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Game Over Is Not An Option: The Villainess Route

Piloto

A luz pálida da tela do computador ardia em meus olhos cansados, refletindo nas minhas pupilas dilatadas. O quarto era um casulo de sombras, os lençóis embolados ao meu redor, como se tentassem me prender ali, me advertindo de que já era tarde. Tarde demais. Mas o sono se recusava a vir. Não enquanto Coração de Liliene: A Dama do Jogo continuava me consumindo.

Eu deveria ter me desconectado há horas. Mas, vamos ser realistas, quando foi a última vez que eu fiz algo que fosse realmente bom para mim? Aquelas telas coloridas me chamavam como uma droga barata. Só mais um capítulo. Só mais uma missão. Mas, claro, a cada clique, o buraco da obsessão se aprofundava.

O clique do mouse ecoava na escuridão – seco, irritante, um lembrete cruel da minha obsessão. Como se a mecânica do jogo fosse projetada para me irritar de propósito, me desafiando a continuar, como se soubesse que eu não ia conseguir me afastar. No começo, tudo havia sido fácil. Jogar como Liliene era como deslizar por um conto de fadas onde cada escolha me guiava para um final inevitavelmente feliz. Sorrisos sinceros, amores destinados, proteção garantida. O jogo me embalava, sussurrava que eu estava no controle.

Claro, "controle". Porque quem realmente tem controle em um jogo que te manipula? Ah, sim. Eu, a grande estrategista, pensando que seria só mais uma história fácil. Só que então, eu escolhi Evelyne.

A vilã. O modo difícil. A outra possibilidade.

E foi um pesadelo. Não um pesadelo daqueles que acordam com você tremendo, mas aquele tipo de pesadelo insidioso, do tipo "estou comendo a mesma fatia de torta amarga há horas e ainda assim não consigo parar". Cada decisão parecia uma armadilha armada para me esmagar, como se o próprio jogo me odiasse por tentar salvar uma personagem que ninguém mais queria. Evelyne não era amada. Não importava o quanto eu planejasse, calculasse as opções de escolha – o destino dela era a ruína. Eu só conseguia arrastá-la viva se estivesse disposta a pagar com moedas do jogo, aquelas malditas moedas compradas com o meu próprio dinheiro. E o jogo não estava nem aí. Afinal, quem precisa de um herói quando se tem uma vilã tão dramática e completamente sem salvação, né?

E agora, mais uma vez, lá estava ela.

Evelyne. A musa do sofrimento digital. Seus pixels tremulavam na tela, imóveis, no centro do tribunal virtual. O vestido escuro, outrora símbolo de sua nobreza, agora parecia um fardo que a puxava para o chão, como se o peso do mundo estivesse sobre seus ombros. O colar maldito reluzia sobre a bancada, uma peça frágil, mas letal. Prova de seu suposto roubo. Eu já sabia o que aconteceria antes mesmo da tela escurecer.

O capítulo se chamava O Tribunal. Quando vi esse título, não entendi de imediato. A última cena ainda ecoava na minha mente – o chá da princesa Anne. Evelyne, uma penetra involuntária, arrastada para o evento por capricho do jogo. Eu até me peguei perguntando se o criador de Coração de Liliene queria realmente que ela sobrevivesse ou se ele se divertia me fazendo entrar nessa espiral sem fim.

E então veio o segundo capítulo. A tela se abriu para o quarto dela. Pequeno demais para uma nobre. Escuro. Sufocante. As paredes pareciam se fechar, como se o próprio espaço fosse uma jaula, e Evelyne ali, no centro. Eu sentia o peso da sua prisão, não só do corpo, mas da alma. A solidão dela saltava da tela e batia no meu peito. Como algo vivo. Como um lembrete cruel de que nem sempre há redenção para quem tenta ser mais do que o sistema quer que seja.

Marina. A empregada maldita, uma predadora disfarçada de serva

Ela se movia pelo quarto com uma delicadeza fingida, como se tudo aquilo fosse normal, como se Evelyne fosse apenas uma peça do tabuleiro que ela poderia manipular. Já sabia o que viria depois: os beliscões, os sorrisos tortos de prazer cada vez que Evelyne não podia revidar. O pão mofado, o leite azedo, deixados ali sem cerimônia, como se fosse o mínimo que ela merecia. Pequenos atos de crueldade diários que no modo fácil da rota de Liliene, onde as coisas eram... mais bonitinhas, jamais existiriam.

Tentei, em vão, denunciar para o Duque quando a opção surgiu. Mas, mais uma vez, a barra de carisma despencou. 

Golpe fatal.

— Como é possível perder um jogo só porque o carisma chegou a 0%? — falei alto, mais irritada do que pretendia. Minha voz estava rouca de exaustão. A tela diante de mim brilhava, gélida e impiedosa, refletindo meu olhar transtornado. Não havia como escapar. A cada escolha, eu estava mais presa àquele ciclo. E, pior ainda, Evelyne também estava.

Evelyne mal tinha se levantado da cama quando os guardas chegaram para levá-la. Espera aí... O que de fato está acontecendo? O primeiro capítulo terminou tranquilo, e agora, de repente, Evelyne estava sendo arrastada para um tribunal? O que eu fiz de errado?

Esse jogo é insano. Do nada, Evelyne virou ré no tribunal e ainda foi amarrada? Eu só tentei salvar a vilã, porra! O que eu fiz?

O rosto dela estava ali, mais rígido do que nunca, sem emoção. Só resignação. Como se já soubesse que não importava o quanto eu tentasse, ela estaria sempre condenada. E, eu... eu só assistia, impotente, enquanto mais uma chance se esvaía entre meus dedos.

— Ah, claro, quem não adora ver uma heroína se fudendo em cada capítulo? — Eu resmunguei, com a voz rouca, mais de frustração do que de qualquer outra coisa. Mas, ao mesmo tempo, sabia que não tinha escolha. O jogo estava ali, desafiador, com opções que eram todas armadilhas. Não havia escolha certa, só mais dor.

Eu sabia que era só um jogo. Mas parecia tão real. Como se, de algum jeito, minha própria frustração estivesse ali, junto com a dela. Evelyne não tinha o glamour da heroína. Ela não estava ali para brilhar. Ela estava ali, só para sofrer. E eu, mais uma vez, era obrigada a assistir.

Um trovão estourou do lado de fora, sacudindo as janelas, chamando minha atenção. A escuridão foi cortada por um clarão. O jogo continuava, sem piedade. E eu, mais uma vez, estava sem saber o que fazer.

Meu coração disparou.

Minhas mãos se moveram sem que eu tivesse tempo de processar, buscando o mouse para reiniciar o capítulo, como se fosse a única forma de escapar da crescente sensação de descontrole—

A tela piscou.

Uma.

Duas vezes.

E apagou.

A escuridão se espalhou, densa e sufocante, como algo vivo, pulsante. Eu podia sentir o vazio tomando conta de mim, a calma que antecedia o pavor. O silêncio ficou pesado, como se o tempo tivesse parado, esticado entre o nada e o que estava por vir.

Então, lá fora, a chuva aumentou de intensidade.

Não, não apenas aumentou.

Ela se tornou violenta.

As gotas martelavam a janela, batendo contra ela com uma força insana, como se quisessem atravessá-la. Como se algo lá fora estivesse tentando entrar, forçando-se para dentro da tempestade que parecia consumir tudo. Cada pancada parecia um grito desesperado.

Minha pele se arrepiou.

Eu tentei me mover. Mas não consegui, meu corpo estava congelado.

O mundo ao meu redor começou a tremer, a distorcer, como se a realidade estivesse se fragmentando, se despedaçando em pequenos pedaços, um glitch grotesco tomando conta de tudo. O quarto escuro, que antes parecia familiar, agora se dissolvia diante dos meus olhos. As sombras, antes sólidas, começaram a se pixelar, desmoronando como se fossem feitos de pura instabilidade. E meu corpo... meu corpo parecia estranho. Leve demais. Frágil. Como se eu já não estivesse mais nele, como se tudo aquilo fosse um lugar que não me pertencia.

O ar ficou pesado, como se uma força invisível pressionasse meu peito, dificultando cada tentativa de respirar profundamente. Meus membros começaram a formigar, e então—

Uma tela de jogo translúcida clareou na minha frente com uma frase.

"Evelyne, Julgada pelo roubo do colar da princesa.

Para escapar das garras do destino, deverá criar seu próprio final feliz.

Escolha corretamente e liberte Evelyne da morte iminente."

Meu estômago afundou como uma pedra, e os olhos, lacrimejando de cansaço, se recusaram a piscar. Cada palavra parecia perfurar minha mente, cavando um buraco fundo em minha consciência, como uma sentença cruel e inevitável.

— O quê...? O que isso significa?! — Minha voz saiu trêmula, frágil, entrecortada pelo desespero que começava a se entrelaçar com a incredulidade.

Mas a tela não me respondeu. Ela continuava lá, impassível.

As palavras começaram a se embaralhar, tremendo como um código quebrado. Os símbolos se dissolviam, desintegrando-se em fragmentos de luz que se espalhavam no ar, girando e rodopiando em minha volta, como se o próprio jogo estivesse se desintegrando ao meu redor. Cada letra parecia escapar de mim, uma maré de caos que ameaçava me engolir.

Minha visão se escureceu, a gravidade se desfez, e tudo que restou foi o abismo.

Eu caía.

Caía.

Caía—

Esperava o impacto que nunca vinha. O vazio me envolvia, gelado e insondável, como se eu estivesse sendo arrastada para um mar sem fim, sem direção, sem qualquer promessa de salvação.

E então, um choque.

A dor não veio de uma pancada, mas como uma lenta e cruel retomada de consciência. Meus sentidos começaram a voltar aos poucos, sentia como se minha pressão tivesse caído, como se estivessem sendo arrancados de um lugar distante, de um limbo. Primeiro, o tato—o peso incômodo das roupas contra minha pele, estranho, diferente. O toque áspero das cordas mordendo meus pulsos, implacável.

Minhas mãos estavam presas.

O aperto no meu peito apertou ainda mais, como se algo estivesse esmagando minha respiração.

Respirei fundo, desesperada por ar, como alguém que acabara de emergir de um afogamento, mas o ar parecia denso demais, difícil de engolir.

Isso não era real.

Isso não era possível.

O pânico subiu como um monstro faminto, rastejando pelas minhas entranhas, com garras afiadas, se agarrando a cada respiração. Ele se espalhava como fogo, consumindo minha razão.

Meu quarto... havia desaparecido.

Não havia mais cama, nem lençóis embolados, nem o brilho reconfortante da tela do computador. Nada daquilo que me ancorava à realidade que eu conhecia. O mundo ao meu redor estava dilacerado, uma distorção impossível, um eco deformado do que deveria ser. Eu não estava mais jogando.

Abri meus olhos com dificuldade, antes tudo estava escuro e a luz repentina me cegava, comecei a me acostumar aos poucos com a luz do ambiente e comecei a olhar em volta.

O ambiente era um peso esmagador sobre meus ombros, uma pressão invisível ao redor do meu pescoço. O ar tinha o cheiro denso de velas de cera e madeira antiga, mas havia algo mais, algo sufocante, que se enroscava nos meus pulmões como uma serpente, apertando minha respiração. A expectativa cruel da plateia, faminta por sangue, era palpável, uma presença quase física.

As tapeçarias escuras pendiam das paredes como espectros silenciosos, observando-me com seus olhos inexistentes, enquanto diante de mim, fileiras de cadeiras estavam ocupadas por nobres. Seus olhares me atravessavam, frios e impiedosos, como se já tivessem emitido seu veredicto. Não era apenas desprezo. Era uma condenação silenciosa.

Eu podia sentir o peso daquilo antes que qualquer palavra fosse dita.

A luz filtrada pelas cortinas douradas parecia suave, quase etérea, mas zombava de mim ao iluminar meu rosto pálido e trêmulo, revelando minha vulnerabilidade como se quisesse deixar claro o quão frágil eu era naquele lugar. O mármore negro do chão refletia minha silhueta distorcida, como se até mesmo minha própria sombra tivesse me abandonado, incapaz de me reconhecer.

Quis falar. Quis gritar. Mas minha garganta estava seca, selada, incapaz de emitir som. O peso daquele lugar se tornava insuportável, esmagando-me de dentro para fora.

Diante de mim, sentada em um trono ornamentado com detalhes dourados, uma mulher que parecia uma princesa, era me era bem familiar, me lembrava a princesa Anne que havia condenado Evelyne pelo roubo do seu colar. Seu olhar não carregava raiva nem indignação — apenas uma frieza absoluta, como se eu fosse uma peça defeituosa em um jogo que ela já sabia como vencer.

Meu corpo estava tenso, rígido, como se cada músculo estivesse se rebelando contra o confinamento que me impuseram. Mas não havia fuga. As cordas ásperas, mordendo meus pulsos, cortavam minha pele, lembrando-me incessantemente que eu não pertencia mais a mim mesma.

O tribunal estava lotado. Nobres alinhados em cadeiras luxuosas, suas vestes caras e pesadas, adornadas com ouro reluzente. Mas nada brilhou mais do que seus olhares de escárnio, de desprezo profundo. Predadores à espera do momento exato para dilacerar sua presa.

Eu era a presa.

O juiz levantou.

— Evelyne, acusada de roubo, você se encontra diante da corte.

As palavras caíram sobre mim como um chicote, mas não me alcançaram de verdade. Não consegui absorver. Não... Não, isso estava errado. Eu não podia ouvir isso.

Roubo? Evelyne? Minha mente se recusava a aceitar.

O som das palavras reverberava de uma maneira distante, como se viesse de um lugar onde eu não pertencia, uma realidade que se distorcia ao meu redor. Eu não era Evelyne. Eu não estava ali. O pânico crescia dentro de mim, uma pressão insuportável que apertava minha garganta, roubando-me o ar.

Olhei ao redor, desesperada, procurando por ela. Evelyne. A vilã. Ela deveria estar ali, não eu. Mas todos estavam olhando para mim.

Eu não sou Evelyne. Eu não sou... Não sou ela. Por que estão todos olhando para mim como se fosse...? Não. Não posso. Não posso ser ela

Meu peito subia e descia, o ritmo acelerado e descontrolado da respiração, como se meu próprio corpo fosse um prisioneiro da situação. As cordas nos meus pulsos pareciam cada vez mais apertadas, cortando minha pele como um lembrete cruel do que estava acontecendo. Eu não podia me mover, não podia lutar. As amarras eram mais do que físicas. Elas eram um reflexo de uma realidade sem escapatória.

Eu não sabia como cheguei até ali. Como fui puxada para esse lugar, para esse jogo macabro. Mas o peso daquilo me esmagava, e a dor, tanto física quanto emocional, se tornava quase insuportável.

Uma tela translúcida apareceu diante de mim.

📜 A VOZ SILENCIOSA DA CORTE SUSSURRA 📜:

PERCA SUA DIGNIDADE.

Escolha corretamente e sobreviva

A) 🔸 Implorar por perdão

B) 🔸 Aceitar levar um tapa da princesa

C) 🔸 Aceitar o exílio

Eu olhei para as opções que surgiram na tela:

“O que é isso? Que opções são essas? Por que isso está na minha frente?”

Meu olhar disparou ao redor. Ninguém parecia ver a tela suspensa diante de mim. Eles só estavam esperando minha resposta.

A voz do juiz continuava ecoando pela sala, e os nobres ao redor olhavam para mim com desprezo como se esperassem por algo.

Eu olhei para as opções novamente, eu devia escolher? 

Não! Eu queria gritar. Gritar para o jogo, para tudo o que estava acontecendo, Eu não sou Evelyne. 

Minha boca não abria e eu estava amarrada, mesmo tendo que escolher algumas das opções como eu faria? 

Primeiro preciso me acalmar e escolher uma das opções, preciso raciocinar para poder entender o que estava acontecendo comigo. Olhei as opções novamente.

A) 🔸 Implorar por perdão

B) 🔸 Aceitar levar um tapa da princesa

C) 🔸 Aceitar o exílio

⏳Tempo: 0:59

Eu estava limitada pelas escolhas, pelas opções, pelas regras já estabelecidas e ainda me aparece uma contagem de tempo limite! Não importava o que eu fizesse, o que eu pensasse, eu não tinha mais controle. E, pela primeira vez, uma sensação profunda de desespero me consumiu.

Minha mão tremia ao tentar apertar alguma tecla invisível, como se ainda estivesse diante do computador. Mas não havia ESC.

⏳Tempo: 0:48

Eu sabia que não poderia escolher a última opção. Aceitar o exílio sem resistir? Era uma sentença de fim de jogo, eu poderia morrer de verdade no meu mundo se morresse aqui? Já não sabia de nada.

⏳Tempo: 0:42

A única opção era tentar implorar perdão, mas eu sabia que meu carisma era um desastre. O valor era 5 negativos. Não havia como pedir desculpas com sinceridade e fazer os nobres me aceitarem. Eu tinha que ser mais estratégica. Eu tinha que fazer algo diferente.

⏳Tempo: 0:37

As palavras pareciam um peso em minha boca enquanto eu tentava pensar em uma forma de manipular a situação. Implorar perdão? Não. Eu não queria mostrar fraqueza, nem dar a eles o prazer de me ver em lágrimas. A princesa estava ali, me observando com uma expressão fria. 

⏳Tempo: 0:32

“B” Eu sussurrei e foi o único som que saiu da minha boca.

Primeira Jogada

⏳Tempo esgotado: escolha feita.

B) 🔸 Aceitar levar um tapa da princesa

Era humilhante, claro. Mas em cada palavra, em cada ato de desdém, eu encontrava uma chama dentro de mim que queimava mais forte do que a vergonha que me consumia.

A princesa se levantou, e o mundo parecia desacelerar. Os passos dela ressoavam como uma sentença, e a pressão em meu peito aumentava, como se o ar tivesse se tornado mais denso.

Ela se aproximou lentamente, e o sorriso em seus lábios era mais um julgamento do que qualquer gesto de bondade. Frio. Desdenhoso. Por um breve momento vi algo estranho, uma cor amarela piscou no topo da cabeça dela, pisquei novamente e havia sumido.

“Deve ser só uma luz que brilhou na tiara dela, certo?” Pensei.

— Eu perdoo você, Evelyne. — Sua voz era mais venenosa do que uma lâmina envenenada. — Mas antes de seguir com sua sentença, quero me assegurar de que você realmente entende a sua posição.

Meu estômago se revirou, e a sensação de impotência ameaçou me engolir.

Ela levantou a mão. O tempo parecia se esticar. Cada movimento dela, como um fio de seda cortando o silêncio, vinha com uma carga de humilhação que me fazia tremer por dentro. O tapa.

Minha cabeça virou violentamente para o lado, um zumbido tomou conta do meu ouvido e minha pele ardia como se estivesse em chamas. Por um segundo, minha visão ficou turva

Então, algo dentro de mim se incendiou. Uma indignação pura, crua, queimando como fogo incontrolável. A dor na minha bochecha me trouxe de volta à realidade – não era um sonho. Eu estava ali. Eu era Evelyne.

Antes que eu pudesse reagir, a princesa, com uma frieza sem limites, cuspiu no meu rosto. O líquido quente escorreu pelo meu rosto, ardendo como veneno, e tudo dentro de mim explodiu.

Aquilo foi a gota d´água.

Minha cabeça girava, mas meus pensamentos estavam mais claros do que nunca. O nojo da humilhação, a raiva da afronta, se transformaram em uma força invisível que me erguia. Meu corpo tremeu, mas não de medo. Era de fúria.

Respirei fundo.

Olhei diretamente para o juiz, para os nobres ao meu redor, e minha voz saiu suave, mas implacável, carregada de desprezo.

Abri a boca. O sorriso não era de fraqueza, mas cortante, de quem se reinventava naquele instante.

— Que generosa Vossa Alteza é.

Eu mesma fiquei surpresa. Não só pela ousadia das minhas próprias palavras, mas pelo fato de que consegui falar normalmente. Eu não havia sido silenciada, não estava limitada àquelas expectativas criadas por uma tela invisível.

Eu sabia, com absoluta certeza, que nunca entrei no quarto da princesa Anne enquanto jogava como Evelyne. Essa acusação era uma mentira crua.

O ar estava denso, como se as paredes do salão se aproximassem de mim, e o chão se tornasse cada vez mais instável. Eu senti o pavor tocar minha espinha, mas uma voz, pequenina e estridente, ecoava em minha mente: "Não se entregue."

Meu corpo estremeceu, a realidade estava prestes a se tornar um pesadelo palpável, e não tinha escolha a não ser me submeter a um dos destinos que me aguardavam. Mas... Algo dentro de mim despertava. Não seria esse o fim. Não enquanto eu ainda respirasse.

A princesa me encarava fixamente de onde estava em seu pequeno trono, os olhos dela tão gelados quanto lâminas afiadas. Eu podia sentir o ódio pulsando em sua presença, cortante como uma lâmina, ansiando pela minha ruína. Ela queria me dobrar. Queria me ver de joelhos. Mas isso não aconteceria.

Olhei por cima do ombro, encontrando os olhos da dama de companhia da princesa. Ela me encarava com aquele sorriso enigmático, quase como se estivesse se deleitando com minha humilhação. O que mais me incomodava, no entanto, era o brilho de satisfação nos olhos dela. Então era isso. Era tudo uma armação, uma peça montada para me derrubar.

Ela estava por perto quando eu fui ao palácio. Era ela quem podia ter colocado o colar nas coisas de Evelyne, sem que percebessem. Era um plano tão óbvio quanto traiçoeiro. Mas se eu acusasse a princesa, não havia garantias de que não seria silenciada imediatamente. O sistema estava sempre à espreita, pronto para me calar. E, nesse momento, minha voz, o que restava dela, já parecia frágil. Não sabia até onde minha liberdade de falar duraria.

Voltei a olhar para o juiz, o peso da sala inteira pressionando meu peito. Ele estava aguardando minha reação, e, mais uma vez, tive a sensação de que estava prestes a ser engolida pelo ambiente, mas minha mente estava clara. Eu não ia me deixar dobrar, não sem lutar até o último respiro.

— Agora que provei que estou disposta a aceitar tudo, por que estão alegando que fui eu quem roubou o colar só porque encontraram ele em minhas coisas? — A pergunta saiu da minha boca como uma lâmina afiada, cortando a tensão no ar. Meu tom foi firme, mas havia algo mais. A dúvida. Eu sabia que estava plantando a semente de uma incerteza que começava a crescer. — Eu fui à festa do chá da princesa, sim. Mas por que eu, Evelyne, roubaria um colar, quando poderia simplesmente comprar um, ou até vários?

 O ambiente estava carregado. A princesa Anne, visivelmente incomodada, mordeu os lábios, tentando disfarçar a raiva. Era óbvio que a acusação não tinha sido planejada, que ela não estava preparada para essa reviravolta.

— Você tem inveja da princesa! — A dama de companhia gritou, suas palavras cheias de veneno. Eu quase ri, mas me forcei a manter a compostura. Como se eu fosse invejar aquela personagem coadjuvante.

— Ordem! — O juiz ordenou, sua voz ecoando pelo salão. Ele não sabia o que fazer com a confusão que começava a se espalhar entre os nobres.

Eu encarei o juiz, os olhos ardendo de tanto conter as lágrimas, tentando me manter forte ali. Eu não era culpada. E isso estava prestes a se tornar claro para todos. Eu precisava de tempo. Uma abertura, uma chance, para dar o golpe final. Algo que me tirasse daquele pesadelo.

— Eu não sou culpada. — Eu disse com uma voz mais suave, mas firme. Tentei manter a calma. — Eu não sou a única a ter acesso aos meus pertences. A dama de companhia da princesa... ela sempre esteve por perto. Talvez tenha sido ela quem plantou o colar nas minhas coisas, quando fui ao palácio.

O silêncio que se seguiu foi profundo. Eu podia sentir os olhares dos nobres ao meu redor, como se o salão inteiro estivesse em suspenso. A princesa, surpreendentemente, parecia em choque, seus olhos quase vazios de expressão, mas não era difícil ver a raiva crescente se formar sob seu rosto.

Os murmúrios começaram, como um sussurro crescente, mas logo o sistema fez algo que eu não esperava.

A sala pareceu tremer por um instante, como se algo estivesse fora do lugar. A mensagem brilhava diante dos meus olhos, e por um segundo, eu tive a sensação de que algo terrível estava prestes a acontecer, mas ninguém parecia sentir o mesmo que eu.

Uma mensagem piscou diante dos meus olhos.

⚠️ ERRO DETECTADO.

Sistema Inesperado.

Eu franzi a testa, o coração batendo mais rápido. O que isso significava? O que estava acontecendo? O sistema estava tentando me forçar a seguir o que ele desejava, mas eu… Eu havia desviado do roteiro.

Eu me senti um pouco nervosa, mas, ao mesmo tempo, uma adrenalina nova tomava conta de mim. Eu havia manipulado o jogo, de alguma forma. Algo dentro de mim se acendeu. Eu estava começando a sentir que tinha o controle, mesmo que fugazmente.

Mas antes que eu pudesse processar o que estava acontecendo, o sistema emitiu outra mensagem:

⚠️ ALERTA.

 Reputação instável.

Reputação instável? Eu ri baixinho. O que isso significava, afinal?

Com os olhos fixos na princesa, eu sabia que algo estava mudando. Não era uma vitória ainda, mas era uma abertura. Eles estavam começando a duvidar. Eu estava começando a virar o jogo.

O juiz olhou para os nobres, claramente abalado. Ele abriu a boca para falar, mas a voz saiu hesitante, como se estivesse escolhendo as palavras com extremo cuidado

— Dada a confusão… — Ele pigarreou, lançando um olhar furtivo para a princesa, que ainda fervia em seu trono. — Decidimos que Evelyne ficará em reclusão por um período indeterminado.

O tom dele foi mais suave do que eu esperava. Como se até ele estivesse incerto sobre a sentença.

— Ainda não há evidências claras que a incriminem diretamente.

Ah. Então eu não estava completamente livre, mas, ao menos, também não estava condenada. Considerando o quão mal as coisas começaram, era uma vitória pequena, mas valiosa. Eu havia conseguido tempo.

Mas Anne... bem, ela não parecia satisfeita.

A cadeira dela foi empurrada para trás com violência, fazendo um estrondo que ecoou pelo salão.

— Isso não vai acabar assim, Evelyne! — Ela gritou, apontando para mim com um dedo trêmulo de raiva. — Você vai pagar por isso!

Eu deveria temer aquela ameaça. Mas, em vez disso, senti um sorriso sutil surgir em meus lábios. Algo me dizia que essa história estava longe do fim.

Os nobres começaram a se dispersar, murmurando entre si. Eu não conseguia ouvir o que diziam, mas sentia a hesitação no ar. Alguns pareciam desconfiar, outros apenas queriam manter distância. Mas ninguém se atreveu a me empurrar para um destino pior.

Uma janela de jogo diferente surgiu na minha visão com uma breve frase:

MODO LIVRE: ATIVADO

“O que isso significa?” Pensei confusa.

Soltaram as amarras da minha cadeira, e fui escoltada para fora do salão. Senti meu corpo relaxar levemente, quase sem perceber, ao soltar um suspiro de alívio.

Até que vi Ridan.

Nossa, ele era muito mais incrível do que a imagem do jogo pela tela do computador, cabelos loiro claro, olhos azuis como o céu, era alto e atlético, muito melhor do que apenas um personagem 3D.

Ele estava ali, esperando do lado de fora, encostado casualmente na parede como se não houvesse nada de urgente acontecendo. Seus braços estavam cruzados sobre o peito, e seus olhos perfuravam os meus como lâminas afiadas.

Frio. Inexpressivo.

Fez todo o encanto que tive por ele ser questionado.

A maneira como ele me olhou me deu calafrios até os ossos. Era como se estivesse me despindo de qualquer defesa, procurando por uma verdade que nem eu mesma conhecia. O que quer que ele estivesse pensando, eu tinha certeza de que não era nada amigável.

— Por que não admite logo que é culpada? — Ele perguntou, e sua voz soou como um corte seco, sem qualquer vestígio de emoção. — Você só vai ficar trancada em seu quarto por um tempo. Não tem por que fazer tudo isso de novo.

Eu pisquei.

Nossa. Que irmão maravilhoso.

A forma como ele falava, como se eu fosse apenas uma pedra em seu caminho, me deixou desconfortável. Não era apenas frieza, era algo além disso. Distância. Indiferença total. Como se eu fosse uma estranha.

Evelyne e Ridan eram mesmo irmãos? Porque, sinceramente, eu não via qualquer resquício de vínculo entre eles. Nenhum lampejo de preocupação, nenhum traço de carinho. Apenas um abismo imenso de gelo e algo que quase poderia ser chamado de desprezo.

Pensei em responder, em dizer qualquer coisa. Mas… para quê? Ele não parecia disposto a ouvir.

Além disso, eu sentia que estava sendo observada. Como se um par de olhos invisíveis estivesse acompanhando cada movimento, esperando para ver o que eu faria a seguir.

E foi então que surgiu.

Uma janela piscou diante dos meus olhos, brilhando em letras douradas:

📜 A PROVA DE AFETO 📜:

🎯 Objetivo: Ganhe 1% de afinidade com Ridan.

🔹 Condição: Responda ao comportamento de Ridan de maneira pacífica ou estratégica.

🏆 Recompensa: 1% de afinidade com Ridan.

⚠️ Falha: Nenhuma punição, mas a missão será perdida.

Eu encarei a tela por um momento, o cérebro ainda processando as informações.

Sério? O sistema estava tentando me fazer ganhar afinidade com ele? Com a encarnação do iceberg?

A tentação de simplesmente ignorar a missão foi grande. Bem grande.

Eu já tinha problemas demais para lidar sem precisar me preocupar com agradar um irmão que parecia ter mais empatia por uma rocha do que por mim. Mas…

Suspirei.

O jogo queria que eu agisse de forma pacífica ou estratégica. O que significava que se eu o mandasse para o inferno com todas as letras, provavelmente falharia.

Fiz uma careta mental.

Bem, se não posso ser rude, pelo menos posso ser… educadamente insuportável.

Eu me endireitei, encarei Ridan de volta com a mesma intensidade, e tentei responder de maneira calma, mas com um toque de estratégia.

— Eu sei que você acha que eu sou culpada, Ridan. — Falei, mantendo a voz firme. — Mas não sou. Só quero que as coisas se resolvam logo, para que todos possamos seguir em frente.

 Fiquei feliz por conseguir usar minhas palavras, era isso que significava o modo livre?

Ele me observou por um momento, e a tensão no ar parecia quase palpável. Será que ele perceberia a mudança no tom? Será que ele começaria a duvidar, ainda que um pouco que eu não era realmente Evelyne?

Eu observei atentamente a reação de Ridan. Ele estava parado, com os olhos fixos em mim, como se tivesse visto um fantasma. Era evidente que ele não esperava essa resposta.

Ele franziu a testa, os músculos da mandíbula tensos, como se estivesse lutando para compreender o que acabara de acontecer.

— O que foi isso? — Ele perguntou, mais para si mesmo do que para mim, o tom de surpresa evidente em sua voz. Eu podia perceber, naquele momento, que ele estava desconcertado.

Eu estava ali. Não Evelyne. Não um NPC. Eu, Rafaela. E eu não estava mais disposta a ser manipulada.

Eu continuei, mais firme agora:

— Eu não sou a pessoa que você acha que sou, Ridan. Eu não sou culpada disso tudo. — Minha voz, ainda calma, ecoava no silêncio da sala. — Não sei quem te fez acreditar nisso, mas não vou aceitar ser tratada como uma criminosa sem ter uma chance de me defender.

Ridan piscou, claramente em choque. Ele deu um passo para trás, como se tivesse sido atingido por um golpe inesperado.

Eu esperava desprezo, talvez sarcasmo, mas não aquilo. Ele estava... surpreso?

Ele abriu a boca para dizer algo, mas parecia estar lutando para encontrar as palavras certas.

Ele finalmente falou, mas sua voz estava mais baixa.

— Essa não é você, Evelyne. Não é o que eu estou acostumado a ver.

Eu sabia o que ele estava pensando. Ele estava desconfiado de que eu pudesse estar mentindo ou tentando encobrir algo, o que eu realmente estava, já que eu realmente não era Evelyne de verdade.

Ele me olhou com mais cautela.

Eu respirei fundo e tentei encarar a situação com a mesma confiança que eu não sabia de onde estava vindo. Era a única forma de lidar com isso.

— Não sei o que você está tentando fazer, Evelyne. — Ele disse com uma leveza que, para mim, parecia um pequeno sinal de mudança. — Mas vou deixar isso para você resolver.

Ele se afastou, e antes de sair, olhou para mim mais uma vez, seus olhos ainda penetrantes, mas agora com um toque de incerteza.

— Fique quieta por enquanto. Não quero mais confusão, vamos pra casa. — Ele murmurou enquanto me dava as costas.

Então a mensagem apareceu diante de mim.

✅ Missão Concluída: 1% de afinidade com Ridan adquirida.

Eu pisquei.

Espera. O quê?

Foi só isso? Concluído? Parecia... fácil demais.

Mas algo me dizia que essa não seria a última vez que o jogo tentaria me fazer entender o que, diabos, se passava na cabeça de Ridan.

E, sinceramente? Eu não sabia se queria descobrir.

Meu olhar subiu instintivamente para o topo da cabeça dele. Um brilho verde piscou antes de se transformar em um número discreto: 1% Apareceu na tela. Insignificante. Mas... a cor não era qualquer uma. Não era um verde neutro, ou um azul frio. Era rosa. Um tom sutil, discreto, mas impossível de ignorar. Meu coração vacilou por um segundo. O que isso significava?

Por um segundo, algo estranho aconteceu. Um calor mínimo percorreu meu peito, tão rápido que poderia ser imaginação. Meu olhar voltou para Ridan, e por um instante, parecia que ele hesitava. Como se… algo tivesse mudado nele também.

Talvez fosse besteira. Talvez fosse só um detalhe sem importância.

Ou talvez... fosse o começo de algo que eu ainda não estava pronta para encarar.

Um Péssimo Começo

O tribunal ainda ecoava com aqueles murmúrios irritantes. Vozes abafadas, julgamentos, decisões... tanto faz. Meu foco agora era um só: sair dali. O barulho dos meus passos contra o chão de pedra soava mais alto do que o normal, ou talvez fosse só minha mente dramatizando tudo porque, honestamente, eu estava cansada.

Ridan ia na frente, andando com aquele jeito de quem sabe exatamente o que está fazendo. Diferente de mim, que só seguia, sem ideia nenhuma do que vinha a seguir. Ele nem olhou para trás, mas dava para sentir sua atenção em mim. Isso me incomodava? Sim. Isso fazia eu parar de encarar a nuca dele de tempos em tempos? Não.

Quando saímos, o ar fresco bateu no meu rosto. A cidade estava envolta naquela luz de fim de tarde bonita, mas eu estava ocupada demais processando os últimos acontecimentos para me importar. Casas rústicas de madeira se alinhavam pelas ruas estreitas, seus telhados baixos e janelas pequenas pareciam espiar a gente passando. Algumas pessoas andavam por ali, mas ninguém prestava muita atenção em nós. Melhor assim.

Então, a carruagem apareceu no meu campo de visão. Enorme, escura, com detalhes dourados que brilhavam com a luz do sol. Grande demais, chique demais. Claro que Ridan não andaria em qualquer coisa.

Ele parou ao lado e estendeu a mão para mim.

Por um segundo, considerei me virar e fingir que não vi, e, sejamos sinceros, se era para tropeçar e cair de cara no chão, melhor aceitar a ajuda.

Peguei a mão dele, sentindo a firmeza do toque. Ridan me puxou para cima com facilidade, como se eu pesasse tanto quanto uma pena. Que ótimo, além de misterioso e mandão, ele ainda fazia parecer que eu não tinha peso nenhum. Minha autoestima agradece.

Me ajeitei no banco da carruagem, tentando não pensar muito na proximidade. Ridan subiu logo depois, e então o silêncio se instalou. A carruagem começou a se mover, e foi aí que as coisas ficaram... estranhas.

No início, era só um balanço chato. Mas aí veio o enjoo. Primeiro, só um incômodo. Depois, uma náusea real, daquelas que te fazem considerar o quão humilhante seria vomitar na frente de alguém.

Tentei olhar pela janela para me distrair. Ruas de pedra, casas simples, algumas árvores. Nada ajudou. Meu estômago estava oficialmente travando uma guerra comigo.

Ah, que ótimo. Eu sobrevivo a julgamentos tensos e olhares ameaçadores, mas sou derrotada por uma carruagem em movimento. Isso só pode ser um castigo divino.

— Você está bem? — A voz de Ridan quebrou minha linha de pensamento trágica.

Virei o rosto devagar. Ele me encarava com as sobrancelhas levemente franzidas.

— Maravilhosamente bem. Nunca me senti melhor. — respondi, antes de soltar um suspiro e admitir: — Tá, mentira. Acho que essa coisa tá me matando.

Ridan não hesitou. Fez um sinal para o cocheiro, e a carruagem diminuiu o ritmo como se fosse algo costumeiro, será que Evelyne sempre se sente enjoada em viagens de carruagem?

Adiantou alguma coisa? Não. A náusea continuava firme e forte. Fechei os olhos, respirei fundo, mas até isso parecia me deixar mais tonta.

Se eu vomitar agora, será que dá para fingir que foi um acidente? Ou será que perco toda a moral que lutei tanto para manter?

Ridan continuava me observando, e por algum motivo, isso me deixava ainda mais nervosa.

O silêncio voltou, exceto pelo som das rodas contra o chão irregular. A carruagem seguia um pouco mais devagar agora, mas o estrago já estava feito. Meu estômago ainda dava voltas, e minha cabeça latejava como se tivesse acabado de ser sacudida por um furacão.

Ótimo. Meu segundo grande desafio nesse novo mundo? Sobreviver a uma maldita viagem de carruagem.

Ridan, por outro lado, parecia indiferente ao meu sofrimento. Sentado com a postura impecável, observava a cidade do lado de fora como se absolutamente nada estivesse acontecendo. O cara realmente não se abalava com nada?

Eu, por outro lado, estava à beira de um colapso.

Respirei fundo e encostei a cabeça no encosto de madeira dura. Talvez se eu fechasse os olhos por um tempo...

Erro. Grande erro.

O mundo girou de um jeito que me fez agarrar o banco, os dedos apertando o estofado com uma força que nem sabia que tinha.

Ridan percebeu o movimento, mas não disse nada. O que, sinceramente, eu preferia. Se ele soltasse algum comentário, provavelmente eu mandaria ele se ferrar antes de ter a chance de vomitar em cima das botas dele.

Respirei fundo de novo. O cheiro da madeira da carruagem misturado ao leve aroma de couro dos assentos não ajudou em nada. Minha boca ficou amarga.

— Quanto tempo isso vai durar? — Perguntei, sentindo minha paciência (e meu estômago) indo pelo ralo.

— Até chegarmos. — Ridan respondeu sem emoção alguma, como se isso fosse óbvio.

Fechei os olhos por um segundo, respirando fundo para não xingar.

— E onde exatamente é esse "chegarmos"?

Ele virou o rosto devagar, me encarando como se minha pergunta fosse a coisa mais estúpida que já saiu da minha boca.

— Em casa.

Abri os olhos e encarei o teto da carruagem.

“Maluco do caralho” Eu queria dizer alto, mas o enjoo não deixava, e achei melhor manter isso pra mim também.

Tentei focar no balanço da carruagem, respirar devagar, mas era impossível ignorar a sensação horrível no meu estômago. As ruas de pedra passavam devagar pela janela, as casas de madeira pareciam me encarar com um julgamento silencioso, e eu só conseguia pensar que, se não chegássemos logo, o que possa estar em meu estômago viraria um presente inesperado para o estofado caro dessa carruagem.

Ridan continuava alheio a tudo. Imóvel, postura impecável, como se tivesse sido esculpido direto da madeira que revestia o veículo. Que inveja.

Eu já estava aceitando meu destino trágico quando senti a carruagem diminuir ainda mais a velocidade. Será que finalmente estávamos perto?

— Falta muito? — Perguntei, esperançosa.

Ridan me lançou um olhar breve, depois voltou a observar a rua.

— Pouco.

"Pouco." Eu daria um braço para saber o que "pouco" significava no dicionário dele.

Mas tudo bem. Eu só precisava segurar um pouco mais. Fácil, fácil minha bunda.

Respirei fundo de novo, tentando manter alguma dignidade.

“Tá tudo bem. Você só precisa sobreviver mais um pouco. Se concentra. Você não vai vomitar. Você não vai…”

A carruagem passou por uma pedra maior, balançando forte. Meu estômago fez uma pirueta olímpica e eu soltei um gemido baixo de desespero.

Ridan nem se moveu.

Sério, esse homem era feito de pedra? Nenhuma reação ao balanço, nenhum sinal de incômodo? Ele era algum tipo de mutante que não sentia os efeitos da gravidade?

— Você parece pálida. — Ele comentou, finalmente, com o mesmo tom neutro de quem observa uma nuvem no céu.

— Nossa, que observação incrível. Nem tinha percebido. Obrigada por avisar. — Revirei os olhos, agarrando o estofado com ainda mais força.

Ele arqueou uma sobrancelha, como se estivesse me analisando.

— Se você vomitar, avise antes.

Eu pisquei devagar.

Joguei um olhar mortal pra ele, mas não adiantou nada. O desgraçado continuava inabalável, e eu continuava me segurando pra não transformar essa carruagem em uma cena de crime biológico.

Que inferno de viagem.

Demorou um século, mas, de repente, a carruagem finalmente parou. Meu estômago, já em crise, pareceu dar um nó ainda maior, e o cansaço do meu corpo, que antes estava disfarçado pela agitação, se tornou mais evidente.

Ridan me olhou, com aquele semblante calmo e quase entediante, e perguntou, com a voz quase educada demais:

— Precisa de ajuda para sair?

Eu o encarei por alguns segundos, como se ele tivesse acabado de perguntar se eu queria um tapinha nas costas também. Ah, claro. Como se o homem não tivesse uma expressão de quem sequer percebe o inferno que é a minha vida naquele momento. Falsa preocupação, essa era a vibe dele.

— Não, obrigada. — Respondi, o tom seco. — Já basta essa cara de paisagem, não preciso de mais um show de bondade forçada.

Ele apenas me observou, sem dizer nada. Claro, ele jamais diria. Era tipo uma regra não dita no manual de "como ser insuportável".

Eu me forçava a sair da carruagem, tentando parecer minimamente digna. Se eu caísse agora, bem... seria só mais uma daquelas cenas constrangedoras que não saem da sua cabeça por uma eternidade.

Alguém abriu a porta da carruagem, antes que eu pudesse fazer. Era um senhor bem vestido, com a postura impecável de um mordomo de alta classe. Ele tinha um olhar preocupado, mas de uma forma... calorosa, como se minha presença ali fosse algo que ele pessoalmente tivesse que garantir que fosse bem-sucedido.

No topo da cabeça dele, algo brilhou com um pequeno reflexo dourado. Era como uma faísca, uma luz tênue que desapareceu tão rapidamente quanto apareceu.

Foi impressão minha?

Eu estreitei os olhos, tentando focar naquilo, mas não conseguia lembrar de onde já tinha visto algo tão peculiar. Um brilho, talvez? Não fazia sentido, mas algo me dizia que eu já tinha presenciado aquilo antes... só não conseguia me lembrar.

— Senhora, por favor, posso ajudá-la a descer? — O mordomo perguntou, com uma voz suave, mas firme, sempre mantendo aquele olhar atencioso. Ele estendeu a mão de forma educada.

Eu franzi a testa. Esse brilho não me saía da cabeça.

— Eu... — comecei a responder, mas me interrompi. Não fazia sentido ficar pensando sobre isso agora. De qualquer forma, não estava na hora de me perder em mistérios. A situação já estava caótica o suficiente.

Estendi a mão, já cansada de pensar ou hesitar. Eu só queria sair daquela coisa balançante e me sufocandte. O enjoo estava me consumindo, mas ainda era melhor do que ficar presa naquela claustrofobia sobre rodas.

O mordomo me ajudou a descer, com uma gentileza que só aumentou a minha impaciência. Cada movimento parecia mais devagar do que o necessário. Finalmente, o chão firme apareceu e eu respirei aliviada. Não estava 100% melhor, mas ao menos não estava mais dentro daquela maldita carruagem.

O balanço ainda me perseguia, rodopiando lá dentro, mas o ar fresco da rua já ajudava. Olhei ao redor, tentando desviar da náusea que ainda me acompanhava.

O lugar era impressionante, luxuoso, e eu não fazia ideia de como tinha ido parar ali. Parecia o tipo de lugar que faria qualquer um se sentir pequeno só por estar lá. Mas eu não estava ali para admirar a arquitetura.

O mordomo ficou parado ao meu lado, me observando com aquela calma exagerada. Como se ele fosse uma espécie de guardião pessoal ou algo assim. O que estava acontecendo ali já era confuso o suficiente, e agora ele parecia ser parte disso.

Ele se inclinou levemente, como se fosse me contar um segredo, mas apenas quebrou o silêncio.

— Senhorita Evelyne, sempre se sente enjoada nas carruagens…. Fui informado tarde demais que foi levada às pressas antes e não pude entregar isso a você. — Sua voz suave parecia medir cada palavra. E então me ofereceu o saquinho de ervas.

Eu olhei para o saquinho, duvidando se aquilo realmente faria algo. Como se ervas secas fossem resolver meus problemas. Eu estava prestes a me jogar na primeira poça de água, mas, bom, não tinha nada a perder.

Sem mais delongas, peguei o saquinho e levei até o nariz. O cheiro foi intenso, mas, para minha surpresa, foi calmante. Terroso, picante, mas de alguma forma eficaz. O enjoo, que estava prestes a me fazer gritar, foi se dissipando aos poucos. Não era um milagre, mas parecia estar funcionando. O peso que eu sentia no peito foi diminuindo, e a leveza voltou de maneira sutil.

Olhei para o mordomo com um sorriso mínimo, mais por educação do que por real gratidão.

— Obrigada. Isso já está ajudando. Uma pena que meu estômago não seja tão educado quanto você.

Ele inclinou a cabeça, como se já soubesse que eu não era capaz de fazer grandes demonstrações de afeto.

O mordomo fez aquele gesto exagerado de satisfação, como se tivesse acabado de salvar o dia. Ah, claro, um simples saquinho de ervas e eu já era uma nova pessoa. Ele parecia feliz por ter sido útil, e, para ser sincera, eu até senti um pequeno conforto naquele gesto. Não que isso fosse algo extraordinário, mas, nesse mar de caos, qualquer coisa parecia bem-vinda.

Enquanto isso, Ridan simplesmente seguiu em frente, sem nem olhar para trás. Ah, claro, o mundo não tinha acontecido para ele. Ele estava ocupado demais sendo o ser humano mais indiferente possível, como se eu fosse só mais uma distração que ele não queria lidar. Senti um impulso de lançar alguma piada sarcástica, mas, sinceramente, não estava no clima para isso agora.

Respirei fundo, inalando o cheiro das ervas com mais força. Talvez eu estivesse começando a acreditar nelas, quem sabe. O cheiro forte me atingiu, mas, por incrível que pareça, até me acalmou um pouco. O enjoo não desapareceu de uma vez, mas já não parecia tão ameaçador. A brisa da tarde, tentava fazer seu papel, mas eu sabia que não seria a brisa que resolveria tudo. Ainda assim, não podia negar que era um alívio ter algo além da sensação de estar à beira de um colapso.

O som da carruagem sendo retirada da frente da mansão foi o único barulho que quebrou o silêncio. E, mesmo que fosse só o barulho de uma carruagem indo embora, parecia que o mundo inteiro estava tentando me dar um tempo para pensar. 

Olhei para a direção onde ele estava indo. Ridan já se afastava, subindo as escadas da mansão com passos longos e decididos, como se não houvesse nada ali que merecesse sua atenção. Franzi a testa, e, por um instante, a frustração tomou conta dos meus pensamentos. Não havia tempo a perder, e eu não podia me dar ao luxo de esperar.

Enquanto eu tentava organizar minha mente, o mordomo se aproximou discretamente. Ele inclinou a cabeça, como se soubesse exatamente o que eu precisava.

— Minha senhorita, talvez seja melhor seguir o jovem mestre. Ele está à frente. — Sua voz suave interrompeu o turbilhão de meus pensamentos.

Somente agradeci e resolvi seguir sua instrução, por ser um NPC ele sabia mais que eu.

Com o estômago mais calmo, dei um último suspiro e caminhei rapidamente em direção às grandes portas de entrada, decidida a seguir Ridan e entender o que exatamente ele esperava de mim ali.

Como seria capaz de me adaptar a esse mundo estranho, onde até os próprios móveis pareciam imponentes e a presença de Ridan, tão indiferente, apenas piorava a situação?

O interior era ainda mais grandioso do que eu imaginara. O hall de entrada parecia um palácio por si só. As paredes eram adornadas com tapeçarias ricas e douradas que narravam histórias de uma era longínqua. O cheiro de madeira polida e cera permeava o ar, criando uma sensação de imponência que fazia qualquer um se sentir pequeno. As escadas em espiral à direita conduziam ao segundo andar, onde as portas de salas fechadas sugeriam mais mistérios e segredos a serem desvendados. Eu não sabia o que me aguardava ali, mas não tinha mais escolha a não ser seguir o caminho que Ridan já havia iniciado.

Ridan parou em frente à porta imponente, sua figura alta e imperturbável se projetando contra o fundo escuro do corredor, como se ele fosse feito de pedra. Eu, por outro lado, ainda me sentia como uma marionete desengonçada nesse teatro estranho. A mansão em si parecia zombar da minha presença, com suas paredes altas e silêncios esmagadores. 

Ele se virou para me olhar, e, por um momento, aquele olhar gélido quase me paralisou. Não era medo o que senti, mas algo mais profundo, uma mistura de frustração e o incômodo de estar sob os holofotes de um palco que eu não havia escolhido. Ainda sentia os efeitos da insegurança, como um resquício da náusea que me assolara mais cedo, mas isso agora parecia um incômodo distante.

— Não fale nada, eu mesmo direi. — a voz de Ridan cortou o silêncio, grave e implacável, como se as palavras saíssem de um bloco de gelo. Ele me encarou com um olhar que mais parecia uma lâmina, afiada e impessoal. O tom com que falou sugeria que qualquer tentativa de interferir seria o suficiente para me enterrar. Um ultimato. E, como esperado, meu estômago se revirou, mas não por medo. Era mais como um incômodo irritante que me fazia querer devolver à altura.

A raiva se formou dentro de mim, lentamente, como uma tempestade se acumulando no horizonte.

Respirei fundo, tentando controlar o turbilhão dentro de mim. Olhei para ele, de volta, com mais firmeza do que ele provavelmente esperava. Meu rosto não mostrava nenhuma emoção, mas meus olhos, ah, meus olhos disseram tudo. Eles eram um espelho daquilo que eu não conseguia verbalizar. Um tipo de desafio silencioso que ele não deveria subestimar. Pelo menos, era o que eu esperava.

Ridan, alheio ao que se passava em minha mente, se virou de costas sem sequer esperar mais uma palavra. Ele girou a maçaneta da porta com um movimento impessoal, como se estivesse apenas cumprindo uma tarefa rotineira. O som da porta se abrindo ecoou pelo corredor.

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