. Excitada.
O caderno estava ao lado da cama, com novas palavras escritas. Palavras que ela não lembrava de ter colocado ali:
> “A próxima será Júlia.
Queimou meu segredo.
Vai sentir a mesma chama.”
Ela conhecia Júlia. A líder do grupo popular. A que começou os boatos. A que compartilhou os vídeos.
E agora… estava marcada.
Na escola, Júlia entrou no banheiro do segundo andar com uma amiga, rindo alto.
— “Aquilo tudo ontem foi um susto. Vírus no sistema. Essa escola é uma piada.”
Quando a amiga saiu para buscar papel higiênico, Júlia ficou sozinha diante do espelho, retocando o batom.
Mas algo no reflexo chamou sua atenção. Havia um borrão. Uma sombra atrás dela.
— “Tem alguém aí?”
Nada.
Ela se virou. Vazio.
Mas quando olhou de novo, o espelho mostrava seu rosto… derretendo.
Gritou. E a luz apagou.
Helena sussurrou em seu ouvido, quase carinhosa:
— “Você queimou meu nome... agora vai arder também.”
E enquanto as lâmpadas estouravam, e a fumaça enchia o banheiro, Júlia apareceu do lado de fora.
Correndo.
Chorando.
Com a blusa chamuscada e bolhas nos ombros.
Disse que “alguém” tentou atear fogo nela.
Mas não havia ninguém lá dentro.
Só o reflexo.
Só a flor seca no chão.
Só o nome na parede, rabiscado com batom:
> “Helena.”
A escola estava mergulhada em um silêncio desconfortável no dia seguinte.
Júlia não apareceu. Os boatos eram os mais variados: surto, tentativa de suicídio, internação por trauma psicológico. Mas ninguém — além de Lívia — sabia da verdade.
Helena estava escolhendo um por um.
E ela não estava brincando.
Lívia estava sozinha na sala de leitura quando sentiu a presença outra vez. Como uma mudança súbita na pressão do ar. Como se o próprio tempo tivesse segurado o fôlego.
— “Você voltou,” ela murmurou, sem levantar os olhos do caderno.
As páginas tremiam sozinhas, como se viradas pelo vento — ou por dedos invisíveis.
E então ela ouviu a voz.
— “Estou em você agora. E você me deixou entrar.”
Lívia fechou os olhos. A pele arrepiava, e um calor subia da base da espinha até a nuca. Não era medo. Não apenas. Era algo mais profundo. Mais íntimo.
Helena estava se fundindo a ela. Corpo, desejo e dor, tudo num mesmo ritmo.
— “Você quer que eu pare?” — perguntou a voz, melódica, arrastada, quente.
— “Não…” — Lívia respondeu, quase sem som, os lábios entreabertos.
Ela sentiu mãos invisíveis tocarem sua cintura. Subirem pelas costelas. E depois… um beijo, suave como o primeiro sopro da morte.
Na biblioteca vazia, ela se curvou para frente, suprimindo um gemido. Sabia que, se alguém a visse assim, pensaria que estava enlouquecendo.
Mas não era loucura.
Era Helena.
E ela era viciante.
Mais tarde, naquele mesmo dia, Lívia encontrou Arthur na saída da escola. Ele estava pálido, as olheiras fundas, a expressão paranoica. Carregava um livro contra o peito como se fosse um escudo.
— “Aconteceu de novo,” ele disse, sem rodeios. “Com a Júlia.”
Lívia fingiu surpresa.
— “O que você quer dizer?”
— “Não brinca comigo. Eu sei que você sabe. Eu sinto a presença dela… nos lugares onde você passa.”
Lívia sorriu, de leve. Um sorriso triste.
— “Então talvez você devesse perguntar o que foi que fez, Arthur.”
Ele a encarou. O silêncio entre os dois era pesado, carregado de uma tensão que não era apenas medo. Era desejo. Culpado, sujo, incontrolável.
— “Eu não fiz nada,” ele disse, a voz trêmula.
— “Esse é o problema,” Lívia respondeu. “Ninguém fez nada.”
Antes de se virar e ir embora, ela encostou os lábios no ouvido dele e sussurrou:
— “Ela lembra de tudo, Arthur. Até do que você não teve coragem de impedir.”
Arthur ficou parado ali, como se tivesse sido enterrado de pé.
Naquela noite, Helena voltou para ele.
Apareceu deitada ao seu lado, nua, molhada, o cabelo pingando como se tivesse saído direto do lago.
Arthur queria gritar, mas não conseguia. O corpo não obedecia. Só os olhos podiam se mover. E os dela o prendiam.
— “Por que me deixou afundar?” — ela perguntou, com um tom de voz que misturava dor e luxúria.
— “Eu… eu não sabia...”
— “Mentira.”
Ela subiu sobre ele, a pele gelada, o toque etéreo. Os corpos não se tocavam no mundo físico. Mas no mental… estavam colados. Fundidos.
Arthur chorava. Mas também gemia.
— “Isso é punição?” — ele perguntou, entre o medo e o prazer.
— “Não.”
Helena sorriu.
— “Isso é só o começo.”
E então ela se foi.
Deixando o quarto frio.
O lençol encharcado.
E a alma dele mais rachada do que nunca.
Longe dali, na casa de Lívia, o caderno se abriu sozinho.
As páginas tremularam até encontrarem a próxima folha em branco.
A flor seca caiu do meio das folhas.
E uma nova palavra surgiu, escrita em tinta vermelha:
> “Gabriel.”
Era o próximo.
E Helena estava mais forte.
Mais faminta.
Mais viva do que nunca.
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