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Shifting: O Mundo de Evangeline

Shifting: O Mundo de Evageline

Aos 20 anos, eu sentia que o mundo ao meu redor era uma prisão invisível. O meu passado, com traumas e fantasmas que nunca consegui esquecer, consumia-me. Eu passava o dia tentando ser forte, mas, quando a noite chegava, a solidão e a depressão invadiam-me.

imagem gerada pela ia

Não sabia o que eu estava fazendo da minha vida, mas sabia que eu precisava de algo mais. Algo que me desse sentido. Algo que me fizesse sentir que havia um propósito para eu continuar.

A minha infância não foi fácil. Perdi o meu pai cedo, e minha mãe, que foi sempre ausente emocionalmente, nunca soube lidar com as minhas angústias. Desde muito jovem, aprendi a esconder as lágrimas atrás de um sorriso. Eu era aquela garota que fazia sempre os outros rirem, mas, por dentro, eu estava em pedaços. O vazio nunca me deixou, e a sensação de que algo faltava na minha vida se intensificava a cada dia.

Eu já não sabia mais o que fazer para me sentir melhor. Tentei de tudo: terapia, meditação, ioga..., mas nada parecia preencher o buraco. Até que, numa noite sem sono, ao perder-me nas profundezas da ‘internet’, encontrei algo que mudaria a minha vida para sempre: shifting.

imagem gerada por ia

Era uma técnica que prometia algo impossível, mas sedutor: escapar para outra realidade, criar uma versão ideal de sua vida e vivê-la. No começo, eu ri da ideia. Como alguém poderia simplesmente "mudar de realidade"? Mas, ao ler mais e mais sobre isso, eu comecei a sentir algo que há muito tempo não sentia: esperança. A esperança de que poderia, ao menos por um momento, escapar da dor que me consumia.

Antes de tentar, decidi pesquisar sobre as regras do shifting. Eu queria saber como essa técnica funcionava e, mais importante, como sair desse mundo sempre que fosse necessário. Descobri que a chave para o processo era uma profunda concentração, um foco total nos detalhes do novo mundo que você queria criar. Além disso, a técnica exigia uma palavra-chave, uma frase única que ajudaria a pessoa a voltar para a sua realidade sempre que desejasse. Essa palavra tinha que ser algo pessoal, algo que tivesse significado profundo, como um ancla para a mente. Para mim, escolhi a palavra "renascimento". Sempre que eu dissesse essa palavra, sabia que poderia retornar à minha vida real, com tudo o que eu deixaria para trás no outro mundo.

Mas havia mais. As regras do shifting não eram apenas sobre criar um novo ambiente. Era também sobre criar uma nova versão de mim mesma. Eu queria me ver diferente. Eu queria sentir que, naquele mundo alternativo, eu seria alguém que não carregava as cicatrizes da minha infância. Eu poderia ser quem eu quisesse. Então, escrevi as regras para o novo mundo: eu imaginava como seria a minha aparência, quem seriam meus pais e minha família, e até mesmo o tipo de vida que eu queria viver.

Minha aparência:

Cabelos: Longos e ondulados, de um tom castanho claro, quase dourado, que brilhavam à luz do sol.

Olhos: De um verde intenso, como esmeraldas, com um brilho que transmitia confiança e serenidade.

Rosto: Levemente arredondado, mas com uma expressão de paz e força. Eu queria ter uma aparência que refletisse a confiança que eu não tinha na vida real.

Corpo: Magra, com a postura ereta e confiante. Eu queria me sentir bem na minha própria pele, sem as inseguranças que me assombravam.

Minha família:

Pais: No novo mundo, eu queria uma família amorosa e presente. Eu imaginei que meus pais seriam pessoas gentis e atenciosas, que me amavam incondicionalmente. Meu pai seria alto, com cabelos grisalhos e uma voz suave, sempre atenta às minhas necessidades. Minha mãe teria cabelos castanhos escuros e um sorriso acolhedor, sempre me incentivando a ser quem eu fosse, sem reservas.

Irmãos: Eu teria uma irmã mais velha, madura e empática, com quem eu teria uma amizade próxima e sincera. Seríamos muito unidas, como uma verdadeira rede de apoio.

Ambiente: Queria viver em uma cidade vibrante, com ruas de pedras antigas e jardins exuberantes, onde as cores eram mais intensas e tudo parecia cheio de vida. O céu, sempre azul, com algumas nuvens que se desfaziam ao toque da brisa.

Cultura: As pessoas naquele mundo seriam gentis e acolhedoras, onde o amor e o respeito eram valores fundamentais. Eu queria um lugar onde todos se ajudassem, onde houvesse paz e harmonia.

Com essas regras definidas, fechei os olhos, me concentrei e comecei a visualizar. Eu imaginei um lugar cheio de cores vibrantes, onde tudo era mágico, e eu me sentia forte e feliz. Mas, por mais que me concentrasse, por mais que eu tentasse trazer à tona cada pedacinho do mundo que eu queria criar, não acontecia nada.

Minha frustração aumentava a cada tentativa. "Talvez eu esteja fazendo algo errado", pensei. Eu comecei a buscar mais informações, tentar outras técnicas. Lembrei-me de métodos que envolviam ouvir músicas específicas para facilitar a entrada em estado de transe ou usar afirmações durante o processo. Tentava de tudo, mas, por semanas, nada acontecia. Eu não conseguia sequer sentir qualquer mudança.

Eu quase desisti. Eu me perguntava se eu realmente era capaz de criar uma realidade, de fugir do meu mundo, ou se isso tudo era uma ilusão. Mas havia algo dentro de mim que me dizia para continuar tentando. Eu precisava de algo mais, algo que me tirasse da dor constante que eu sentia. E, com essa motivação, continuei.

Eu me apegava ao pensamento de que cada tentativa me aproximava do meu objetivo. Mesmo quando parecia que eu estava estagnada, sentia que algo dentro de mim estava mudando, como se meu corpo e minha mente estivessem se ajustando aos novos padrões. Eu fiz de tudo: visualizações mais detalhadas, meditações profundas, escrevi as regras do meu novo mundo em um caderno, tentei até técnicas de respiração para acalmar a ansiedade e ajudar a focar. Mas, na maioria das vezes, a sensação de fracasso me dominava.

Então, um dia, cansada, quase sem esperanças, decidi tentar mais uma vez. Dessa vez, eu não forcei a visão do meu novo mundo, nem tentei controlar o processo. Ao invés disso, me entreguei completamente. Me deitei, fechei os olhos e respirei profundamente, ouvindo apenas o som da minha respiração e a batida do meu coração. Eu imaginei o lugar mais tranquilo e sereno que eu pudesse. Uma praia onde as águas eram claras, e o céu parecia uma tela pintada de azul intenso. Eu vi minha versão mais feliz, mais forte, sorrindo para mim.

Sem perceber, as palavras começaram a sair de meus lábios, baixinho, como um sussurro: "Renascimento". A palavra-chave. Não havia pressão, não havia esforço. Foi apenas uma entrega total.

Foi então que algo mudou...

A sensação de gravidade se foi, como se o chão sob mim tivesse desaparecido. Fui invadida por uma sensação de leveza, como se estivesse flutuando. O ar ao meu redor ficou mais fresco, e eu senti o cheiro salgado da maresia. Quando abri os olhos, não estava mais no meu quarto. Eu estava em uma praia. O som das ondas quebrando nas pedras me envolvia, e a brisa suave acariciava minha pele. Eu estava lá, no mundo que havia criado. Eu havia shifteado.

Eu fiquei paralisada por um momento, não acreditando no que estava acontecendo. Olhei ao redor, e tudo estava exatamente como eu havia imaginado. A areia dourada brilhava sob a luz do sol e o mar parecia ter um tom de azul quase mágico. A sensação de liberdade era avassaladora. Eu havia conseguido.

Minhas mãos tremiam enquanto tocava o chão, tocava a areia fria e macia. Respirei profundamente, absorvendo a paisagem. Tudo era perfeito. A dor da minha vida real parecia tão distante, como se eu tivesse deixado para trás, junto com o resto de mim mesma, naquela outra realidade. Eu estava em um lugar onde eu me sentia completa.

Com o tempo, fui descobrindo mais sobre aquele mundo. Eu criava as regras, as pessoas ao meu redor, até as paisagens que surgiam à medida que eu caminhava. Eu vivia aventuras que só existiam na minha mente: explorava florestas encantadas, desafiava criaturas fantásticas e enfrentava desafios que me faziam sentir viva de uma forma que eu nunca experimentei antes.

Mas, enquanto eu vivia essas experiências, havia sempre algo em minha mente, um eco que me dizia: "Você pode voltar quando quiser. É só dizer a palavra."

Eu sabia que, se quisesse, poderia retornar à minha realidade, à minha vida real, e deixar essa maravilha para trás. Mas naquele momento, a vontade de fugir era tão forte, tão tentadora. Eu queria viver aqui, com tudo o que esse mundo me oferecia. Porém, também sabia que essa fuga não seria a solução para o que eu estava buscando.

Eu estava diante de uma escolha: continuar explorando esse novo mundo, onde eu era uma uma versão de mim mesma sem as cicatrizes do passado, ou enfrentar minha vida real e começar a buscar meu próprio "renascimento" dentro dela, sem precisar fugir para encontrar paz.

Aquele lugar, com toda a sua magia e beleza, era perfeito, mas não era real. Eu sabia disso. Não importava o quanto eu o amasse, esse mundo era uma invenção da minha mente. Eu tinha criado um lugar onde eu poderia ser quem quisesse, sem o peso do passado, mas isso não resolveria o vazio que eu sentia dentro de mim. Eu precisava de algo mais, algo que fosse verdadeiro, que fosse genuíno.

Enquanto caminhava pela praia, uma sensação de calma tomou conta de mim. Meus pés afundavam na areia quente, mas o vento suave me fazia sentir uma paz que eu nunca tinha conhecido. Aqui, no mundo que eu criei, tudo parecia perfeito. Era um lugar onde eu me sentia amada, onde eu podia deixar para trás todos os medos e inseguranças que me atormentavam.

Entre dois mundo

Com o tempo, fui descobrindo mais sobre aquele mundo. Eu criava as regras, as pessoas ao meu redor, até as paisagens que surgiam à medida que eu caminhava. Eu vivia aventuras que só existiam na minha mente: explorava florestas encantadas, conhecia criaturas fantásticas e enfrentava desafios que me faziam sentir viva de uma forma que eu nunca experimentei antes.

Mas, enquanto eu vivia essas experiências, havia sempre algo na minha mente, um eco que me dizia: "Pode voltar quando quiser. É só dizer a palavra."

Eu sabia que, se quisesse, poderia retornar à minha realidade, à minha vida real, e deixar essa maravilha para trás. Mas naquele momento, a vontade de fugir era tão forte, tão tentadora. Eu queria viver aqui, com tudo o que esse mundo me oferecia. Porém, também sabia que essa fuga não seria a solução para o que eu estava buscando.

Eu estava diante de uma escolha: continuar a explorar esse novo mundo, onde eu era uma versão de mim mesma sem as cicatrizes do passado, ou enfrentar a minha realidade e começar a buscar o meu próprio "renascimento" dentro dela, sem precisar fugir para encontrar paz.

Aquele lugar, com toda a sua magia e beleza, era perfeito, mas não era real. Eu sabia disso. Não importava o quanto eu o amasse, esse mundo era uma invenção da minha mente. Eu tinha criado um lugar onde eu poderia ser quem quisesse, sem o peso do passado, mas isso não resolveria o vazio que eu sentia dentro de mim. Eu precisava de algo mais, algo que fosse verdadeiro, que fosse genuíno.

Enquanto caminhava pela praia, uma sensação de calma tomou conta de mim. Os meus pés afundavam na areia quente, mas o vento suave fazia-me sentir uma paz que eu nunca conheci. Aqui, no mundo que eu criei, tudo parecia perfeito. Era um lugar onde eu me sentia amada, onde eu podia deixar para trás todos os medos e inseguranças que me atormentavam.

Foi quando ouvi um som ao longe – passos na areia. Meu coração disparou. Eu nunca havia criado ninguém que não fosse parte da minha história, e ainda assim, alguém estava vindo na minha direção. Um homem de cabelos escuros e olhar intenso caminhava até mim. Eu não o conhecia. Não havia imaginado sua existência. Mas ali estava ele, real, sólido, como se sempre tivesse pertencido a esse mundo.

Ele parou a poucos metros de mim e sorriu, um sorriso enigmático, como se soubesse algo que eu não sabia.

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—Demorou para perceber.

Franzi a testa, sentindo um arrepio percorrer minha espinha.

— Perceber o quê? Quem é você?

Ele inclinou levemente a cabeça, como se estudasse a minha reação.

— Alguém que está aqui há mais tempo do que deveria.

Meus músculos se retesaram.

— Isso não faz sentido. Eu criei esse lugar. Eu fiz as regras. Como pode estar aqui se eu não imaginei você?

Ele suspirou, como se estivesse esperando essa pergunta.

— Você tem certeza de que criou tudo isso?

Engoli em seco. De repente, o mundo que eu achava controlar já não parecia tão seguro. Se havia outra pessoa ali, será que eu estava realmente no comando?

 

O meu coração acelerou. O vento soprou mais forte, levantando grãos de areia ao nosso redor. Algo naquela situação deixava-me inquieta.

— Quem é você, de verdade? — perguntei, tentando manter a calma.

Ele sorriu de lado, como se achasse graça na minha pergunta.

— Meu nome é Eliel.

O nome soou estranho, como se já o tivesse ouvido antes, mas não conseguia lembrar onde.

— Isso não responde à minha pergunta. Como está aqui?

Eliel cruzou os braços e olhou para o horizonte, pensativo.

— Você realmente acha que é a única que descobriu esse lugar?

O meu estômago revirou. O meu mundo, o lugar que eu criei para fugir da dor, não era só meu?

— Isso não faz sentido — murmurei, balançando a cabeça. — Eu criei cada detalhe. Eu fiz as regras.

Ele soltou um riso baixo.

— Será mesmo? Ou você apenas acessou algo que já existia?

O meu corpo gelou. Se eu não criei esse mundo, então o que era esse lugar? E quem mais poderia estar aqui?

Meu coração martelava no peito. A ideia de que esse mundo não era apenas fruto da minha imaginação já era perturbadora, mas o que Eliel disse a seguir fez minha mente girar.

Ele me olhou nos olhos, seu semblante sério agora.

— Evangeline, você não percebeu ainda, não é? Enquanto está aqui... há outra versão sua vivendo no seu lugar.

Meu corpo ficou tenso.

— O quê? Isso é impossível.

— É a verdade — ele continuou, cruzando os braços. — Quando você veio para cá, você não simplesmente desapareceu do seu mundo. Outra "você" ficou lá, seguindo sua vida como se nada tivesse acontecido.

Eu dei um passo para trás, sentindo a minha respiração acelerar.

— Como você pode saber disso?

Ele suspirou e abaixou um pouco a cabeça, como se procurasse as palavras certas.

— Porque eu sou real... mas também sou um fruto da sua imaginação.

— Isso não faz sentido! — a minha voz saiu mais alta do que eu pretendia.

— Não faz? Pense bem — ele ergueu uma sobrancelha. — Eu existo porque você me imaginou, mas, em simultâneo, sei coisas que você não sabe. Se eu fosse apenas uma criação sua, como poderia te contar algo que você nunca pensou antes?

A minha mente estava em caos. Como eu poderia estar aqui e, em simultâneo, estar a viver a minha vida no outro mundo? E, mais importante... quem era essa outra "eu"?

Meu peito subia e descia rapidamente. As palavras de Eliel ecoavam na minha mente, e eu tentava, em vão, encontrar uma explicação lógica para aquilo.

— Isso não pode ser verdade… — sussurrei, mais para mim mesma do que para ele.

— Mas é — Eliel afirmou, sua voz calma, mas firme. — E quanto mais tempo você ficar aqui, mais a outra versão sua se tornará... você.

Um calafrio percorreu minha espinha.

— O que isso quer dizer?

Ele me observou por um momento antes de responder:

— Quer dizer que, se você não voltar logo, pode chegar um momento em que você não conseguirá mais.

Minha boca secou. Eu achava que tinha o controle, que poderia voltar a qualquer momento dizendo a palavra-chave. Mas e se não fosse tão simples assim?

— Eu ainda posso voltar, certo? — minha voz saiu hesitante.

Eliel suspirou.

— Por enquanto, sim. Mas se essa outra versão de você começar a querer ficar? Se ela tomar decisões que não tomaria? Se ela mudar coisas que jamais mudaria? Pode estar a perder seu lugar no seu próprio mundo, Evangeline.

Eu senti meu coração apertar.

— E se… e se eu já não for mais eu?

Ele se aproximou, seu olhar penetrante e sincero.

— Essa é a pergunta que você precisa responder antes que seja tarde demais.

O vento soprou mais forte, e, pela primeira vez desde que cheguei aqui, senti medo.

O silêncio entre ficou denso por um momento. A minha mente fervilhava com tudo o que Eliel havia-me contado. Eu queria respostas, queria entender o que acontecendo comigo.

Ele percebeu minha hesitação e estendeu a mão.

— Vem comigo. Quero te mostrar algo.

Olhei para sua mão estendida e, depois de um instante de dúvida, aceitei. Assim que os meus dedos tocaram os dele, senti um calor estranho percorrer o meu corpo, como se uma energia diferente fluísse entre nós. Ele começou a caminhar, e eu segui-o, sentindo a areia fria sobre os meus pés. Caminhamos até sairmos da praia e entrarmos num caminho de pedras cercado por árvores altas e retorcidas. O cheiro das folhas molhadas pelo orvalho era intenso, e o ar parecia mais denso ali.

— Para onde estamos indo? — perguntei, quebrando o silêncio.

— Vai entender quando chegarmos — ele respondeu, sem olhar para trás.

Depois de alguns minutos, saímos da floresta e chegamos a um vilarejo encantador. As casas eram feitas de pedra, com telhados inclinados cobertos de musgo. Pequenos lampiões iluminavam as ruas de paralelepípedos, e um riacho cortava o centro do lugar. O ar estava carregado de um cheiro doce, como canela e mel.

— Onde estamos? — minha voz saiu em um sussurro.

Eliel parou e olhou para mim com um pequeno sorriso.

— Na casa da minha família. Ou, pelo menos, da família que você me deu.

Meu coração disparou.

— O quê?

Ele assentiu.

— Você criou esse mundo, Evangeline. Criou as regras, criou as pessoas que queria que existissem aqui. Mas eu não sou o único que nasceu da sua imaginação. A minha família também foi criada por você. A minha mente girava. Eu lembrava-me de ter imaginado uma família amorosa e presente para mim… Mas não me lembrava de ter criado Eliel ou qualquer outra pessoa além da minha própria história. Antes que eu pudesse responder, a porta de uma das casas abriu-se, e uma mulher saiu. Ela tinha longos cabelos castanhos e olhos gentis. O seu sorriso era caloroso, como se me conhecesse há anos.

— Vocês demoraram — ela disse, cruzando os braços. — A comida está quase esfriando.

Eliel sorriu.

— Eu disse que traria uma convidada especial hoje.

A mulher se virou para mim e segurou minhas mãos entre as dela. Seu toque era suave, quente.

— Seja bem-vinda, Evangeline.

Minha garganta se fechou. Eu nunca tinha visto aquela mulher antes… Mas, ao mesmo tempo, algo nela me parecia familiar. E então, um pensamento me atingiu como um raio.Eu não a havia imaginado… Mas ela era exatamente como eu sempre quis que minha mãe fosse.

O almoço foi servido em uma grande mesa de madeira no centro da casa. O aroma da comida quente preenchia o ar, e por um momento, me permiti esquecer as perguntas que giravam em minha mente. A mulher que nos recebeu — que descobri se chamar Lyria — serviu-nos com um sorriso gentil. Ao lado dela, um homem alto, de barba grisalha e olhos bondosos, que Eliel apresentou como seu pai, observava a cena com uma expressão tranquila. Também havia duas crianças, gêmeos de cabelos escuros, que corriam pela sala, rindo como se não houvesse preocupações no mundo. Era tudo tão... perfeito.

Eu comia em silêncio, observando a dinâmica daquela família. Eles riam juntos, contavam histórias, olhavam uns para os outros com carinho genuíno. Aquilo doía mais do que eu queria admitir. Depois do almoço, saímos para caminhar. O sol estava mais baixo no céu, tingindo as nuvens de laranja e dourado. Foi só então que olhei para Eliel e perguntei o que estava queimando dentro de mim desde que chegamos ali: — Onde está a minha família?

Ele parou de andar e ficou em silêncio por um momento, como se escolhesse as palavras com cuidado.

— Eu sabia que você perguntaria isso — ele disse, olhando para mim com um misto de seriedade e tristeza.

Cruzei os braços, sentindo um frio inesperado.

— Eu imaginei uma família para mim. Pais amorosos, uma irmã... eles deveriam estar aqui. Então, por que não estão?

Eliel suspirou.

— Porque nem tudo que você imagina se manifesta da forma que você espera.

Minha expressão se contraiu.

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— O que isso quer dizer?

— Você criou esse mundo, Evageline, mas ele reflete seus medos, seus desejos… e suas crenças.

Minha garganta ficou seca.

— E o que isso tem a ver com minha família não estar aqui?

Ele se aproximou, sua voz mais suave agora.

— Você queria uma família perfeita, mas, no fundo, nunca acreditou que realmente pudesse ter uma.

Minhas mãos tremeram.

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— Isso não é verdade…

— Não é? — ele arqueou uma sobrancelha. — Se fosse, por que eles não estão aqui?

Eu queria negar, queria gritar que ele estava errado. Mas as palavras não saíram. No fundo, eu sabia. Eu criei uma família perfeita… mas nunca acreditei que merecia tê-la. E esse mundo, o mundo que eu criei, apenas refletiu isso de volta para mim. O silêncio entre nós se estendeu por um longo tempo. O vento balançava as folhas das árvores ao redor, e o céu começava a se tingir de tons de violeta. Eu queria responder, queria argumentar, mas a verdade era amarga demais para ser ignorada.

Meus olhos ardiam. Eu apertei os punhos, sentindo um peso esmagador no peito.

— Então… quer dizer que, mesmo nesse mundo… mesmo aqui, onde eu posso criar qualquer coisa… ainda sou prisioneira das minhas próprias crenças? — minha voz saiu fraca, quase um sussurro.

Eliel me observou com um olhar compreensivo.

— Você não está presa, Evageline. Mas também não pode fugir de si mesma.

Meu coração deu um salto.

— Então como eu faço para mudar isso? Para trazer minha família para cá? Ele suspirou.

— Não é tão simples. Você precisa acreditar. Não apenas desejar — ele tocou levemente minha testa com um dedo. — Mas aqui, no fundo. Você precisa se permitir sentir que merece esse amor.

Eu ri sem humor, desviando o olhar.

— E como eu faço isso? Apertando um botão mágico?

— Não existe botão mágico — ele disse, cruzando os braços. — Mas existe um caminho.

Virei para ele, franzindo o cenho.

— Que caminho?

Eliel respirou fundo antes de responder:

— Você precisa encontrá-los.

Senti um arrepio subir pela minha espinha.

— O quê?

— Sua família está aqui, Evageline — ele continuou. — Mas não estão onde você esperava. Você precisa procurá-los. Eu engoli em seco.

— Mas se eu criei esse mundo, por que eu não os trouxe direto para mim?

Eliel deu um pequeno sorriso.

— Talvez porque, no fundo, você sabia que precisava dessa jornada.

Olhei para o céu escurecendo e depois para Eliel. Minha mente girava com mil pensamentos. Se minha família estava em algum lugar desse mundo, isso significava que eu ainda tinha uma chance. Uma chance de encontrá-los.

Uma chance de provar a mim mesma que eu era digna de amor. Eu inspirei profundamente e encarei Eliel.

— Então me ajude a encontrá-los.

Ele sorriu, como se já soubesse que eu tomaria essa decisão.

— Sempre.

Flaskback

O vento frio da noite soprava contra minha pele, e a escuridão ao nosso redor parecia mais densa do que antes. Eu sentia um aperto no peito, como se algo invisível me puxasse para trás, para um lugar que eu queria esquecer.

Eliel percebeu minha hesitação.

- O que foi? - ele perguntou, sua voz firme, mas gentil. Fechei os olhos, e o peso do passado veio como uma onda, me arrastando para memórias que eu sempre tentei enterrar.

Flaskback

Lembrei do relógio na parede marcando três da manhã. Eu estava sentada no canto do meu quarto, abraçando meus joelhos, tentando controlar minha respiração. Do outro lado da porta, minha mãe gritava.

- Você não faz nada direito! - a voz dela era cortante, carregada de frustração. - Sempre tão fraca, tão inútil!

Eu apertava os olhos com força, desejando desaparecer. Desejando estar em qualquer outro lugar.

Havia garrafas quebradas no chão da sala. O cheiro forte de álcool misturava-se com o medo no ar. Eu já tinha visto essa cena tantas vezes que não precisava sair do quarto para saber o que vinha depois.

Um som alto. Um impacto.

Meu coração disparou.

Levantei-me devagar e abri uma fresta na porta. Minha mãe estava ali, caída no sofá, com o olhar vazio. Meu padrasto, com o rosto vermelho de raiva, segurava um copo pela metade.

Ele olhou para mim.

- O que foi? Vai ficar me encarando agora, pirralha?

Engoli o choro e fechei a porta rapidamente.

Eu queria fugir.

Eu sempre quis fugir.

Mas naquela noite, percebi que nunca teria um lugar para onde correr.

Fim do Flashback

Minhas mãos tremiam quando voltei ao presente.

- Evangeline? - a voz de Eliel me trouxe de volta. Ele me observava atentamente, como se soubesse exatamente onde minha mente havia ido.

Tentei disfarçar, mas ele percebeu.

- Eu sei que dói - ele disse, baixinho. - Mas isso não define você.

Olhei para ele, com os olhos marejados.

- E se eu nunca conseguir acreditar que mereço mais?

Ele sorriu, de um jeito que me fez sentir que, talvez, eu ainda tivesse uma chance.

- Então vamos provar para você mesma que merece. Vamos encontrar sua família.

Inspirei fundo e assenti.

- Por onde começamos?

Eliel estendeu a mão para mim.

- Pelo primeiro passo.

Hesitei por um segundo, mas então segurei sua mão.

E, pela primeira vez em muito tempo, senti que não estava sozinha.

À medida que caminhávamos pela estrada de terra que se estendia diante de nós, a frustração crescia dentro de mim como um nó apertado. Eu queria acreditar que minha família estava aqui, em algum lugar desse mundo, mas quanto mais o tempo passava, mais impossível isso parecia.

Eu criei esse mundo. Eu imaginei cada detalhe. Então por que não conseguia ter o que mais queria?

A dúvida se misturava com um sentimento conhecido-aquele peso sufocante no peito, aquele eco de solidão que me perseguiu a vida inteira.

E então, as memórias começaram a vir.

Flashback

Eu tinha oito anos e segurava um desenho com as mãos pequenas e trêmulas. Era um rabisco infantil, mas cheio de cor: uma casa grande, um céu azul e três pessoas de mãos dadas-meu pai, minha mãe e eu.

- Olha, mamãe, desenhei a gente!

Minha mãe pegou o papel com desinteresse.

- Isso não está certo - disse ela, sem sequer sorrir. - Seu pai se foi. Ele não faz mais parte da nossa família.

Meu coração se apertou.

- Mas... mas ele sempre vai ser meu pai...

Ela suspirou, irritada.

- Para de viver no passado, Evageline. Você sempre foi uma garotinha boba, cheia de sonhos idiotas. Rasguei o desenho antes que ela pudesse fazer isso por mim.

Se meu próprio sangue não queria me dar amor, quem daria?

Fim do Flashback

Minha respiração estava pesada quando voltei ao presente. O caminho diante de mim parecia distante, como se eu estivesse presa entre tempos diferentes.

Eliel me observava em silêncio, como se entendesse exatamente o que estava acontecendo.

- Você está lembrando de novo, não está?

Assenti, engolindo em seco.

- Não consigo evitar. Quanto mais eu vejo que não tenho minha família aqui, mais essas memórias me puxam para trás.

Ele parou de andar e virou-se para mim.

- E o que essas memórias te fazem sentir?

Fitei o chão, sem querer responder.

- Raiva. Tristeza. Como se eu nunca fosse boa o suficiente para ser amada.

Ele se aproximou, falando com a calma que sempre me desconcertava.

- Mas você não é aquela garotinha sozinha no quarto, Evageline. Você cresceu. Você está aqui. E tem o poder de mudar essa história.

Fechei os olhos. O nó na minha garganta ficou mais apertado.

Mas as memórias não paravam.

Flashback

Tinha doze anos quando minha mãe começou a trazer homens para casa com mais frequência. Eu ficava no meu quarto, ouvindo as vozes altas, os risos falsos, o som de garrafas se chocando.

Uma noite, um deles bateu na minha porta.

- Ei, garotinha, não vai dar um oi?

Meu corpo ficou paralisado.

Eu olhei para a porta trancada e segurei minha respiração, torcendo para que ele fosse embora.

Minha mãe riu lá de fora.

- Deixa ela. É inútil, sempre trancada nesse quarto.

A sombra sob a porta desapareceu.

Mas naquele momento, percebi algo: naquele lugar, eu era invisível.

E parte de mim acreditava que sempre seria.

Fim do Flashback

Minhas pernas cederam, e eu caí de joelhos na estrada de terra.

- Evageline! - Eliel se abaixou ao meu lado, segurando meus ombros.

- Eu... eu não sei se consigo continuar - sussurrei.

Ele apertou os olhos, preocupado.

- Você acha que não merece encontrá-los?

Eu soltei uma risada amarga.

- E se eles nunca existiram, Eliel? E se, no fundo, eu criei esse mundo perfeito, mas nunca fui capaz de criar a única coisa que mais queria?

Ele ficou em silêncio por um momento, depois segurou minha mão.

- Então vamos descobrir a verdade juntos.

Levantei o olhar para ele.

Havia algo na sua expressão-uma certeza inabalável, como se ele soubesse que havia mais por trás de tudo isso. Engoli minha dor e me levantei. Se minha família estava aqui, eu iria encontrá-los.

Mas, pela primeira vez, me perguntei: e se eles não fossem como eu imaginava? Caminhamos em silêncio por um tempo, a estrada de terra se estendendo diante de nós, cercada por árvores altas e flores coloridas que pareciam vibrar com a luz do sol. Mas, dentro de mim, tudo era escuridão. Cada passo que eu dava era acompanhado pelo medo, pela incerteza. Se minha família estava aqui, por que ainda não a encontrei?

Eliel, sempre atento, olhava para mim de tempos em tempos, como se estivesse esperando que eu dissesse algo. Mas as palavras simplesmente não vinham.

- Você sente isso? - ele perguntou de repente, parando no meio do caminho.

Franzi a testa.

- Sentir o quê?

Ele fechou os olhos por um momento, como se estivesse se conectando com algo invisível. Então, abriu-os novamente e me encarou com uma intensidade que fez minha pele arrepiar.

- A energia ao nosso redor mudou. Estamos perto.

Meu coração disparou.

- Como você sabe?

Ele sorriu de canto, aquele sorriso misterioso que sempre me deixava desconfiada.

- Porque esse mundo foi criado por você, Evageline. Mas existe algo aqui que você ainda não compreende. Algo que sempre esteve escondido, esperando para ser descoberto.

De repente, o vento soprou mais forte, e as folhas das árvores começaram a se mover como se sussurrassem segredos entre si. Senti um arrepio subir pela espinha.

- Você está me assustando, Eliel.

Ele estendeu a mão para mim.

- Confie em mim. Vamos juntos.

Hesitei por um momento, mas então segurei sua mão. Assim que nossos dedos se tocaram, um calor percorreu meu corpo, e, por um breve instante, minha visão escureceu.

Então, tudo mudou.

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