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A Maldição

O Galo e as Pegadas

Era o início da manhã, e uma luz pálida começava a se infiltrar entre as frestas da parede de barro. Joaquim tomava seu café amargo em um caneco de ferro desgastado, acompanhando-o com uma farofa de ovo e farinha de puba. Ele mastigava devagar, sentindo o sabor simples, mas familiar, enquanto olhava pela janela de palha entreaberta, já pensando no longo dia de trabalho que o esperava na roça.

Do lado de fora, Maria segurava um galo com firmeza, preparando-o para o abate. Suas mãos, acostumadas com o trabalho diário, tratavam o animal com precisão. A vida ali não permitia hesitações, e Maria sabia exatamente o que precisava fazer para garantir a comida do meio-dia.

Perto dela, o pequeno Zeca a observava com olhos profundos e enigmáticos, seu olhar mais sombrio do que se esperaria para alguém tão jovem. Ele fitava cada movimento da mãe com uma atenção estranha, quase perturbadora, como se houvesse algo além da simples curiosidade infantil naquela expressão.

Joaquim terminou a refeição, limpando a boca com as costas da mão. Levantou-se, deu um último olhar à esposa e ao filho, e seguiu pelo estreito caminho que levava à roça. Maria, por sua vez, pegou o galo com firmeza e o levou para o interior da casa, onde começaria a prepará-lo para o almoço dos trabalhadores que chegariam mais tarde. Ela não viu o olhar pesado de Zeca, que a acompanhava em silêncio, atento a cada detalhe do que ela fazia, como se estivesse aprendendo – ou planejando. A panela de ferro pendia sobre o fogo, e o cheiro do galo começava a tomar conta do interior da casa, enchendo o ambiente com um aroma forte e quente. Maria, enquanto esperava que a carne amolecesse, apanhou a velha vassoura de palha e foi para o terreiro em frente à casa, limpando a área de folhas e galhos secos.

Sem que ela percebesse, Zeca pegou as botas surradas do pai, ainda marcadas pela terra da roça, e as calçou, embora ficassem enormes em seus pés pequenos. O menino olhou ao redor com aquele mesmo olhar estranho, quase travesso, mas com uma sombra sinistra nos olhos. Então, começou a caminhar pesadamente pelo terreiro, marcando o chão de barro com pegadas largas e profundas. Foi e voltou repetidas vezes da porta da casa até a beira do mato, com passos firmes e lentos, cada marca de bota criando a ilusão de que mais de um homem havia pisado por ali.

Zeca parecia fascinado com a cena que montava. A cada ida e vinda, o solo se tornava um emaranhado de pegadas, como se um grupo inteiro de homens tivesse visitado a casa naquela manhã, enquanto o pai trabalhava. Com um sorriso malicioso, ele olhou para as marcas deixadas e deu um passo para trás, admirando seu trabalho. Era quase como se soubesse que as pegadas contariam uma história própria — uma história que, ele imaginava, plantaria dúvidas e envenenaria o coração do pai quando ele voltasse.

Maria terminou de preparar o almoço, cuidadosamente distribuindo a comida em duas panelas. Com mãos firmes, ela amarrou panos em volta das tampas para evitar que o ensopado se derramasse no caminho. Era um trabalho delicado, e ela se concentrava, dobrando e apertando cada nó com precisão. Lá fora, Zeca esperava, observando a mãe com olhos inquietos.

Após amarrar os panos, Maria pegou a cangaia e a encaixou sobre o lombo do jumento, ajeitando os dois jacás de palha trançada, um de cada lado, onde depositou as panelas cuidadosamente. O burro, acostumado com a rotina, resfolegou de leve, mas permaneceu imóvel, com um olhar resignado. Maria ergueu Zeca, colocando-o com cuidado sobre o jumento. O menino ajeitou-se, e, com um sorriso disfarçado, segurou as rédeas, pronto para partir.

O caminho até a roça era uma trilha estreita, quase sufocada pelo mato alto e pelas árvores que formavam um túnel sombrio e úmido. As raízes das árvores rasgavam o chão, e as sombras se misturavam entre galhos secos e folhas densas. Cada passo do jumento soava abafado, e Zeca ia em silêncio, conduzindo o animal com familiaridade, mas sempre atento ao redor, como se esperasse encontrar algo — ou alguém.

Após algum tempo, Zeca parou em uma curva mais fechada e desceu. Com movimentos cuidadosos, ele amarrou o jumento em uma árvore baixa e afastou-se um pouco para garantir que ninguém o visse. Com uma expressão sorrateira, Zeca se aproximou dos jacás e, sem hesitar, desatou o pano de uma das panelas. O cheiro do ensopado ainda estava forte, e ele sorriu ao ver os pedaços de carne. Rapidamente, começou a devorá-los, um a um, até que restassem apenas ossos espalhados pela panela. Satisfeito, ele recolocou a tampa, apertou o pano de volta e subiu novamente no jumento, retomando o caminho para a roça com o olhar tranquilo, como se nada tivesse acontecido.

Ira e Facão

Ao chegar na roça, Zeca puxou as rédeas do jumento e gritou pelo pai. A voz de Joaquim ecoou ao longe, entre as fileiras de mandioca e milho:

— Ô, moleque! Tô aqui!

Zeca se ajeitou sobre o jumento, esforçando-se para parecer tranquilo, mas na verdade, sua mente trabalhava rápido, ajustando o que diria ao pai. Ele sabia que precisaria escolher bem as palavras para plantar a semente da dúvida sem levantar suspeitas sobre sua própria versão.

Joaquim, ao ver o filho, chamou os outros trabalhadores para se reunirem sob as árvores, onde a sombra refrescante oferecia algum alívio do sol que já queimava alto. No chão de terra batida e limpo, os homens sentaram em silêncio, suas expressões de cansaço suavizadas pela expectativa da refeição. Joaquim virou-se para o filho com uma sobrancelha arqueada.

— Eita demora, menino! O que foi que houve?

Sem perder tempo, Zeca deu de ombros e apontou com um olhar discreto na direção de casa.

— Foi a mãe, pai... Ela demorou com a comida.

Joaquim não respondeu de imediato, mas pegou a panela do jacá e retirou o pano que a envolvia. Assim que destampou a panela, uma expressão de surpresa — e de imediato, de desconforto — atravessou seu rosto. Tudo o que restava na panela eram ossos limpos, como se alguém tivesse devorado o galo até não sobrar quase nada de carne.

— Que diabo é isso, Zeca? Cadê a carne?

O menino engoliu em seco e, depois de uma breve pausa, falou em tom baixo, mas com uma expressão insinuante, como quem conta um segredo perigoso.

— Quando o senhor foi pra roça, pai... vários homens foram lá em casa. Ficaram no quarto com a mãe até perto do meio-dia, e depois… depois eles comeram o frango também.

O silêncio caiu pesado sobre o grupo. Joaquim ficou parado, segurando a panela com as mãos firmes, mas os olhos se encheram de uma fúria contida e desconcertada. O rosto endurecido do pai não deixava transparecer, mas os punhos cerrados sobre a panela indicavam o turbilhão de pensamentos que a fala do filho havia provocado.

Sem dizer uma palavra aos trabalhadores, Joaquim os dispensou com um aceno brusco, a mandíbula travada. Virou-se para Zeca e o puxou pelo braço, ambos deixando a roça em silêncio. A raiva queimava dentro de Joaquim como uma brasa viva. Maria jamais ousaria desonrá-lo daquela forma — ele resolveria aquilo como o homem da casa, com a frieza e a firmeza que julgava necessárias.

Ao se aproximarem da casa, Joaquim avistou o terreiro e parou, o sangue fervendo ainda mais ao notar as marcas profundas de botas indo e vindo da entrada. Aquelas pegadas confirmavam as palavras do filho, e ele não sentiu dúvida alguma sobre o que precisava fazer.

Entrou porta adentro com o facão em punho, a lâmina brilhando com o fio afiado que ele mesmo cuidava de manter, dia após dia. Maria, que estava terminando de lavar as mãos após o trabalho no quintal, levantou o olhar para ele, surpresa e desconfiada.

— Joaquim? Que foi? O que aconteceu? Por que voltou tão ce…

Ela mal conseguiu terminar a pergunta. Com um movimento rápido e brutal, Joaquim avançou, cravando o facão contra ela, num golpe preciso. O sangue jorrou, e Maria caiu no chão de terra batida, os olhos arregalados de incredulidade, sem entender de onde vinha tanta violência. Enquanto a vida escapava dela, Joaquim permanecia em pé, os olhos vazios e sombrios, sem desviar o olhar.

Maldição e Morte

Zeca ficou parado, observando a cena com uma expressão que misturava espanto e satisfação. No fundo, ele sabia que havia instigado a tempestade que agora se abatia sobre a família. A casa, antes simples e cheia de vida, se tornara um cenário de desespero, com a traição gravada nas pegadas de botas e na lâmina ensanguentada do facão. Maria caiu no chão, a dor pulsando como um eco em seu corpo. Enquanto a vida escorria dela, ela olhou para Joaquim com os olhos cheios de incredulidade e medo. Em meio ao sangue que manchava seu vestido, ela respirou fundo, tentando entender o que havia acontecido.

— Joaquim... — sua voz mal conseguiu escapar. — O que você fez?

Ele se agachou, o facão ainda em punho, a fúria em seu olhar. Com um sorriso sombrio nos lábios, começou a contar o que Zeca havia dito.

— Ele disse que você recebeu homens em casa enquanto eu trabalhava. Que eles comeram do frango, que você... que você me traiu!

As palavras saíam dele como facadas, cada uma mais cortante que a anterior. Maria sentiu o peito apertar, a dor agora misturada ao desespero. Era um golpe que ela nunca esperava receber, mesmo diante das mentiras que cercavam a vida de seu filho.

— Seu filho duma p... — ela murmurou, com dificuldade. — Você acredita no que ele disse Joaquim? Ele é um demônio... uma criatura mesquinha e traiçoeira, Joaquim! Ele sempre quis ver a desgraça desta família!

O olhar de Joaquim endureceu, e ele não se deixou influenciar pelas palavras da esposa. A raiva estava desenfreada, tomando conta dele, e ele só pensava na traição que acreditava ter acontecido.

Maria, então, lutou contra a dor que a consumia e, com a última força que lhe restava, olhou nos olhos do marido e lançou uma maldição:

— Que você e esse garoto amaldiçoado se fodam! Que ele vire uma besta selvagem todas as noites de lua cheia, assim como é o seu caráter! Que a lua o transforme em um monstro, e que ele sinta a dor da traição em seu próprio coração!

Aquelas palavras ecoaram no ar como um eco sombrio, reverberando entre as paredes da casa. Joaquim, paralisado pela fúria e pela incredulidade, assistiu enquanto Maria dava seu último suspiro. O peso da maldição pairou no ar, envolvendo-os em uma escuridão crescente, como se as próprias sombras da noite viessem para reclamar a alma da mulher.

Após a última exalação de Maria, Joaquim sentiu um frio profundo tomar conta de seu ser, como se a própria escuridão da noite começasse a envolvê-lo. Ele se ergueu lentamente, a mente embotada pelo peso de suas ações e pela maldição que agora reverberava em seu coração. Ele não ousava encarar o corpo sem vida de sua esposa. Em vez disso, dirigiu um olhar firme e gélido para Zeca.

— Arruma suas coisas, moleque. Nós vamos embora daqui.

Zeca, com um brilho satisfeito nos olhos que tentava disfarçar, obedeceu, recolhendo seus poucos pertences em silêncio. Sabia que a mãe estava morta por causa das mentiras que contara, mas, em vez de arrependimento, sentia apenas uma estranha excitação. Ele havia conseguido o que queria: desestabilizara o pai e eliminara a mãe de sua vida.

Joaquim selou o jumento rapidamente, e, sem olhar para trás, montou o filho junto a ele. A casa que fora cenário de tanto trabalho e dedicação agora era apenas uma lembrança distorcida, um espaço sombrio que ele nunca mais desejava ver.

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